sábado, 30 de agosto de 2008

(2008/16) Da bocarra faminta dum ogro


1. Penso, cada vez mais fortemente - o que é sempre um grave risco - que cada palavra nossa tem de dar contas de sua topografia pragmático-epistemológica. E não estou, aqui, referindo-me à obviedade de se saber em que corrente de pensamento nos situamos - mas, o que é consideravelmente menos óbvio, se estamos situados.

2. Com "situados" quero me referir à consciência pragmática. Só há três topos retóricos: pesquisar/descobrir, transformar/convencer, experimentar/fruir. De outro modo: saber, fazer, querer. De outro modo, ainda: heurística, política, estética. Não vou escrever sobre isso aqui - tenho escrito sobre isso na ouviroevento (Série Pragmática). A meu juízo, a lucidez retórica passa pela lucidez pragmática.

3. Para que vamos ao passado? Para levantar do túmulo corpos e caras, e falar com eles, é uma boa resposta. Ao menos é o que todo historiador e exegeta desconfiado das tendências ditas (com procedência?) "pós-modernas" tenta fazer. Faz? Essa é a questão. Mas nisso reside a metáfora do ogro de Bloch, ogro que está onde estiver a caça - e sua caça, sabe-se, é a carne humana.

4. Para ir ao passado e lidar com gente, é necessário fazer História e Exegese (que venham em seu auxílio todas as irmãs da Antiga e Iniciática Ordem das Ciências Humanas, que venham, ainda, as irmãs da Ainda Mais Antiga e Iniciática Ordem das Ciências da Natureza - a tarefa é muita para só papel, pá e picareta). Passado, ou é gente, ou é não-gente. Gente que compôs o arco das pedras de Polo e Kam - as pedras, a noite dos tempos as cunhou. O arco, essa gente. Desmonte-se o arco, e essa gente volta ao túmulo.

5. A História e a Exegese - histórico-críticas, advirta-se! - lidam com carne humana. Está embrulhada em papel, essa carne. É preciso desembrulhá-la. O papel, aí, como o de açougues antigos, não tem serventia que não o embrulhar da carne fresca. Não se vai ao açougue comprar papel de embrulho. E, contudo, sem o embrulho, a carne estaria morta - inexoravelmente. Seus duplos, incomunicáveis.

6. A heurística indiciária, venatória, carnívora (não resisto: "ôgrica") - é o xamanismo das Humanidades, a evocação possível dos espíritos, a religião que nos resta. Daí o cercar-se dos cuidados contra as fraudes e falsificações, da evocação de espíritos de mentira, da efabulação de oráculos sofismáticos. Contra a incerteza de ouvir verdadeiramente a voz dos túmulos, rituais de exorcismos contra as técnicas de artificialidade retórica. Melhor que permaneçam na cova, do que serem suas mandíbulas articuladas para a pronúncia do não-ser, do nunca-dito.

7. Aí termina a heurística - minha mística. Resta ver o que podem fazer com os mesmos textos a política e a estética. Entendam-me: se não se vai ressuscitar a carne humana enterrada na cova do texto - e não falo de personagens! -, não há como lidar com esse texto sem a destruição completa do arco e a manipulação (em sentido alquímico) das palavras-metais no cadinho da metáfora. Fora do arco, todas as pedras daquele texto constituem, quando novamente articuladas, seja esteticamente, seja politicamente, metáfora, alegoria, imaginação.

8. Textos falam? Não. A intentio operis não existe. Constitui alguma coisa entre a ingenuidade e o programa de partido. Apenas consciências humanas falam - e, atenção, se não são os mortos, são os vivos (também "os céus", do Salmo, não falam coisa alguma que não reverbere, antes, na mente do contemplador - a diferença é que se pode, teórico-metodologicamente, tentar pôr os defuntos do texto a falar). A estética fará nascer novas palavras da página, novos arcos, como fumaças dançarinas, fogos-fátuos, que não durarão para além da excitação extática. É lícito e legítimo. Se sabe que tão somente usa palavras grafadas numa página, há lucidez, aí. Se cuida, coitada, lidar com pessoas antigas, não sabe nada, e engana-se em sua própria imaginação. E não vejo razão alguma para, hoje, uma estética parva - não nesse campo.

9. Também a política pode fazer textos falar - bem sabido: intenções políticas, intenções de pessoas políticas, é que falam aí. A pastoral é uma intenção política. A utopia é uma intenção política. O que querem é o que Marx queria - "os filósofos apenas interpretaram o mundo de forma diferente. O que importa é mudá-lo". Toda utopia é - nesse sentido - marxista. Política. E isso não é nem "saber" nem "sentir" - é "querer". Quando a transformação do mundo diz-se fazer por força de textos do passado - ou se fez heurística, antes, ou se frauda a memória do passado, e, por confessado amor às gentes vivas, violentam-se as gentes mortas, e, com isso, também as vivas.

10. Por isso, Jimmy, penso que sua Tese deverá ir mais fundo do que se foi até agora - é preciso não apenas arrancar de nós o Soberano, mas fazer-nos assumir a coragem de transformar o mundo a partir de nós. No fundo é, sempre, o que se faz. Quando se vai ao passado, apenas se diz ter achado lá - e não se achou - o fogo de Quixote, a faísca de Brancaleone, que incendeia o engajado. Mas é seu próprio coração que costura palavras e sintaxes urdidas no calor da utopia. Não há, então, critério algum, de nenhuma espécie, e o tapete que os fios poídos do passado costuram podem ser os da TdL ou os da Opus Dei - em termos de processo, a mesma coisa. O que ali vai diferente é a ética e o valor. E esses, não estão no texto, mas na carne - e na carne que lê! Há cento e poucos anos não há mais fundamento algum, mas ainda lidamos - conosco mesmos ou apenas com ou outros? - como se fosse necessário (e possível!) ir buscá-los além e aquém.

11. O que é, no fundo, a metáfora, enquanto retórica da política? Vergonha de si, de confessar que se ousa assumir como opção ética u-tópica e a-tópica - sim, sim, pura arbitrariedade e abertura para o outro? Nesse caso, ainda se crê, aí, em fundamento para a Ética? É o que, então? Encantamento de consciências não-emancipadas, frágeis e fracas demais para denunciar, que, também aí, carregam-se pesos e cargas? Que diferença há entre as declarações "Deus te quer escravo" e "Deus te quer livre"? O ser escravo ou livre dessa gente depende de "Deus"? Dos mortos? Das palavras mortas desses mortos?

12. Sinto-me trágico. Assumo o trágico. Suspeito - temo - que, enquanto essa Metáfora, esse Deus, esses mortos, essas palavras sentirem-se eficientes, ainda caminharemos meio-vivos, meio-mortos, um pouco no útero, um pouco na cova. A Metáfora ainda nos distrai. Hospitalar, ela nos anetesia. É preciso a dor definitiva.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Ref. do § 9 - Georges LABICA, As 'Teses sobre Feuerbach' de Karl Marx. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 35.

(post relido e corrigido em 31/01/2008)

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

(2008/15) Sobre metáforas e teologias


“El posto que deja vacante el moribundo

es ocupado por los murmullos de los que rezan”

(Levinas).

1. Inserida entre os densos e extensos parágrafos forjados pela pena do judeu lituano Emmanuel Levinas em seu “De outro modo que ser, o mas allá de la esencia”, essas pequenas linhas me interpelam a assumir radicalmente as conseqüências de minha "pertencencia a la ciudad terrestre", onde meus ecos fazem eco às vozes advindas do vazio deixado por aqueles que vieram antes de mim. Como uma criança chamada pelo nome, sinto-me marcado visceralmente por aqueles que me chamaram à existência e balbuciaram hierarquicamente em meus tenros ouvidos, subordinando-me por inteiro ao(s) dito(s), que deixaram rastros profundos, seqüelas irreversíveis, elevando a frágil doxa que me constituiu a um status elevadissimamente político e cultural, que fora denominado pelos mais sábios da república por teologia.

2. Somos sim, queiramos ou não, filhos e herdeiros da tradição judaico-cristã. A direção do Ocidente, engravidado pela ereção de Platão nas costas de Sócrates, pela die-reção desse casal, desses velhos loucos, que atravessou a cabeça de Páris – como escreveu Derridá em seu "O Cartão Postal". De Sócrates a Freud e além – também nos alcançou na fusão de Jerusalém com Atenas, realizada programaticamente pelos pais espirituais do Ocidente, mestres da Igreja Latina. Muito menos pela episteme logocêntrica de Atenas, fomos alcançados mais pela força avassaladora da ira e sede de poder do ciúme monoteísta, que interpretado com olhos e mentes ocidentais e experimentado com puro dinamismo sacerdotal fez da América Latina o espaço privilegiado da sub-reptícia lógica sacerdotalesca, que reproduziu mecanismos capazes de gerir dependências, atrelar consciências e mascarar ideologias. Recebemos um balbuciar hierárquico de mitos que nos atravancaram os passos, fazendo de nossos ouvidos o parque de diversões em que se moldou o que de mais grosseiro e culturalmente heterônomo poderíamos ter herdado dos nossos pais: o logocentrismo aristocrático grego de Platão e Aristóteles embalado pela lógica sacrificial do monoteísmo sacerdotal judaico do segundo templo de Jerusalém.

