1. A seguir, alguns fragmentos do ritual do Kaparot. Trata-se de um ritual da tradição judaica, nos termos do qual os "pecados" da pessoa são "transferidos" para a galinha que, depois, então, morta, paga, assim, pelo pecado do pecador - o justo, pobre galinha!, pelo pecador judeu. Assista com comedimento de quaisquer observações negativas, porque, mais abaixo, farei alguns comentários à luz da "recepção" cristã desse sacrifício, os vídeos a seguir:
Kaparot no bairro Mea Shearim
Rabino Saadia Truzman, em Ashdod
Kaparot em Jerusalém
2. Muito bem. Aqui, um vídeo com incorporação desautorizada (clique para assistir) - ele acontece no Brooklyn, em plena Nova York. Se você quiser assistir a um vídeo/denúncia contra a "violência" do ritual contra os animais - as galinhas - pode clicar aqui. Para pronunciamentos magoados de judeus franceses quanto à possibilidade de a França proibir a matança, cf. aqui. Todavia, não foi por esta razão que escrevi o post. Foi, antes, para recordar duas questões: ele está presente na alma da tradição sacerdotal bíblica. Não, veterotestamentária, não - bíblica: Antigo e Novo Testamentos.
3. No Antigo, por exemplo: Lv 15. Não se trata - lá - de galinha, mas de pomba e rolinha, no que não reside lá grande diferença. O ritual é muitíssimo parecido. Toma-se o animalzinho, roda-se com ele sobre a cabeça do sacrificante, e pronto, está expiado o pecado. Bem, não ainda - é necessário matar o passarinho, porque, já Paulo sabia disso, "sem sangue não há remissão de pecado". Logo, matava-se a avezinha. O mesmo que fazem os judeus religiosos acima, hoje. Aliás, basta digitar "kaparot" no Youtube e assistir a dezenas de outros mais. Parece haver um na/da Bahia, se com "Salvador" se pode interpretar a Bahia.
4. O sacrifício com galinhas, e não com pombas ou rolinhas, pode parecer mais violento. Bem, mas no Templo de Jerusalém se fazia sacrifícios com animais maiores - bem maiores. cordeiros e bois, por exemplo. Não devia ser uma cena muito fácil, ao menos não para nossos estômagos mais fracos. Mas o "cordeiro" talvez represente melhor o sacrifício do que a galinha (na Grécia, se sacrificavam galos. Sócrates, antes de morrer, lembrou que devia um galo a Esculápio)...
5. Não é por isso que Jesus foi interpretado como "o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo"? O "sacrifício" está no centro nervoso da teologia do Novo Testamento, que, com esse movimento, pôs Jesus no Templo. Talvez Jesus não tivesse aprovado esse movimento - justo ele, que pôs-se severamente contra o Templo. Em todo caso, seja Paulo, seja "João", o tema de Jesus-Cordeiro, Jesus-sacrificado, cruz-como-altar-de-sacrifício, é aí, no ritual judaico, cruento, de sangue, que se encontra a "chave". Não surpreende que a "Ceia do Senhor", a "eucaristia", tenha sido interpretada bastante literalmente no início - cristãos eram acusados de beber sangue, de canibalismo! A noção de "sacramento" aprofunda essa percepção imagética: comer a carne, beber o sangue...
6. O sacrifício judaico em si - mesmo o kaparot atual - é muito parecido com o sacrifício africano. Bem, pelo menos o corte cirúrgico no pescoço da galinha. Observe o vídeo abaixo, de um ritual de Burkina Faso, África.
Aqui, sacrifício "africano", em Burkina Faso
7. O sacrifício judaico é de origem africana, ou, no mínimo, mantém íntimas relações históricas com ele? Todavia, na África, as coisas me parecem outras. O sacrifício do animal é para que os deuses "comam" - é alimento para o deus, é uma oferta. Também é assim, ainda hoje, nos sacrifícios do candomblé. Em Israel, não: Yahweh vai matar quem não estiver devidamente expiado - e o preço que ele cobra é sangue: ou o seu, ou o do animal expiatório, seja a rolinha, a pomba, o cordeiro, o boi... ou a galinha. A narrativa "pós-sacerdotal" (a "javista") do dilúvio tem a função de inaugurar essa interpretação do sacrifício: bem se vê, bastante recente e de alma sacerdotal (golah).
8. Se o ritual do Kaparot estivesse sendo realizado com galinhas já lá no Novo Testamento, acho que nem Paulo nem João teriam usado a figura do Cordeiro, e, hoje, leríamos no Evangelho: "eis a Galinha de Deus, que tira o pecado do mundo".
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS. Kaparot:
Erev (a véspera de) Iom Kipur é saudado pelo antigo costume de kaparot, realizado antes do raiar do dia. O homem, ou menino, apanha um galo; a mulher, ou menina, uma galinha. Seguram-nos nas mãos, recitando a bracha bnei adam e giram a ave nove vezes sobre a cabeça. A prece continua: “Seja esta a minha expiação...” Isto é feito, com o intuito de evocar um arrependimento sincero, para que não tenhamos destino semelhante ao da ave, graças à mercê de D’us, Que nos perdoa após o arrependimento verdadeiro. Em seguida, a ave é solta e enviada ao shochet (profissional religioso que abate animais para fins de uso), e o valor correspondente à ave é dado aos pobres. Este costume também pode ser feito com dinheiro.
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