sábado, 23 de agosto de 2008

(2008/008) Arcos que sustentam velhas pedras e pedras que formam novos arcos


1. Haroldo, muito bom seu texto "Sem pedras o arco não existe". Ali fala um Haroldo que me trouxe para a exegese histórico-social - meu velho mestre. Meu "problema", contudo, continua sendo o uso teológico da Metáfora. Ensaio, então, uma polêmica. Retornemos, pois, às pedras e aos arcos. À Ponte.

2. O diálogo entre Marco Polo e Kublai Kan descreve um fenômeno que Edgar Morin chama de "seres de organização". Estes não são seres constituídos pela Tabela Periódica. Mas também não são seres de espírito, noológicos, como as idéias, que só existem, essas, na cabeça da gente, como os deuses, fabricadas elas, fabricados eles, contudo, nas nossas mitocôndrias e sinapses. Seres de organização são emergências físico-organizacionais, extra-humanas. Como os turbilhões. Um turbilhão não é nem a água nem a pedra. É a emergência da força da água contra a da pedra, numa razão específica - se muita, a água cobre a pedra, se pouca, a pedra represa a água, na medida, emerge o turbilhão, que, contudo, não é nem a água nem a pedra, mas que, sem aquela água e aquela pedra, não existe. Assim, o "arco" da ponte de Polo e Kan.

3. Mas atenção! Esse arco não pode ser confundido com a estética arquitetônica variadíssima que, sob outra forma organizacional, aquelas pedras podiam ter composto - e podem, ainda, desmontada a ponte, compor. Uma pedra, duas pedras, três, sete. Espalhadas no chão, não há arco algum. Mas você põe uma meio de lado, encaixa outra, subindo, numa curva, e outra, e desce, e desce, mais outra, faz/fez um "arco", a força que a POSIÇÃO relativa delas gera é o "arco" que as sustentará - e esse arco só existe porque as pedras foram colocadas DESSA e não de OUTRA maneira. O arco não é a soma das pedras. É mais do que a soma das pedras. É a soma das pedras NAQUELA posição, posição essa que faz surgir um ser de organização que é mais do que a soma das pedras.

4. Se pensarmos em textos, agora, esse arco é o quê? O conjunto do "evento" por trás da emergência do texto. A soma inexorável dos agentes do "acontecimento-texto" - intenção do autor (é ela quem arranja/arranjou as pedras desse modo, e não de outro), autor, destinatários, cultura e tradição, contexto situacional, tempo, lugar. Esse conjunto histórico-social é mais do que a soma das palavras na página - é o resultado "hologramático" e "ecológico" da posição relativa de intenções e ações no tempo e no espaço. Se esse arco for tirado, sobram palavras, pedras, mas o "evento" é dissolvido. Virá pó. Como se Kublai Kan decidisse checar a informação/afirmação de Marco Polo, e, para isso, desmontasse a ponte, para achar o arco. Kan teria considerado que Polo lhe mentia, posto que não se encontra arco algum, desmontada a ponte. Claro - ele era o resultado da organização das pedras, e, como tal, era ele que as sustentava - Deus, o efeito é a causa da causa! Complexidade...

5. Mas posso desmontar o arco do texto, não posso? Posso. É a isso que se chama "polissemia". Tomo as palavras do texto, como pedras, mas fora do "evento" organizacional, histórico-social, e uso-as como blocos novos, e monto, agora, o que eu quiser montar. Crio novos arcos. Você está certo. Novos arcos, novos horizontes. Como o Novo Testamento fez - nenhuma citação que ali se faz da Bíblia Hebraica preserva o arco, apenas as pedras, soltas, revolvidas, que, então, deixam-se montar à vontade do mestre-de-obras. Palavras são polissêmicas. O arco organizacional que as sustentava na forma em que foram reunidas e organizadas, não - esse é monossêmico.

6. O que nos coloca, quer-me parecer, na seguinte situação. Quando tomamos textos vétero ou neotestamentários nas mãos, temos de decidir, programaticamente, o que vamos fazer. Lidar com o arco organizacional, histórico-social, unívoco, fechado - com aquela ponte (História)! -, ou, alternativamente, e é legítimo, vamos lidar com as pedras, soltas, abertas, polissêmicas (Metáfora)? A História me quer escravo. A Metáfora, senhor. A História exige a ponte de pé. A Metáfora, que eu a desmonte. Ora, se eu sou dono da Metáfora, se sou eu que efetivamente digo o que faço, por meio dela, o texto dizer que diz ("do Egito chamei o meu filho"), por que preciso do texto? Sem o texto, a História morre. Mas a Metáfora permanece viva, porque nascera na minha língua e vida. A História é a ponte. A Metáfora, a empresa de demolição.

7. Temo que o motivo de a Metáfora (na Teologia!) manter os textos, quando o que ela quer e vai dizer já é ela mesma quem o diz, é seu próprio tesouro desenhado com as palavras velhas, limpadas de seu pó e limo, encontre-se no fato de que os ouvintes que a Metáfora (na Teologia!) quer encantar sejam mais facilmente encantados pela referência a eles... Como os filósofos (mitólogos!) de Atenas, cujo medo da cicuta lhes aconselhou a Metáfora, a Alegoria: dizer suas próprias verdades, como se pousadas em ninho estivessem elas nos Pergaminhos Sagrados.

8. Mostre(m)-me onde é que, possivelmente, me deixo equivocar...


Immortal Bridge - Monte Tai (China)




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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