3. No profundo entrelaçamento de desejos de dominação religiosa e cultural, a tradição cristã na América Latina foi sendo moldada pelas teias e fios que norteiam as metáforas teológico-políticas – que, como já disse Osvaldo, desde os Persas vem assinalando o uso político do sagrado para estabelecer as regras que definem o poder no parque humano. Junto dessa tradição vieram pedras muito bem talhadas, que serviram para a moldura e arquitetura político-religiosa que se configurou como norma do fazer teológico cristão. Marcados visceralmente pela força da narrativa que determina a posição das pedras na confecção do arco, adentramos piedosamente as Catedrais, ludibriados pelos designs rítmicos de uma doxa traditiva – que não quer ser doxa – cantada em latim ou em vernáculo e orquestrada pela sinfonia de Roma ou por uma ortodoxia protestante que penetrou como espada nossa alma e espírito, fazendo-se passar por algo transcendental. Era a estética do mundo recebido – instrumentalização política da metáfora – que embalou (e embala) nosso modus vivendi.

4. Mas eis que nessa arquitetura religiosa teológico-política, construída pelos séculos e séculos de cristandade, algumas pedras foram se soltando do rearranjo teológico que formatou a grande narrativa que engoliu a todos nós homens e mulheres piedosos de tradição latina, abrindo uma fissura que fez com que as vacas sagradas – cânone, tradição, autoridade – caíssem uma após a outra, dando lugar aos respiros e suspiros de sublevação de homens e mulheres emancipados que não mais querem colocar sua fé em ídolos. Caiu, caiu a grande regula fidei –persa, judaica, cristã – que formata e endossa instituições demoníacas, que cooptam e enrabam tradições mais diversas e heterodoxas, para seu uso e trato, desmantelando culturas, templos, famílias e consciências, que agora servem como bois no pasto a um emaranhado de interesses políticos e religiosos que mantém vivo e ativo um depositum fidei que tem guardado em seus porões o sangue imaculado dos hereges, homens e mulheres inspirados pelo mesmo espírito do pequeno gigante Menocchio, de Ginsburg - O queijo e os Vermes – dos quais essa risível e estandartizada ortodoxia cristã nunca foi digna.

5. Mas não só de força e autoridade é feita à tradição; no ruir de pedras das catedrais, desmantela-se o arco e novas metáforas podem ser visitadas e suspiros e respiros de gente simples inspiram-me a perceber o grande vitral de experiências que penetravam as margens dos suntuosos templos e altares. Lembrei-me do Rubem, em suas “Confissões de um protestante obstinado”: “afinal de contas, que magia estranha é essa que faz com que uma mesma religião sejam coisas tão opostas?”

6. Deixo cair no colo por um pouquinho de tempo meu martelinho nietzscheano e passo a contemplar a pluralidade de vozes que embalam uma nova sinfonia, agora não mais orquestrada pela força heterônoma da cristandade romana ou protestante. Não há mais uma grande narrativa. Há gritos, suspiros, dor, risos, de gente como eu. E por eles me deixo inspirar, num diálogo que nasce das minhas metáforas com suas metáforas, dos meus murmúrios com seus murmúrios. E os sacerdotes, quando entoam suas palavras de ordem e força, deixo-os morderem-se a si mesmos em seus gritos, que me causam risos. E se deixam os gritos e partem com suas barrigas para longe dos púlpitos, a fazer política, pego outra vez no colo o martelinho herdado dos mestres da suspeita e coloco mais uma vez abaixo todos os ídolos. Se faço assim, é porque amo a Igreja, que até onde eu saiba, não é nenhuma grande Catedral, sendo composta por essas vozes simples, que amam, gemem e choram. Por amá-la tanto, sinto-me irremediavelmente atrelado a ela, e me junto aos murmúrios dos que oram diante do altar, que agora está vazio, pois os ídolos foram definitivamente colocados abaixo. Como já disse muito bem Tillich: “o protesto é uma forma de comunhão”.

JIMMY SUDÁRIO CABRAL

(2008/14) Teologia, Exegese e Teologia Bíblica


1. Bem, Haroldo, ao menos pudemos ter acesso ao seu texto, nós, que não iríamos ao congresso. Há males que vêm para o bem. E, já que você quer conversar sobre isso, aceito deixar de lado - por hora - o tema do encantamento da Metáfora pela Teologia.

2. Aliás, pobre Exegese. Na "Teologia", a Exegese é muito mal-tratada. Hans Küng defendeu-a encarniçadamente, em Teologia a Caminho, a meu ver, o melhor momento desse tema no século XX. Mas ainda aguardamos que seja ouvido. A Teologia, como você diz bem, tem acordos e compromissos com a Metafísica e a Igreja, e não decidiu, ainda, sair em campo - os campos exegéticos. Ela gosta dos elíseos alegóricos, metafóricos, normativos. É ter paciência, e, em nosso metro quadrado, enquanto esperamos a conversão da dama, levar a Exegese a sério.

3. Já a Teologia Bíblica "resolveu-se". G. F. Hasel, eu concordo, descreve bem a crise de separação entre a Teologia Bíblica (TB) e a Teologia Sistemática (TS). Hasel discerne oito momentos, desde a Reforma, quatro deles até 1787: 1) TB como auxiliar da TS; 2) TB como fundamento (retórico!) da TS; 3) TB como rival - por causa da emergência do método histórico-crítico - da TS; e 4) TB como disciplina independente da TS - 1787, conferência de Gabler. Desde aí, a "Teologia" cindiu-se em duas áreas incomunicáveis - TB e TS. Na TB, tem havido tentativas de retorno (como o modelo "canonical approach", de B. S. Childs), que, ao fim e ao cabo, costuram relações implícitas com a "fé" constituinte da Sistemática. Retrocesso. A estrada crítica da TB, contudo, desembocou no que era de se esperar - História da Religião de Israel. Nesse campo, Exegese, Fenomenologia da Religião, História, Sociologia, Antropologia, Etnologia, Arqueologia são/contêm pressupostos, métodos e ferramentas imprescindíveis.

4. No ambiente "acadêmico", concordo com você, o problema é o corporativismo de certas metodologias. Penso que o modelo da transdisciplinaridade resolve isso - à custa, claro, de os pesquisadores tornarem-se transdisciplinares. A Exegese constitui - sem nenhuma sombra de dúvida - ferramenta de excelência para o acesso à Teologia Bíblica, ou melhor, História da Religião (e das Idéias) de Israel. Como aplicar Sociologia, aí, sem Exegese? Impossível - e há bons sociológicos que, contudo, não lidam bem com Exegese. A formação de um Exegeta impõem-lhe, necessariamente, abrir-se para o conjunto das Ciências Humanas de recorte indiciário (Ginzburg). Algumas dessas Ciências, contudo, permitem vícios de práxis e síndromes de auto-suficiência. Você está certo em apontar isso, em denunciar isso, e em postular a superação desse corporativismo academicista.

5. Seja como for, a Exegese encontra-se em sua fase madura - o que não significa que não deve, ainda, evoluir, muito menos ue estyeja pronta e acabada. Já a Teologia... Essa, sim, no conjunto das Ciências Humanas, onde foi instalada sem Consulta Pública, está deslocada, pelas justas razões que você indica - e que ela ainda não superou, nem dá ares de querê-lo (cf. minha crítica aos três artigos da Estudos Teológicos, 42/2, que se propuseram a discurtir o caráter epistemológico da Teologia em face do MEC).

6. Eu diria, então, rigorosamente em consonância com você, que: a) as Ciências da Religião, quando debruçadas sobre a Bíblia Hebraica e o Novo Testamento, devem aceitar uma circunstancial orientação da Exegese - sem ela, nem têm como entrar lá; b) a Teologia, no MEC, no conjunto das Ciências da Religião, no concerto das Ciências Humanas, deve, imediatamente, depôr suas armas metafísicas, seus pincéis ontológicos, e iniciar-se no rito da quenosis científico-humanista - o tipo de teólogo que cabe aí é o pesquisador/filósofo/fenomenólogo, não (mais) o xamã/oráculo/sacerdote.

7. Uma ressalva, contudo. Ainda tendemos a gravitar em torno da Teologia "cristã". Não se poderia, mais, falar de Teologia, nesse sentido. Teologia, no MEC, deve constituir-se na forma de uma disciplina universal, onde devem caber todas as noologias mitológicas. Por enquanto, nem o MEC teve como resolver esse imbróglio - cada curso de Teologia ensine sua própria tradição. Foi um começo - mas temos de avançar para uma formatação do Curso de Graduação em Teologia que seja universal e científico-humanista ao ponto de independerem das tradições. Se, aí, houver disciplinas que estudem a modalidade própria das literaturas sagradas, a Exegese apresentar-se-á, pronta e madura para a tarefa. A Teologia está, ainda, longe, muito longe disso. Ou melhor - os exegetas estão prontos, mas os teólogos ainda têm saudades dos alhos do Egito...

