sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

(2008/110) Mentir para si - Nietzsche e a teologia


1. Haroldo, penso que é incontornável, para nós, a leitura de Nietzsche, o rebelde aristocrático, de Domenico Losurdo (mais de mil páginas!) - biografia "histórico-social" em estilo indiciário, logo, ginzburguiano - no melhor aspecto! Losurdo ri-se da recepção "metafísica" e "pós-moderna" de Nietzsche no século XX (e a descontrói inteiramente - eu sempre me ri disso, confesso, porque é como se nunca houvessem lido Nietzsche de fato...), e o apresenta como - e você o disse - um "aristocrático", ao mesmo tempo contra a teocracia e a democracia. Ali, certamente, haverão de estar informações preciosas quanto ao mundo familiar e religioso da infância do filósofo. Penso que Losurdo enterra um século XX pseudo-nietzscheano.

2. Há um outro aspecto dessa possível relação entre o último Nietzsche e o Nietzsche da infância: a certa altura de O Anticristo (procurei, para citar, e não achei, mas está lá), Nietzsche fala da indesculpabilidade do "teólogo", e se expressa, dizendo que o "padre" é indesculpável, mas, ainda mais, o "protestante" e, ainda em maior grau, o "liberal protestante" - e assevera: quanto mais se está perto da ciência, menos desculpa se tem para "se ser cristão" (aqui vale a pena lembrar que Nietzsche afirma que apenas Jesus de Nazaré fora, de fato, cristão, ao passo que, de Paulo em diante, inventara-se uma "fé" que nada tinha a ver com Jesus). Essa proximidade dos protestantes e, dentre eles, os liberais, com as ciências - e, a rigor, os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, o que eles prepararam para o XX e o XXI, não são, a rigor, além de "judaicos", primordialmente, "protestantes"? Ah, o ser protestante é, ironia!, iconoclasta, ainda que se tenha pretendido "tradicional" e "original". Conquanto eventualmente não o queira, ser protestante é lançar-se contra a parede (nesse sentido, sou protestante), o que reforça aquilo para o que você nos chama a atenção - a mentira.

3. Não me canso de ler e reler o que Nietzsche escreve sobre isso: "é contra este instinto teológico que movo guerra: por toda a parte encontrei vestígios dele! Todo aquele em cujas veias corre sangue de teólogo, fica desde logo numa posição falsa perante tudo e todos, numa posição que carece de dignidade. Ao pathos que dele emana dá-se o nome de : - fechar os olhos perante si mesmo, definitivamente, a fim de evitar o sofrimento que o aspecto de uma falsidade incurável provoca (...) transformando-se uma má visão na condição necessária para uma boa consciência" (Nietzsche, O Anticristo, IX, p. 23). E esse: "a mentira mais frequente é a que cada qual diz a si próprio; mentir aos outros é um caso relativamente excepcional. Mas não querer ver o que se vê, não querer ver como se vê, isto é quase condição primordial para todos os que são de tal ou qual partido: o homem de partido é necessariamente mentiroso" (LV, p. 111). E essa, ainda: "A 'lei', a 'vontade de Deus', o 'livro sagrado', a 'inspiração' - palavras que não designam senão as condições sob as quais chega ao poder o sacerdote, com as quais mantém o seu poder (...) - essa mentira não falta em Platão. 'A verdade está ali'; isso significa por toda parte: o sacerdote mente..." (LV, p. 113).

4. A mim, fala ainda mais alto essa assertiva: "não se pode ser filólogo e médico sem ser ao mesmo tempo anticristo. É que como filólogo se olha através dos 'santos livros', como médico através da decrepitude fisiológica do cristão típico. O médico diz: 'incurável'; o filólogo: 'charlatanismo'" (XLVIII, p. 95). Some-se a essa, esta: "eu reconheço os teólogos predestinados na sua escravidão da mentira. Outro sinal distintivo dos teólogos é a sua incapacidade filológica. Eu entendo aqui por filologia, em sentido geral, a arte de ler bem, de saber distinguir os factos, sem os falsear com interpretações (e como se gosta de citar o outro Nietzsche!), sem perder, no desejo de compreender, a precaução, a paciência e a delicadeza" (LII, p. 105). Isso me fala muito alto, a mim, teólogo, e, como teólogo, ensinaram-me, "homem de convicção" - de ! -, diante de cuja apologia do pathos, Nietzshce me chega aos ouvidos e diz: "aqui quisera formular a questão definitiva: existe de um modo geral, uma antítese entre a mentira e a convicção?" (LV, p. 111).

