1. O waw hebraico é uma letra comum. O fato de ser empregado para escrever o Tetragrama, isto é, as quatro consoantes que, na Bíblia Hebraica, sustentam o nome "divino" (YHWH), não faz dela uma letra excepcional. Pelo menos não se não estamos lidando com cabala... Depois de prestar seus serviços ao deus judeu, pode-se encontrá-la a varrer ruas, capinar quintais, lavar banheiros, pôr o lixo para fora, brincar na rua,, banhar-se no lago, caçar, matar, nascer, viver. É uma letra como qualquer outra. Waw.
2. Segundo os gramáticos - e eu sou obrigado a lhes dar razão, depois de ter eu mesmo traduzido alguns textos da Bíblia Hebraica -, o waw pode ser traduzido por uma série de palavras em Língua Portuguesa. Por exemplo: e, pois, então, mas. Dependendo do contexto, ele pode ser traduzido por conjunções até mais sofisticadas, como porque.
3. E é nisso que reside, para mim, um mistério. As palavras e, pois, então e mas carregam significados diferentes. João procurou e achou. Adição. João procurou, então, achou. Conclusão. João achou, pois procurou. Explicação. João procurou, mas não achou. Adversidade. Só a palavra, por si, já dá o sentido.
4. O waw, todavia, é uma letra só. Ele pode, e pode, o contexto confirma, assumir qualquer daqueles sentidos. O (meu) problema é: e como as pessoas sabem qual sentido ele carrega? Como eu sei se um waw tem o sentido de e, de pois, de então ou de mas, se não algo mais complexo?
5. O e da Língua Portuguesa também pode assumir sentidos adversativos, além do aditivo. João procurou e não encontrou. O e aí, apesar de estar grafado na forma clássica da aditiva, o antagonismo entre a intenção do verbo procurar e a presença do não deixam claro que João não foi feliz, era para ter achado, não achou, de modo que o sentido é adversativo.
6. O problema é que nem sempre, em Hebraico, o contexto é claro. Gn 1,1-3 é um caso. "E o Espírito de Deus pairava sobre as faces das águas" (1). Há quem traduza: "mas o Espírito de Deus pairava etc.). E eu mesmo traduzo "pois", e não e ou mas. As três traduções são gramaticalmente possíveis, mas apenas uma - ou nenhuma - pode estar correta: as três, impossível.
7. Há trevas sobre as faces do abismo e o Espírito paira? Há trevas sobre as faces do abismo, pois o vento agita? Há trevas sobre as faces do abismo, mas o Espírito paira? Não tenho a menor dúvida de que o sentido geral do contexto dos versos 1-3 determinam se se trata de um e, de um pois ou de um mas - para mim, um pois. Todavia, também a decisão pelo sentido geral do contexto depende do sentido que se projeta sobre esse waw.
8. Assim, fico com um problema para resolver. Decidi-me pelo pois, mas não sei se a decisão é a correta. Não pelo fato de que outras possibilidades me pareceriam melhores: o e e o mas não me parecem mais adequados, porque não me parece que a grandeza que age sobre as águas seja uma grandeza criativa - antes, ela é a responsável pelas trevas (von Rad também pensava assim: tempestuous wind, ele pensava, e precisava, a hurricane).
9. Uma saída que estou tentando é imaginar que nós perdemos metade da capacidade de captar o sentido do waw com facilidade: a performance oral. Os nossos textos estão mortos de espírito - são letra e carne, como os ossos secos do vale de Ezequiel. É preciso respirar sobre eles, lê-los, para lhes devolver a alma. E, então, acabamos, às vezes, pondo almas erradas nos corpos que ressuscitamos.
10. Mas esses textos eram lidos para as pessoas, não por pessoas. Na leitura pública, em voz alta, a performance do leitor é que dá a alma à letra. Se o leitor é o próprio escritor/autor, ou se está próximo dele, impregnará o corpo morto da alma semântica adequada, por meio da locução. O sentido está na soma da letra e do espírito da leitura...
11. Um waw pode, então, ser lido (pronunciado) de um jeito aditivo, de um jeito explicativo, de um jeito conclusivo, de um jeito adversativo. O ator, sim ator, porque a leitura, então, era interpretação viva do espírito pressuposto na redação intencional do autor, que ditou ou escreveu o texto, o ator, então, encenava o som, fazia a palavra dançar desse ou daquele jeito - e a platéia, então, bebia dessa dança de palavras aladas.
12. A nós, cabe apenas catar ossos caídos no chão, ossos secos. A vida que colocaremos aí será uma tentativa honesta de fazer com que dancem à moda antiga. Ou, não. Podemos simplesmente esquecer os antigos, inventar almas novas e pôr essas palavras emboloradas a dançar conforme o espírito de nossa época, de nossa fé, de nossa cultura.
13. Não me interessa isso. Fosse a Bíblia um livro de ossos mortos, cuja vida fosse eu a dar a eles, segundo minha cultura, minha fé, meus costumes, não leria sequer um verso dela. Hoje, depois de ter-me libertado da catequese e da leitura confessional dos textos, leio-o como um mago, um bruxo, um alquimista, um músico, tentando recuperar o som que antigas paredes reverberaram. Partituras, ei-las, as linhas da Bíblia! Io, direttore d'orchestra...
14. Mas talvez caiba outra metáfora: as almas dos wawim que a Bíblia Hebraica contém vagam por aí, como pirilampos, vagalumes nas sombras. Talvez eu possa capturá-las, pô-las outra vez na garrafa de onde fugiram há tanto tempo, e fazê-las brilhar outra vez...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
(1) A meu modo de ver, essa tradução - a clássica, de Almeida, está errada. Mas não quero discutir a tradução aqui, e não vou desviar a atenção para o caso. Apenas registrar que eu traduzo assim: "pois um vento tempestuoso soprava sobre as faces das águas". O que me interessa é se o waw que abre a sentença tem sentido aditivo (e), explicativo (pois), conclusivo (então) ou adversativo (mas).
PS. Para que waw fosse escrito corretamente, segundo a notação internacional (Lambdin), deveria haver um traço sobre o a [em vez de se sublinhar o a, escreve-se um traço em cima dele).
PS. Você pode escrever vav, se quiser. Não machuca ninguém. E o som de waw é o mesmo - vav.
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