OSVALDO LUIZ RIBEIRO

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

(2008/13) Textos sagrados e espírito ecumênico

1. Textos sagrados querem (e precisam) ser lidos em espírito ecumênico. Afinal, suas raízes são ecumênicas.

2. Os textos bíblicos, por exemplo, nasceram em contextos diversos, ao longo de séculos de desenvolvimento humano no antigo Oriente próximo e na Ásia Menor. Falam de experiências, vivências e crenças de pessoas em ambientes distintos. Há toda uma carga de vivências e percepções está aí reunida. Tradições diversas foram guardadas, colecionadas e transmitidas por mãos humanas, de geração em geração. Releituras foram feitas, acrescentando palavras, rearranjando tópicos, sobrepondo sentidos. Os vários 'níveis' estão lá guardados. Viraram coleção com valor ‘especial’. Assim, experiências de vida se tornaram cânon.

3. De cânon, os textos bíblicos querem (e precisam) se tornar novamente vida, e vida em pluralidade. Não pode haver monopólio na leitura e na interpretação de tais textos. Eles chegaram a nós como dádiva, como testemunho, em fidelidade e também em coerção. Nesse espírito precisam ser lidos e transmitidos adiante.

4. A interpretação pode (e deve) ser feita por uma pluralidade de sujeitos hermenêuticos. Bíblia não é texto exclusivo de uma determinada tradição religiosa. Há compartilhamentos com outros. A leitura da Bíblia carece sempre de dialogicidade. O diálogo é sua marca e exigência maior.

5. Assim, o espírito ecumênico das raízes se manifesta (pode se manifestar) também nos frutos, nas leituras, nas interpretações, num interminável diálogo.

HAROLDO REIMER

(2008/12) O lugar da exegese nos programas de ciências da religião

1. Nestes dias acontece em São Paulo, na PUC, o I Congresso da Associação Nacional dos Programas de Pós-Gradução em Teologia e Ciências da Religião (ANPTECRE). Eu estava previsto para estar numa mesa de comunicações sobre o lugar da exegese ou dos estudos de textos sagrados em programas de ciências da religião. Acabei não podendo ir para atender 'tarefas'. Lá diria mais ou menos o seguinte.

2. Não há, na atualidade, clareza epistemológica sobre o procedimento dos estudos nos campos das Ciências da Religião. A nomenclatura não é unificada. Discute-se se é uma disciplina ou se são várias ciências em olhar multidisciplinar. Se se supõe uma pluralidade de ciências, o método e a pertinência de algumas ciências também não são claras.

3. Por extensão dessa discussão no campo das Ciências da Religião, a Teologia também não tem (mais) clareza de sua epistemologia. O reconhecimento “oficial” da Teologia enquanto “ciência cidadã" na academia impõe novas demandas e desafios. A grande desconstrução no campo da Filosofia no século XIX pede um repensar do fazer teológico sem o lastro da Metafísica clássica.

4. Apesar desses desencontros e demandas, Ciências da Religião e Teologia estão juntas como subárea da Filosofia na Capes/CNPq. A relação com a própria subárea de Filosofia carece de precisão e aproximação; há mais desencontros do que encontros. Enquanto Teologia e Ciências da Religião não constituírem área própria não terão alcançado a cidadania acadêmica, pois 'cidadania' presspõe igualdade, ainda que com diferenças.

5. As Ciências da Religião se nutrem epistemologicamente da chamada “virada antropológica”. Fé, crença, religião, teologia são entendidos como frutos da potencialidade e capacidade humana de simbolização. Todo o aparato religioso é entendido como parte constitutiva da construção cultural. Dentro dessa perspectiva, a Teologia precisa prestar contas, epistemologicamente e metodologicamente, do caráter próprio do conceito de “revelação” com que sempre trabalhou e ainda trabalha.

6. Nos cursos de Teologia, de forma tradicional, a exegese ou os estudos sobre a interpretação de textos sagrados – no contexto ocidental trata-se classicamente da exegese e interpretação de textos bíblicos – tem tido lugar assegurado no labor acadêmico. A Renascença e o espírito científico “moderno” ajudaram a fomentar e desenvolver um “método histórico” para o acesso aos conteúdos e à história dos textos. No desenvolvimento de um método “histórico” já se vislumbrava certa tendência de superação de um “método dogmático”, tradicionalmente típico da Teologia. Os estudos de exegese e interpretação, com seu aparato lingüístico, filológico, gramatical, arqueológico, constituem/constituíram elemento emancipador e via de acesso privilegiado às “essências” da religião ou das religiões sem constituir (somente) mero processo de justificação de “verdades” teológicas próprias nas confissões cristãs e entendidas como recebidas por revelação divina.

7. Esse caráter emancipador da exegese e dos processos hermenêuticos tem sido fomentado nas últimas décadas com o acréscimo de novas perspectivas como a “história dos efeitos”, com influência inegável das reflexões de Gadamer. Mais recentemente, a epistemologia e a metodologia da história social têm deixado suas marcas nos estudos de textos sagrados, buscando situar os conteúdos de textos sagrados no campo da história das mentalidades e na própria reconstrução do cotidiano de grupos, comunidade e povos que estão por trás da produção de tais textos.

8. Essa perspectiva, aliada aos estudos em campos conexos como a Arqueologia e a Etnologia possibilitam superar as formulações dogmático-doutrinárias em prol de um acesso (mais) histórico à materialidade e à vida das pessoas e dos grupamentos humanos que projetaram em textos suas realidades, utopias, interdições, leis etc.

9. Agrega-se ainda a perspectiva fenomenológica na análise do processo de produção social de textos (sagrados). Com a perspectiva fenomenológica, busca-se focar o próprio fenômeno do processo e não somente os conteúdos eventualmente aproveitáveis em termos doutrinários ou supra-históricos. Creio que a exegese latino-americana, em boa medida, deu passos importantes neste tipo de estudo, claro em sintonia com o que faz em outros espaços acadêmicos na Europa e Estados Unidos. Há aí um processo de questionamento da tradição e da autoridade que lastreiam a Teologia. Os estudos exegéticos têm a potencialidade de subverter o arco da tradição na medida em que se foca sobre a materialidade e a historicidade dos textos sagrados, em geral tão vitais para as construções das confissões religiosas em particular.

10. É evidente que “novas” perspectivas hermenêuticas como as de classe, gênero, cultura e etnia (feminista, negra, ecológica, homoafetiva) tornam os olhares múltiplos e mais atentos sobre os textos sagrados, suas construções, seus interditos. Interesses de leitor ou leitora podem ajudar a redescobrir e acessar sentidos de textos sagrados dantes não assim percebidos. Aí haverá que se perguntar se o interesse do leitor serve como luz e guia heurístico ou somente como canalizador de interesses.

11. Com isso, a “exegese” tem lugar garantido, honrado e privilegiado na Teologia, com reais chances e possibilidades intrínsecas ao seu método e epistemologia de realizar estudos transdisciplinares e interdisciplinares.

12. A pergunta que fica é quanto ao lugar da “exegese” ou “estudo de textos sagrados” em programas de Ciências da Religião. Aparentemente, a Sociologia e a Antropologia da Religião capitaneiam, ou querem capitanear, os estudos multidisciplinares sobre o fenômeno religioso. Nisso há razões e certa razão, uma vez que estas ciências têm epistemologia e metodologia elaboradas e reconhecidas no campo acadêmico. Mas, o multidisciplinar não pode se esgotar aí.

13. É necessário assegurar, pleitear, propor, defender o lugar justo, digno e honrado da “exegese” ou de “estudos sobre religião e literatura sagrada” em programas de Ciências da Religião. A exegese há tempo já deixou de ser mera fornecedora de conceitos atemporais para a construção de edifícios teológicos dogmáticos para ser uma disciplina crítica e propositiva no acesso às realidades de grupos e comunidades em tempos e espaços diversos. Como justificativa, toma-se o próprio desenvolvimento da epistemologia e da metodologia histórica inter- e transdisciplinar deste campo de estudos. Ciências da Religião deve ter olhares múltiplos sobre o fenômeno religioso em diversos recortes de tempo e espaço – contextos locais e distantes; tempos presentes e tempos passados. A exegese e os estudos de textos sagrados devem ter aí o seu lugar assegurado, não por concessão tradicional, mas por mérito de sua operacionalidade metodológica e epistemológica. É sobre isso gostaria de conversar.

HAROLDO REIMER

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

(2008/11) Metáfora e midrash



1. Haroldo e Jimmy. Os temas de nossas conversas martelam-me a cabeça. O tempo todo. São como "possessões", espíritos que me tomam, e que precisam ser exorcisados. Tenho duas estratégias para expulsá-los de meu corpo: a) capturá-los, o que faço por meio de argumentos, e b) recalcá-los, deixando que o tempo os leve ao cansaço, e eles, então, cansados, durmam. Mas, aí, um belo dia, eles despertam, acesos, e, ai, começa tudo de novo.

