domingo, 29 de janeiro de 2012

(2012/104) Da magia dos profetas à poesia de Vandré



1. Belíssima a letra e agradabilíssima a melodia de Aroeira, de Geraldo Vandré. Não conhecia.

2. Esse conjunto de letra e melodia me transportou ao Antigo Testamento e a um possível equívoco (assim penso), ainda em vigor. Trata-se do que conhecemos como "profecia".

3. Hoje, lêem-se as profecias do Antigo Testamento como se fossem as centúrias de Nostradamus - são "previsões sobre o futuro". O procedimento hermenêutico não é novo, começou desde tão cedo quanto o afastamento dos oráculos de seu contexto profético original.

4. Tomados pela alegoria, foram projetados para outros tempos. Alimentados pelos movimentos messiânicos, assumiram dimensão fundante. Cooptados pela tradição cristã, nostradamizaram-se definitivamente, projetando-se para uma assim crida segunda volta do rei...

5. Todavia, na minha opinião, os oráculos não eram previsões sobre coisa alguma - nem mesmo sobre eventos relacionados aos próprios profetas, a seus próprios dias.

6. Não eram previsões - quero dizer, defendendo uma tese. Um profeta não antevia coisa alguma, não previa nada, não tinha um terceiro olho - a despeito do nome que recebiam: videntes (um aspecto frágil de minha teoria?).

7. Para mim, o que faziam era do campo da magia - evocação. A estrutura da profecia era poética, no sentido de "poiesis", criação. Mas o que se criava, aí, não era apenas a própria poesia, o oráculo, peça artística, sem dúvida, desenhada à mão - era, antes de tudo, a realidade que se capturava na poesia e, magicamente, se evocava. É praga. Não "profecia". É evocação de ralidade, magia, não previsão, tarô, búzio ou quiromancia...

8. Quando o profeta falava, ele evocava a realização do que falava. Quando dizia que Babilônia cairá, não estava prevendo que ela cairia: estava fazendo com que caísse. No seu imaginário, no modo como opera, é porque a boca se abriu, a palavra foi proferida, que a coisa acontecerá - a palavra não voltará vazia.

9. Praga.

10. É, talvez, a diferença entre a profecia do Antigo Testamento e a música de Vandré. A letra de Vandré, e ele sabe disso, não tem poder mágico, não constrói mundo, não tem poder de virar contra o senhor o galho de aroeira com que mandou bater às costas do escravo. Não, não tem.

11. É desejo. É tomara! É vontade! É sonho! É, talvez, (de)marcação de lugar, de posição: estou aqui, resisto, não me entrego. Mas não é mais magia.

12. Nesse sentido, está mais para o Sl 53, que termina com um "quem dera". Um quem derá não é mais a coragem, a ousadia de cuidar construir, pelo poder da boca, um mundo (melhor). A política faz saber ao profeta que a magia e nada é a mesma coisa, que não são as bocas dos profetas que movem o mundo, mas as rodas dos carros, a espada dos soldados, o cetro dos reis.

13. Quem dera venham de Sião salvações para Israel, diz o poeta no Sl 53. Ele sabe que podem vir, mas não tem mais confiança nisso. É Sião, ele sabe. É a cidade de Davi... Não se pode esperar coisa boa de lá, depois de tudo que se sabe que os reis - e seus sacerdotes - podem fazer e fazem.

14. Vandré não está tão desanimado. Ele ainda confia(va). Mas não é mais magia. O mundo não está mais entregue aos profetas, aos magos, aos homens-medicina, aos senhores do fogo: o mundo, agora, é da política, da força, do poder.

15. Mas ainda se pode confiar e esperar que o seu dia chegará, carcará.

16. Ou, eventualmente, decidir que não se precisa esperar pelo dia do carcará - que esse dia pode começar agora, por aqueles que não esperam, mas fazem acontecer, porque a magia saiu da boca e foi para as mãos e os pés.




Vim de longe, vou mais longe Quem tem fé vai me esperar Escrevendo numa conta Pra junto a gente cobrar No dia que já vem vindo Que esse mundo vai virar Noite e dia vêm de longe Branco e preto a trabalhar E o dono senhor de tudo Sentado, mandando dar E a gente fazendo conta Pro dia que vai chegar Marinheiro, marinheiro Quero ver você no mar Eu também sou marinheiro Eu também sei governar Madeira de dar em doido Vai descer até quebrar É a volta do cipó de arueira
No lombo de quem mandou dar




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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