2. O tema da teologia como metáfora é meu demônio da vez. Dormitava. Meu post "Por uma nova classificação teórico-metodológica da Teologia" despertou-o, sonolento, e o post de Haroldo, "Sem pedras o arco não existe" deixou-o atarantado. Por isso, respondi com o post "Arcos que sustentam velhas pedras e pedras que formam novos arcos". Com isso, entretanto, não, ele não voltou a dormir, o danado. Sapateia na minha cabeça. E, ontem, Jimmy ainda me pôs contra a parede - retoricamente falando -, propondo-me uma certa pax com Gadamer e sua doutrina hermenêutica da "tradição".

3. Ora, insisto que meu problema com a "metáfora" não se dá no campo da utopia (política) nem da literatura (estética). Eu amo metáforas, bolas de sabão que criamos com nossa boca, e sopramos, e elas voam, coloridas, até estourar. O que eu absolutamente não posso suportar é metáfora entrometendo-se na exegese (heurística). Talvez, como apoio metodológico (analogia), sim - é mesmo imprescindível. Mas como ferramenta de - que termo! - "produção de sentido", na exegese, não.

4. Vejam o caso do midrash. Olha que caso lindinho eu escolhi para ilustrar o que queria dizer. Encontram-se no Bereshit Rabba 1:10 e Midrash Tanhuma Bereshit, c. 5. Respectivamente, diz-se que a primeira letra do Tanak é beth - que é fechada em cima, em baixo e atrás, sendo aberta, apenas, na frente, o que ensinaria que se pode investigar apenas o que está à frente da criação, mas, não, o que está atrás, em cima e embaixo. Além disso, beth é a segunda consoante do alfabeto hebraico, e não a primeira, e o Tanak começou com a segunda, e não com a primeira, porque beth é a consoante incial de "bênção", ao passo que, alef, de "maldição", e, ao contrário do que os gnósticos diziam, continua o Midrah, a criação é boa, e não ruim.

5. Não é "lindinho"? Muito criativo. Chega a ser artístico - e comovente. Mas, cá entre nós, o que isso ensina sobre Gn 1,1?, quero dizer, em termos histórico-críticos, se com isso queremos dizer a intenção de pesquisa semântico-arqueológica e histórico-social da perícope? Rigorosamente nada, não é? Mais do que isso - eu também poderia achar estranho que esse mesmo alef seja a primeira letra do nome "Deus" ('elohim), em hebraico - e brincar de dizer que "Deus" e "maldição" tramam a mesma malha. Mas tudo isso é puro artifício. Sabemos que alegoria e midrash, parentes, não têm por interesse e intenção e o sentido original de uma passagem, mas a "produção de sentido" - lembro-me do Croatto de 84 - como projeto hermenêutico intencional. Midrah e alegoria são recursos estéticos, políticos ou estético-políticos. Nunca, heurísticos. Úteis, se o que você quer é produzir sentido político para comunidades situadas em seu horizonte de sentido, ou se deseja fruir e experimentar subjetivamente a plástica e a imagética das palavras (sem o arco!). Mas, se você quer ouvir o que quem as escreveu quis dizer - e disse - com as palavras que escreveu, deixam de ser úteis, e transformam-se em entraves, estorvos, entorpecentes.

6. Aí reside meu problema com o uso da metáfora na Teologia, quando ela, a Teologia, insiste, nesse caso, equivocadamente, em postular que seu projeto de utopia encontra-se "no texto" (como expressão de consciência histórica). Não, não se encontra, não. Encontra-se na história da recepção desse texto - quando muito -, na história da fé, na história do Cristianismo, na história da Teologia, na história narrativa do mundo e das idéias do mundo. Na consciência do autor daquele texto, não. Na palavra (não no arco) que ele pôs no papel, sim e não. Não, se perguntar a ele o que ele disse. Sim, se fizer dessa palavra uma caixa de Pandora, um brinquedo da cabala, uma potência semântica, um metamorfo, uma massa de modelar, um caleidoscópio.

7. Não acredito que o auxílio que a exegese pode ou deve prestar à Teologia (e à utopia) seja o da subserviência metafórica. Penso que seja, antes, o da denúncia (análise do discurso!) - rasgar a carne dos textos e mostrar a nudez dos agentes que operaram o evento que os consubstanciou. Isso chegará até a revelar - ai de nós! - que muitas das desgraças que hoje podemos observar através da pesquisa arqueológico-semântica desses textos foram geradas por tantos outros projetos de utopia e tantas outras produções de sentido. O que me deixa trêmulo de medo - crer que nossas utopias são melhores do que as deles, porque somos melhores do que eles, e, de qualquer modo, melhor intencionados (o que faz de nossa alegoria, de nossa metáfora, de nosso midrash, algo mais legítimo ou mais eficiente do que os deles) pode ser o primeiro passo para que cometamos os mesmos erros que condenamos. Se, de fato, os condenamos - não evangelizamos, ainda?

8. Um deles, o de que mais tenho pavor e medo - a manipulação do sagrado, a manipulação (bem intencionada!) de consciências por meio da manipulação do sagrado. Meu Deus - isso tem cura? E, se tem, meu organismo suporta o remédio? E, se sim, saberei viver depois de o tomar?

9. Não estou pronto. Nasci antes do tempo. Ah, dominasse eu as técnicas da letargia e da hibernação. Talvez quisesse despertar em cem anos. Mas isso é tolice - nenhuma de nossas utopias pode garantir que, eventualmente, o bem vencerá, e a vida humana, finalmente, dar-se-á à luz. Navegar é preciso, mas, viver, viver não é preciso... é puro risco. Ou para o dizer pela boca de um gênio: "o observador não pode nunca conhecer o ponto exato de encontro entre o real e o dever-ser, a teoria e a prática, o positivo e o negativo. Não pode nunca dominar, ao mesmo tempo, os dois sistemas, o da determinação e o do dever-ser, sendo que o controle de uma das coordenadas exclui o controle da outra. É o salto na indeterminação" (Edgar MORIN, "Os ersatz sintéticos", em: Edgar MORIN, Em Busca dos Fundamentos Perdidos - textos sobre o marxismo. 2 ed. Porto Alegre: Sulinas, 2004, p. 49). Temo que a metáfora, quando a Teologia a usa, seja a atualização dessa fraude, de fingir-se fundar no real o que, de fato, só existe no sonho utópico. O artigo de Morin é um oportuno alerta.

10. PS. Jimmy, terá sido o eco de sua Dissertatio que me fez unir os temas "metáfora na Teologia", "utopia" e "marxismo"?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

(2008/010) Por uma Teologia heurística


1. Na insondável noite dos tempos, inventamos a Teologia. Nós, Homo sapiens, com nossos úteros e nossas próstatas, com os olhos da cara, o medo no peito, o sangue gelado, os pés na terra nua, sob a nigérrima abóbada do firmamentum, balbuciamos estéticas hierofanias, de caça e de caçadores, posto que é assim que o bicho-homem apropria-se do seu mundo - o que é?, de onde veio?, para onde foi?

2. Ah, aí iniciamos a nossa segunda maior caminhada hermenêutica. A primeira, termos roubado do DNA o Norte e o Sul, o Raso e o Profundo, o Sim e o Não, e termos rabiscado à unha, na terra, na carne da gente, nosso mapa. A consciência ("nada" mais) é (que) um furto biológico, ciúmes entre neurônios e cromossomos. Coisa do organismo, disse Nietzsche, o vidente de pathos. Que bom! E a segunda, esboçada no "Prefácio" de Origens, de Eliade, que eu tive ímpetos de tentar corrigir. A "experiência do sagrado" - não com o sagrado, mas do sagrado - é um tipo de experiência sem conteúdo, dita "da consciência". A meu ver, o segundo passo, necessário, universal, depois do primeiro.

3. Estética foi essa noite. De assombros e fogos de artifício. Não é por outra razão que a "experiência do sagrado" (Fenomenologia da Religião) desdobre-se em tantas formas - arte, religião, política, pesquisa, mística. Ela é o levantar-se substantivo e subjetivo do Homo desde o húmus - um passo, Homo, mais um, Hermes (ou Exu, ou Mercúrio, ou Manitu, se quiseres). Essa primeira Teologia é como aquela gosma dos caramujos, a escorrer de nossos corpos, a lambuzar a terra, o céu - Tudo.

4. E vieram os reis. Chegou o grande dia do sol a pino, onde não há sombras, apenas o causticante fogo da política. E a Teologia foi descoberta pelos olhos perspicazes das aves de rapina, que sobem, sobem, o vento/espírito as leva, até que caem sobre as presas, certeiras. Não serão encontradas Grandes Civilizações tradicionais que não sejam construídas como que pela e dentro da Teologia. Assíria, Babilônia, Egito, China. Maias, Astecas, Incas. Tupis. Não foi, contudo, senão a Pérsia que elevou a arte da política teológica ao ápice do aperfeiçoamento - enfiar dentro da cabeça do povo os mitos (Detienne sabe que Platão ensinou isso na República, e eu aposto que Platão copiou isso dos persas). Antes da Pérsia, deuses contra deuses. Com a Pérsia, é cada deus vencido quem traz, pela mão, o vencedor - Ciro, seja Marduk, seja Yahweh. Início - ah, como sou cáustico! - da teologia como metáfora, uso político da estética.

5. Não creio que a era política da Teologia tenha sido a de maior duração. Desde a noite dos tempos estéticos, até o início do cinismo político-teológico, milhares, milhares e milhares de anos. Orgia de hierofanias, soltas, perdidas, porque não fecundadas pela crença da tribo - "a fé vem do ouvir", "mas quem deu crédito à nossa pregação?". O período político da Teologia, contudo, marcou a consciência do espírito humano a ferro e fogo, e fez dos deuses o que as imagens políticas esculpidas no córtex no-los pintam. A poesia aí, é passarinho na gaiola. Canta, passarinho, canta assum preto, canta.

6. Ah, Tragédia! Ah, Loucura! Ah, Cinismo! E foi esse deus que nos prenderam na cabeça, na boca, no ouvido. Fora o da estética... Mas não. Marionete de diabos. Boneco de ventre-loucos. A palrar. A tagarelar. E a fazer de nós os soldadinhos de chumbo, marcha soldado, cabeça de papel. Quando meu amigo diabo, Nietzsche, disse-me que eu era uma besta de carga, uma rês, quase lhe esmurrei a cara, mas, quando dei pelo que ouvia, e fazia, chorei. Depus ali, ritualmente, como quem se desfaz de imagens de velhos cultos trocados por novos, minha idolatria, e minhas roupas, e caminhei, nu, pelo gelo. Vês como me deixas, Prometeu?

7. Agora, nu e congelado, plúmbeo e cianótico, contemplo o horizonte. Vejo reis, ainda, e castelos, e exércitos. É, ainda, a segunda (e maldita) Teologia - é ela quem dá as cartas, como crupiê batoteiro. Que posso fazer, senão esperar o próximo dia, e aguardar que saia de dentro da carne da gente a Teologia de terceira onda? Um dia, estética, hoje, política, amanhã, agora, ah, Deus, quem dera, heurística. Científico-humanista.

8. Ela só pode sair de dentro da gente, da carne da gente, porque ela é filha da descoberta romântica do Homo. Conseqüência ecológica dos campeões do 19. É dentro de nós que ela dormita. Tem medo de acordar, e ver sumirem todas as cortes e todos os reinos. E, de fato, é somente depois que nós mesmos despertamos, convertemo-nos a uma nova existência, uma nova política, uma nova vida, que ela pode acordar.

9. Fala aí - há disciplina como essa?, que corre em nossas tripas como fezes, em nossas veias, como sangue, em nossos capilares, como linfa, em nossas sinapses, como correntes elétricas, em nossos genitais, como emulsões eróticas? Insípida? Ah, não - tem gosto de fel e mel. Incolor? Ah, não - tem a cor do céu e da terra, e, sobretudo, da carne. Por que demoras, amiga minha? Por que demoras? Desperta, desperta, e vem...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

domingo, 24 de agosto de 2008

(2008/009) Mito


1. Não havia Sol. Não havia Lua. Dia e Noite dormiam. Nada bocejava no abismo. Letargo ronronava como Atom. Nigérrimo beijava REM. Só Ele despertara. O perfume dEla, ele disse aos companheiros, o perfume dEla.

2. Amaram-se na Matéria Negra. Amorfo resguardou o olhar. Rubicundo corou. Gozo estremeceu. Lágrima saiu a ver. Desequilibrou-se. Escorregou. Caiu. Rolou. Olharam-na, ainda arquejantes. Caindo. Prigogine dirá que isso é História. Foi Prazer.

3. Inércia tocou com o dedo. Lágrima abriu-se em flor. Abelhas azuis lamberam-lhe a boca. Voaram. Pousaram. Jardim e Cio polinizaram-se. Orgia se fez. Carbono era seu nome. Irmão de Tudo. Pai da Vida.

4. Nós acordou. Ao redor, coito e morte. E Nós, com o fogo no crânio. E Nós, com o fogo no sexo. E Nós, com o fogo nas mãos. Multiplicar. Construir. Imaginar. Acendeu o fogo, e as chamas dançaram - e Nós, com elas.

5. Doeu-lhe a solidão de ser. Acompanhou as sombras até as câmaras de Amor e Libido. Tocou-lhes as faces. Cobriu-lhes a nudez. Secou-lhes os suores. Erigiu-lhes altares. Logo, palácios, e tronos, e cárceres, e rodas. Fomos felizes por uma noite.

6. Fora - contudo - uma áscua da fogueira.

7. Que apagamos.

8. A longa noite se foi. O dia amanhece.

9. Por que choras, amor?

10. Tu és tão quente...

11. Tua lágrima...

12. Escorreu. Chegou ao canto da boca. A ponta da língua a encontra e sorve.

13. Ele a beija. Mas Nós não mais é testemunha.



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

sábado, 23 de agosto de 2008

(2008/008) Arcos que sustentam velhas pedras e pedras que formam novos arcos


1. Haroldo, muito bom seu texto "Sem pedras o arco não existe". Ali fala um Haroldo que me trouxe para a exegese histórico-social - meu velho mestre. Meu "problema", contudo, continua sendo o uso teológico da Metáfora. Ensaio, então, uma polêmica. Retornemos, pois, às pedras e aos arcos. À Ponte.

2. O diálogo entre Marco Polo e Kublai Kan descreve um fenômeno que Edgar Morin chama de "seres de organização". Estes não são seres constituídos pela Tabela Periódica. Mas também não são seres de espírito, noológicos, como as idéias, que só existem, essas, na cabeça da gente, como os deuses, fabricadas elas, fabricados eles, contudo, nas nossas mitocôndrias e sinapses. Seres de organização são emergências físico-organizacionais, extra-humanas. Como os turbilhões. Um turbilhão não é nem a água nem a pedra. É a emergência da força da água contra a da pedra, numa razão específica - se muita, a água cobre a pedra, se pouca, a pedra represa a água, na medida, emerge o turbilhão, que, contudo, não é nem a água nem a pedra, mas que, sem aquela água e aquela pedra, não existe. Assim, o "arco" da ponte de Polo e Kan.

3. Mas atenção! Esse arco não pode ser confundido com a estética arquitetônica variadíssima que, sob outra forma organizacional, aquelas pedras podiam ter composto - e podem, ainda, desmontada a ponte, compor. Uma pedra, duas pedras, três, sete. Espalhadas no chão, não há arco algum. Mas você põe uma meio de lado, encaixa outra, subindo, numa curva, e outra, e desce, e desce, mais outra, faz/fez um "arco", a força que a POSIÇÃO relativa delas gera é o "arco" que as sustentará - e esse arco só existe porque as pedras foram colocadas DESSA e não de OUTRA maneira. O arco não é a soma das pedras. É mais do que a soma das pedras. É a soma das pedras NAQUELA posição, posição essa que faz surgir um ser de organização que é mais do que a soma das pedras.

4. Se pensarmos em textos, agora, esse arco é o quê? O conjunto do "evento" por trás da emergência do texto. A soma inexorável dos agentes do "acontecimento-texto" - intenção do autor (é ela quem arranja/arranjou as pedras desse modo, e não de outro), autor, destinatários, cultura e tradição, contexto situacional, tempo, lugar. Esse conjunto histórico-social é mais do que a soma das palavras na página - é o resultado "hologramático" e "ecológico" da posição relativa de intenções e ações no tempo e no espaço. Se esse arco for tirado, sobram palavras, pedras, mas o "evento" é dissolvido. Virá pó. Como se Kublai Kan decidisse checar a informação/afirmação de Marco Polo, e, para isso, desmontasse a ponte, para achar o arco. Kan teria considerado que Polo lhe mentia, posto que não se encontra arco algum, desmontada a ponte. Claro - ele era o resultado da organização das pedras, e, como tal, era ele que as sustentava - Deus, o efeito é a causa da causa! Complexidade...

5. Mas posso desmontar o arco do texto, não posso? Posso. É a isso que se chama "polissemia". Tomo as palavras do texto, como pedras, mas fora do "evento" organizacional, histórico-social, e uso-as como blocos novos, e monto, agora, o que eu quiser montar. Crio novos arcos. Você está certo. Novos arcos, novos horizontes. Como o Novo Testamento fez - nenhuma citação que ali se faz da Bíblia Hebraica preserva o arco, apenas as pedras, soltas, revolvidas, que, então, deixam-se montar à vontade do mestre-de-obras. Palavras são polissêmicas. O arco organizacional que as sustentava na forma em que foram reunidas e organizadas, não - esse é monossêmico.

6. O que nos coloca, quer-me parecer, na seguinte situação. Quando tomamos textos vétero ou neotestamentários nas mãos, temos de decidir, programaticamente, o que vamos fazer. Lidar com o arco organizacional, histórico-social, unívoco, fechado - com aquela ponte (História)! -, ou, alternativamente, e é legítimo, vamos lidar com as pedras, soltas, abertas, polissêmicas (Metáfora)? A História me quer escravo. A Metáfora, senhor. A História exige a ponte de pé. A Metáfora, que eu a desmonte. Ora, se eu sou dono da Metáfora, se sou eu que efetivamente digo o que faço, por meio dela, o texto dizer que diz ("do Egito chamei o meu filho"), por que preciso do texto? Sem o texto, a História morre. Mas a Metáfora permanece viva, porque nascera na minha língua e vida. A História é a ponte. A Metáfora, a empresa de demolição.

7. Temo que o motivo de a Metáfora (na Teologia!) manter os textos, quando o que ela quer e vai dizer já é ela mesma quem o diz, é seu próprio tesouro desenhado com as palavras velhas, limpadas de seu pó e limo, encontre-se no fato de que os ouvintes que a Metáfora (na Teologia!) quer encantar sejam mais facilmente encantados pela referência a eles... Como os filósofos (mitólogos!) de Atenas, cujo medo da cicuta lhes aconselhou a Metáfora, a Alegoria: dizer suas próprias verdades, como se pousadas em ninho estivessem elas nos Pergaminhos Sagrados.

8. Mostre(m)-me onde é que, possivelmente, me deixo equivocar...


Immortal Bridge - Monte Tai (China)




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

(2008/007) Sem pedras o arco não existe


1. A formulação de uma ‘nova’ teologia há de passar necessariamente pelo modo como lemos os textos fundantes da respectiva tradição. No nosso caso, os textos bíblicos. Quando Rubem Alves, falando de religião, diz que é uma “teia de símbolos”, “rede de desejos”, está indicando para o dado que estamos num campo eminentemente de produção e reprodução de sentidos. Neste universo simbólico, as conexões são ilimitadas e incontroláveis. É o próprio gênio humano em sua capacidade e possibilidade de transcendência. Busca romper as amarras do seu tempo e do seu espaço. E por isso viaja. Habita espaços ainda não existentes. Reaviva as memórias da vivência, para além das gerações. Busca dar sentido ao seu presente. Ah! Se fosse uma viagem livre, sem controle...

2. Os textos, no caso, bíblicos, são as pedras do arco. Os textos são a matéria-prima com que se podem fazer vários arcos. Arcos são construções de sentido; são metanarrativas, que brotam da produção de sentido em contextos originários. Arcos não são iguais em todos os tempos. As curvas arquitetônicas mudam. As técnicas do fazer também se renovam. Mas há uma tendência em se construir pela imitatio, pela reprodução de um modelo projetado em algum momento passado. Assim se tem feito ao longo dos tempos. A teologia ‘metafísico-ontológica’, conforme a proposta de classificação de Osvaldo, tem estado a reproduzir, com pequenas adaptações, modelos de arcos sem considerar as pedras.

3. Uma teologia ‘traditivo-metafórica’ também trabalha com arcos. As múltiplas e, em si, inesgotáveis combinações das pedras produzem arcos de sentido. Vamo-nos acostumando a dizer que cada um produz o seu arco. Pedras são palavras, textos. Estaríamos num labirinto interminável de palavras. Cada qual encontra o seu sentido numa parte do todo.

4. Há que considerar o arco, ou melhor, os arcos, a partir das pedras. No arco da teologia, textos fundantes ou sagrados são pedras. Estas, claro, não são todas do mesmo padrão. Isso nós já sabemos! Basta apreciar o colorido dos textos bíblicos. Quanta variedade de gêneros há aí no multicor canônico! É porque as pedras provêm da história; provêm do cotidiano da vida. Testemunham processos históricos. Vêm carregadas de experiências. Nos textos tem pessoas; tem vidas; tem história. Textos são eles mesmos um arco, menor é claro. A física quântica ensina que mesmo as menores unidades são preenchidas de vazios e estes, em movimento, formam um conjunto.

5. Textos precisam se interpretados a partir da história. Afinal, são produções históricas. Passam, ou podem passar, por releituras; novos sentidos se acrescentam. Mas, sem o acesso histórico perde-se a possibilidade do caminho ‘científico’, isto é, a busca de produzir conhecimento humano sobre os processos que envolvem os próprios textos. Nos últimos séculos, vozes isoladas no início começaram a preparar estes acessos. O chamado método histórico-crítico é expressão disso. Uma leitura histórico-social é sua continuação necessária. Exegese histórico-social dos textos bíblicos precisa ler os próprios textos em perspectiva fenomenológica. Deve buscar elucidar como se dão, ou melhor: se deram os processos geradores de textos. Há que se perguntar pelas intencionalidades nos momentos originários. A pergunta pela funcionalidade retórica não pode estar ausente. Interessa o fenômeno, o processo, para se entender os conteúdos. Afinal, sociedade é sempre espaço de contradições. Interesses e projetos de poder são colocados em prática, ou sofrem resistência, ou, então, até são superados. Deve-se jogar com hipóteses. Indícios, argumentos e provas são o adubo para seu crescimento. Com razão, Osvaldo designa esse jeito de fazer teologia de ‘crítico-fenomenológica’. Com a ‘virada antropológica’, o caminho é por aí.

6. Necessário se faz focar as próprias pedras. Uma ‘nova’ teologia deve ser dialógica na busca da verdade e na produção de conhecimento. Deve ser crítica. Não pode mais trabalhar com a ‘verdade’ pressuposta, pré-elaborada, “revelada”. Há de trabalhar duramente, experimentalmente, para expor os processos, mesmo que seja dolorido. A luz analítica deve clarear o caminho, de forma metodológica. A reserva de domínio não pode mais ser sua marca. Por isso, a teologia no Brasil ganhou ‘cidadania acadêmica’. Essa cidadania ainda deve ser forjada na construção de conhecimento! Não basta mais só admirar a beleza do arco. Há que se perceber como as pedras foram encaixadas, ver o que serviu (e serve) de liga. Isso é tarefa de uma leitura histórico-social e fenomenológica dos textos. Neste sentido: sem pedras o arco não existe!

7. Porém: aí não se esgota o reservatório. O horizonte dos horizontes está aberto!


HAROLDO REIMER

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

(2008/006) Por uma nova classificação teórico-metodológica da "Teologia"


1. Aos estudantes de Teologia, ensinam-lhes as classificações - Teologia Sistemática, Dogmática, Fundamental, de um lado, Teologia Bíblica, de outro. A(s) primeira(s), milenar(es). A(s) segunda(s), teoricamente nascida(s) em 1787 [marco "didático" - a conferência de Gabler, na Universidade de Altdorf (recomendaria um excelente livrinho publicado pela JUERP, "Teologia do Antigo Testamento - questões fundamentais no debate atual", de G. F. Hasel, de quem o Oráculo guarda bons artigos. O primeiro capítulo esboça a história do nascimento das Teologias Bíblicas desde a Reforma)]. É um jeito de classificar as Teologias. Deu certo - até aqui.

2. Entretanto, chega-se a um ponto, onde a distinção entre elas é tão coerente quanto, sob certa perspectiva, a distinção entre a Epistemologia de Platão e a de Aristóteles. Os dois criam no acesso à "Verdade", o que esboçaram em mitos aparentemente antagônicos, mas, no fundo, teologicamente aparentados - a Divindade, a Providência, Deus, nos dois casos, assegurava o acesso à "Verdade". Para Platão, oferecendo-a sacerdotalisticamente (filósofos há que são intestinamente sacerdotais!). Para Aristóteles, oferecendo ao homem pá e picareta, e um princípio universal de inteligibilidade - o Logos. Nos dois casos, mitos, teologias - que poderiam ser representados pelo famoso tema - the truth is out there.

3. Aquelas duas espécies de Teologia, a seu tempo, tornam-se indistintas, também. Quando? Quando as duas operam sob o diapasão de crer e fazer crer que portam, sustentam, carregam, dizem, alguma coisa de verdadeiramente supra-humano. Quando "acreditam" que o conteúdo do que "acreditam" seja "conhecimento". Quando desconhecem/escondem que constituem mitos racionalizados (Morin). Aí, não há diferença entre uma e outra.

4. Por isso, proponho outra classificação - que dê/dá conta da conjuntura atual. Suba-se à montanha e, desde lá, seja observada a comunidade dos teólogos. Um a um, que se vá separando-os por meio dos pressupostos teórico-metodológicos e retórico-programáticos em que se sustentam. Feito isso, penso ser possível estabelecer a seguinte classificação.

5. 1) Teologia metafísico-ontológica. De longe, a maioria - ainda. Ela crê que seu conteúdo constitua "conhecimento" (dentre eles, os modernos gostam de Habermas, porque Habermas lhes permite afirmar que tudo é "conhecimento", logo, também - e sobre-excelentemente -, a "fé"). Retoricamente, "conhecem" "Deus" e "o mundo de Deus" (uns, até, constrangidos, dizem conhecê-los analogicamente e poeticamente). O que confere ao "conhecimento" que constitui seu "depositum fidei" o caráter de "Verdade" - a mesmíssima, a ipssíssima "Verdade" platônico-aristotélica, pais dessa Teologia. Ela sobrevive, a despeito do século XIX. Espero, ansiosamente, o dia de sua morte, conquanto considere de direito que teólogos metafísico-ontológicos falem, escrevam, publiquem. Cabe é a mim preservar-me.

6. 2) Teologia traditivo-metafórica. Eis, aí, uma novidade do século XX. Retoricamente, ela não "crê" mais. O século XIX arrancou-lhe, como a mim, o terceiro olho, aquele com que Lobsang Terça-feira Rampa via os mistérios. Isso é sinal dos tempos. Ela, contudo, não pode prescindir das palavras mágicas da tradição - que são "coisas", sabemos, desde que o Enuma elish trata "nomes" e "seres" como sinônimos. As palavras da fé, no fundo, são o que mantêm o circo da fé, o trapézio, o homem-bala, a mulher barbada, o urso triste. Há, aí, segundo eu vejo, uma conta de chegada entre o século XIX - incontornável - e a "tradição". Mantenham as rotativas rodando! Não parem. "Deus" morreu, mas as palavras, ah, como saem doces da boca... Como entram eficientemente pelos ouvidos... Descobriu-se que, no frigir dos ovos, não era a Providencial Metafísica-Ontologia em si quem "cuidava" do rebanho, mas as "palavras". Satisfaçam-se, pois, dois paladares: mantenham-se as palavras traditivas, as rotinas, traditivas, os gestos, traditivos, até as homilias e liturgias, tudo, não se mude nada, ao mesmo tempo em que se pode afirmar que tudo mudou. Corro todos os riscos da ousadia, mas pronuncio um solene "não", porque, não, o século XIX não passou por aí, não. Mais uma vez, contudo, reconheço o direito de os teólogos traditivos-metafóricos soltarem suas palavras encantadas, de manterem nelas fixos olhos encantados [se os teólogos metafísico-ontológicos são sacerdotes, os traditivo-metafísicos são mágicos, encantadores de serpentes (mas, cf. Sl 58,5-6)], também de escreverem, de publicarem. Mas dessa teologia tenho mais desconfianças do que da primeira.

7. 3) Teologia crítico-fenomenológica. Nascer, nascer, ela ainda não nasceu - meu útero não é suficiente. Esboçou-se aqui e ali. Num Hans Küng, do "Teologia a Caminho", por exemplo (extraviada, contudo, num "Por que ainda ser cristão hoje?"). Mas mesmo nesse Küng que admiro, sem suficiente abertura para o mundo não-cristão (uma teologia africana não tem como ser "histórico-crítica", faltam-lhe os textos). Mas, para uma Teologia dos Cristianismos, sim, só se poderia, hoje, falar de Teologia Histórico-Crítica. Ela, essa Teologia crítico-fenomenológica não se relaciona mais com seu objeto a partir do paradigma de crer/descrer. Ela trasformou-se em Ciência Humana. Seu conteúdo é "mera" carne humana - nada mais (mas isso é tudo!, ao menos tudo que nos esteja à mão). Ela é filha do século XIX, conquanto venha sendo preparada desde que Aristóteles entrou na Europa, montando puros-sangues mouros. No entanto, ainda que deva ser, num certo limite, também "aristotélica", é pós-aristotélica que ela é, posto que "romântica", como todas as Ciências Humanas. Ah, o ogro de Bloch é a nova/nossa ubiqüidade.

8. A meu ver, somente essa última deveria estar no MEC. A primeira e a segunda são programaticamente políticas. A primeira quer fazer da Universidade - Igreja. A segunda quer estar durante a semana na Universidade e, aos domingos, na Igreja. A terceira é filha do tempo, desse tempo, como a alegoria teológica o foi desde Platão a Barth. Ela não é irreconciliável com a "Igreja". Absolutamente. Basta que a Igreja entre definitivamente no século XIX. Enquanto seguir atrás de Barth, só lhe resta metafísica e/ou metáfora.

9. Ah, mas aviso aos navegantes - dói, tá? A Teologia crítico-fenomenológica desmonta todo o edifício teológico. Não fica nada de pé. Quer dizer, fica a tradição, ficam os textos, fica a História. E é por aí que ela vai recomeçar. Como tenho tentado, depois da dor, resignadamente.



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

(2008/005) Alpondras novas para o velho ribeiro


1. Os dias são tais que não permitem a simplicidade de um "sim" ou "não", à moda antiga. A Teologia com a qual sonho perdeu a capacidade de dizer "sim" ou "não" diante da fé. Antigamente - antigamente? - bastava optar-se entre "teísmo" ou "ateísmo". O teísmo tornou-se, ultimamente, tão igual ao teísmo que já escreve apologias! As caravelas se perfilam. Os canhões, como garras de ferro e fogo, expõem-se. Os marujos, excitam-se da excitação da guerra. Bum!, fogos teístas e ateístas a destruir naus e belonaves uns dos outros, bolor a comer bolor, bílis contra bílis. Divertido, não fosse trágico.

2. Talvez labore em equívoco (aceito o risco) - a Teologia que eu espero e anuncio considera essa alternativa anacrônica, imprestável para o bem, nociva. Não há como saber. Aprendemos muito sobre como elaboramos nossos mitos narrativos, e, se não há como fugir da escrivaninha, há que se lidar com eles com a consciência de que são invenções e imaginações - criatividade em ação, cenários noológicos para a nossa movimentação sobre o "real". Mas, não, o "real".

3. Não há como saber se há alguém ou alguma coisa do outro lado. Ah, sim, tudo indica haver mesmo "um outro lado" - mesmo o Big Bang o pressupõe. Mas o que seja ele, e o que haja lá, impossível saber. E impossível de um tal jeito que, se um dia chegarmos a atravessar a membrana, surpresa!, ainda estaremos no lado de cá. Como, pois, insistir nisso? Seja um, seja outro, ambos mitos são invenções. O que há de "certo" nisso são as rotinas com as quais racionalizamos nosso mitos - teísmo e ateísmo. Siameses.

4. A Teologia que me chama abandonou essa questão. Acolherá o mito - como mito. Lidará com ele com carinho e sutileza, perspicácia e inteligência. Sobretudo, saberá que ela mesma o inventa, dia após dia, porque sabe que, sem mitos, não tem como dar um passo sobre a Terra. Mas não construirá nem encherá com ele um novo "depositum fidei". A fé, para ela, não consistirá em adesão a fórmulas cripto-políticas e pseudo-metafísicas. A fé, para ela, será uma atitude de lidar com o mistério, uma curiosidade de fundo, uma seriedade, que até chegará a usar nomes, gotas de mito, as "idéias fracas", de Morin, nomes que se escrevem na areia, e, com o pé, à tardinha, se apagam - seja tu, seja o próprio mar.

5. É curioso que a Renascença tenha chamado túmulo ao milênio que a precedeu. Em certo sentido, grande parte do Ocidente ainda dormita na cova. É preciso levantar, eu acho. Voltar. Começar tudo de novo. Manter o que foi bom. Jogar fora o que foi mau. Piedosamente, sem dó nem piedade. Não basta brincar de metáfora, e, com isso, manterem-se as aparências - é para isso que servem as metáforas político-teológicas: somar o velho ao novo, e manterem-se as peças no tabuleiro. Tem-se que construir um novo jogo, cujas "regras" não sejam mais as de Platão ou Aristóteles, mas aquelas possíveis de serem negociadas a partir do Romantismo.

6. A "velha" Teologia, crispam-se-lhe os pelos da nuca diante dessa palavra. Persigna-se. Genuflexa, ela ora e reza, e esparge água benta. Exorcismo. A "nova", não. A "nova" enamora-se dela, e, como duas serpentes entrelaçadas, dançam até a exaustão. Como pode ser, meu Deus, que descobrirmo-nos livres de ti nos conceda tamanha alegria e liberdade? Se minha hipótese estiver correta, Deus, agora, responderia: "como assim, filho da terra, livre de mim? Não eram meus, filho, aqueles grilhões, nem era eu o tempo todo".

7. E quem diria - libertar-me, libertar a Teologia, libertar Deus, ser a maior das heresias...








OSVALDO LUIZ RIBEIRO

(2008/004) Para aonde iremos nós?


1. Os ventos do XIX foram sim impetuosos. Minaram-se para todo o sempre as tão seguras bases do edifício político-teológico cristão do Ocidente. A fides quaerens intellectum não mais conseguiu manter sob suas teias os diques incontidos de uma razão que decidiu por si mesma não ilustrar os velhos sapatos daqueles que ainda insistiam em caminhar com a fides ecclesiae. Os ares de emancipação derribaram as portas do palácio e encontraram um velho rei nu. Constrangido e temeroso, o pequeno homem enrolou-se nas frágeis toalhas confeccionadas pela tradição, e, estremecido pela insegurança de vestimenta tão frágil, revestiu-se com cordões que o levaram às sendas umbilicais de um monoteísmo político sacerdotal da tradição hebraica, que livraram – uma vez mais – seus pés do abismo e seu frágil corpo do vento frio que soprava sobre a face do seu rosto pálido. O pequeno homem agarrou-se com a força de uma vida em suas vestes, e, encontrou nelas e nos cordões que a sustentavam, o único lastro de toda confecção teológica dos 2000 anos de cristandade: a “auctoritas”. É nela, e só nela, que vai se apoiar a instância fundamental da teologia cristã, tanto protestante quanto católica, na elaboração do mais político dos conceitos engendrados pela lógica do saber teológico: o depositum fidei.

2. Como já foi muitíssimo bem demonstrado pela exegese bíblica – vide a vastíssima produção intelectual de meus companheiros blogueiros – esse imbróglio teológico político de orientação sacerdotal tem seus inícios nas primeiras formatações canônicas das tradições do segundo templo de Jerusalém, onde uma classe sacerdotal vai pintar os primeiros cenários de uma política religiosa que vai programaticamente estabelecer um monoteísmo político sob administração de sacerdotes. Não bastasse esse fundamento inconteste da gnoseologia teológica cristã ocidental, o platonismo cristão veio dar as últimas amarras nos trapos de toalha do pequeno homem, dando a estes um brilho transcendental, fazendo com que o homenzinho fraco se tornasse sisudo e confiante. Assim, foram postas as bases da metafísica cristã; elaborada a arquitetura teológico-política do Ocidente; lançado os lastros políticos, metafísicos e epistemológicos da civilização cristã ocidental; eis aqui – timidamente – a traditio fidei, as bases fundamentais do depositum fidei. Não foi gratuitamente que o velho Borges, em seu perspicaz “Sobre Chesterton”, escreveu que o genial cristão inglês – Chesterton - “submeteu suas perguntas e contradições fundamentais à imaginação monoteísta da teologia judaica, submetida ao logos de Aristóteles e Platão”.

3. Impossível não sentir-se tentado pelo aconchego e a calmaria do palácio – “miseráveis homens que somos, quem nos livrará do corpo dessa morte?”. Mas eis que um dia o pequeno homem foi inspirado por esse vento impetuoso que arrebata portas e cancelas, e desse dia em diante, não quis ser mais rei. Deixou para trás seus pequenos trapos; nu e com seus pés descalços, foi levado pelo vento, e, diante do abismo balbuciou com lágrimas sua mais sincera oração, que tal como o vento, não consegue se explicar de onde vem, e nem mesmo, para onde vai.

JIMMY SUDÁRIO CABRAL

sábado, 16 de agosto de 2008

(2008/003) Complexidade



1. Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.

_ Mas qual é a pedra que sustenta a ponte?, pergunta Kublai Kan.

_ A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra, responde Marco, mas pela curva do arco que estas formam.

Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta:

_ Por que falas das pedras? Só o arco me interessa.

Polo responde:

_ Sem pedras o arco não existe.

(Ítalo CALVINO. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Cia. das Letras, 1990, p. 79)

2. Também os textos são assim. Exatamente assim.









OSVALDO LUIZ RIBEIRO

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

(2008/002) Para uma nova teologia, uma nova fé


1. Ah, sim, os ventos do 19 sopraram na minha cara. Ventos gelados da caverna escura e romântica. Ogros vorazes - como o de Bloch! - bateram-me na cabeça com antigas clavas. Comeram-me a carne. Roeram-me os ossos. Lambem os beiços, agora. Chupam os dedos. Fazem a digestão.

2. Não, não é para qualquer um gostar que lhe soprem os ventos na cara. Dói. Corta. Fere. Sem cura. Na cabeça, a clava deixa uma ferida exposta. Incurável. E o hálito desses monstros, meu Deus!

3. Foi mesmo a clava daqueles ogros que matou Deus. Metodologicamente! Acharam-no dentro de nós. É como quem vê uma coisa, coça o olho, e ela some. Mas ele, o olho, não. Não sei quanto a mais ninguém - eu, de minha parte, rio, com aquele riso de quem se ri de matar a charada, ainda que tenha sido outro o assassino. Século de coçadores de olhos, o 19 constrói-se como peças de uma engrenagem - um dizendo a partir do outro, para além do outro, com e contra o outro, escaladores de zigurate, de modo que, no fim, a velha vida não é mais possível. Não, não é. Depois de Kant, Schopenhauer, Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud, oftalmologistas, a velha vida não é mais possível. A velha teologia. Os velhos sonhos. Ah, e como gosto disso!

4. Uma nova? Sim! Humana, demasiado humana. Emancipada. Crudelíssima. De modo que ela há de perguntar-se, até, incoveniente que é essa insofismável Nova Senhora Teologia, que "crer" o que é? Não há de se contentar nem com a câmara escura e segura do "crer" - até aí ela vai meter a mão, como ogro a catar ratos no buraco, e há de espremer a gente, até sangrar, até ouvirem-se os craques dos ossos quebrando. Isso de "crer", o que é isso?

5. Também (em havendo) o "crer" na "nova teologia", também esse "crer" não será, não mais, como o antigo. Não será (mais) "saber". Não será, menos ainda, um "outro tipo" de saber, acima dos saberes emancipados das ciências, um quarto escuro de recalques infantis ignorados, muito menos, um gueto retórico de metáforas politicamente calculadas. Ah, e por favor, tampouco metáforas!

6. Para uma nova teologia, um novo crer - que sabe o que é, e não se ilude, não se esconde, não tem medo de confessar-se sonho e imaginação, quimera e fantasia. Uma nova fé, Morin, que nos pediste, para fazer par com teu novo ateísmo, e dançar com ele a valsa do desconhecido e desejado.

7. Não sei quanto aos meus amigos. Quanto a mim, quero uma nova teologia, cheirando a barro - mas verdadeiramente, honestamente, sinceramente, iniludivelmente, ineludivelmente, cheirando a barro. Uma teologia orgânica. Mais do que teologia como ciência humana, uma teologia como ciência cognitiva, identificado que seja seu DNA nas minhas tripas, no meu fígado, na minha próstata.

8. Ah, meu amigo Nietzsche, tu que sabias que a consciência humana era - ainda é - a última etapa do desenvolvimento orgânico do Homo. Sim, sim, meu amigo - e a pérola de dois mil anos dessa história, também ela, não, meu amigo?, é sangue e mitocôndria.

9. Mas alto lá! Que não seja como o profeta que morre exatamente agora que viu o messias, nem como os filmes que acabam no momento que a felicidade finalmente triunfa sobre hora e meia de tristes desencontros. Imploro-te, vida, permite que meus olhos vejam florescer esse jardim, que a minha boca beije ainda mais mil de mil vezes a de Bel. Dê-me cem anos. E, então, se quiseres, me leves. Antes, não.

10. Agora, vai, sopra.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

terça-feira, 12 de agosto de 2008

(2008/001) Fazer teologia se tornou tarefa mais complexa

1. Em outros tempos, o peso de Metafísica, como um lastro, constituía garantia do discurso teológico ou da síntese teológica. Nos tempos posteriores aos “grandes descontrutores” do século 19 (Nietzsche e outros), Deus, enquanto princípio metodológico, está morto. Claro, para quem crê e se vincula com o Transcendente, pela oração, pela contemplação e pela meditação, Ele continua o mesmo: vivo e pessoal.

2. Para o fazer teologia, contudo, o referencial mudou. O que os descontrutores fizeram no campo reflexivo, filosófico, teólogos relevantes fizeram no campo propriamente teológico. Dietrich Bonhoeffer, por exemplo, a despeito de sua profunda fé, piedade e do martírio pela fé em Deus, propunha fazer teologia “como se Deus não existisse”. Para ele, o mundo emancipado [de Deus] constitui o quadro referencial para fazer teologia. Outros, como Tillich, propõem o método da correlação entre a fé e a cultura. Nesta perspectiva, fazer teologia é constante e incessante diálogo com a diversidade cultural. Neste caso, por pressuposto e por extensão, fazer teologia é dialogar com um patrimônio universal, de todas as culturas. Fazer teologia é tarefa ecumênica! Mais: é macro-ecumenismo enquanto processo.

3. A chamada ‘virada antropológica’ na teologia complicou a tarefa. Sem o lastro metafísico como pressuposto metodológico, cabe construir e reconstruir o fazer teologia a partir da ‘profanidade’ da cultura humana. Há que se ter claro: o que dizemos sobre Deus é nosso dizer, ainda que a maior autoridade religiosa o diga. Os mestres da suspeita no campo da Hermenêutica não nos deixam mais, ingenuamente, elaborar o discurso sobre Deus sem considerar os caminhos e os modos de fazer esta tessitura de palavras, nas quais Deus vem tomar morada, como quem deita na rede, uma rede das palavras. Há que se perceber o modo como fenomenologicamente se constrói o discurso. A razão deve necessariamente ser articulada. Ratio passou a ser elemento integrante do fazer teologia. Isso, contudo, não constitui novidade. A dimensão racional do labor teológico já acompanha o pensamento teológico crítico nos últimos séculos. As propostas nem sempre constituíram o mainstream no nascedouro e no processo; consistiam mais em propositura de insights, clarões em mundo de escuridões. Por conta do dissenso, seus propositores permaneciam em espaços marginais. Spinoza que o diga! Mas as sendas se transformaram em caminhos.

4. Agora há que construir novos caminhos. Abrir novas sendas. Esboçar novos insights. Dialogar sobre a [nova] complexidade da tarefa do fazer teologia é objetivo deste blog. Está dado o chute inicial!

HAROLDO REIMER
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