5. Insisto - não me é dado, mais, passar ao largo dessas críticas de Nietzsche. Sim, é verdade, como você diz, que Nietzsche é um aristocrático - seus valores aristocráticos, com eles, igualmente, não comungo. É uma questão de "gosto". Contudo, as críticas que Nietzsche faz não ganham ou perdem valor em face de sua posição político-civilizatória: elas têm valor pela lucidez. No fundo, penso que a posição aristocrática de Nietzsche deixou-se ratificar e reforçar pelo espírito darwiniano da época, que, de resto, a teologia abraçou entusiasticamente. Seja como for, não posso deixar de ouvir nenhuma dessas iconoclastas críticas que Nietzsche fez a mim, enquanto teólogo metafísico, tanto quanto não posso ouvi-lo em sua posição aristocrática.

6. No entanto, uma ação simplista seria, automaticamente, vomitar alguma coisa qualquer que tivesse o nome de teologia. De certo modo, meu corpo expeliu, como corpo estranho, toda a mistificação metafísico-ontológica, política e mágica com que a teologia se revestia. O que se chama, costumeiramente, "fé", isto é, o resultado objetivo de uma catequese sacerdotal, vomitei inteiramente. Mas a idéia em si, o tema em si, as coisas com que a teologia lidava, essas, Haroldo, não consigo desprender-me delas. Não penso que a teologia seja necessariamente o que se fez dela, como a política não é, graças a Deus, o que se fez dela, nem o capital, nem a própria Bíblia. Posso, sim, tentar uma teologia transformada: que tenha lama nos olhos e que os vá lavar no tanque, uma teologia que se sabe irremediavelmente cega, para sempre, e que, por isso, adquira a capacidade de, finalmente, enxergar (cf. Jo 9): é necessário ser expulso da sinagoga e sair do templo para ver, ou, pelo menos, para adquirir-se a capacidade de ver.

7. Contra isso, prega a .

8. Num segundo ponto, aquele em que você segue discutindo o tema da "transcendência na imanência", penso que é preciso muito cuidado com esse termo: trancendência. Ele pode referir-se, disfarçadamente, ainda, à metafísica clássica: coisa de almas e anjos, que Platão usou, que Agostinho usou, que se usam. Pode, contudo, referir-se, kantianamente, às condições de pensamento enquanto pensamento que se pensa - consciência transcendental. Nesse sentido, sim, há transcendência: é imperioso que o haja! O mito dos deuses, qualquer que seja o mito, quaisquer que sejam os deuses, é um pensamento da transcendência clássica - a fé na continuidade platônica da alma e do além: ele não é um pensamento que se pensa, mas um penamento que pensa... e, nesse caso, pensa uma que "transcendência" (que ele mesmo inventou para nisso pensar...). Já a compreensão desse mito como mito é transcendência em sentido kantiano - é lucidez. Dançar, ingênuo (falsamente ingênuo para nós, amigo, que nos tornamos imprestáveis, para sempre, para a ingenuidade do mito) nesse mito é mentir para si mesmo. E a mentira em si não é o "pecado" - ele tem de ser procurado na razão da mentira: a razão da mentira para si é a raiz desse pecado.

9. Logo, temo que o discurso da "transcendência na imanência" guarde um risco - um risco, apenas, que o manejador do discurso haverá de contornar, se é essa sua intenção! - de manutenção da plataforma referencial do pensamento metafísico-ontológico: a manutenção metafórica dos discursos, os mesmos, os velhos, aqueles, "mentirosos", mas, agora, modernamente arranjados sobre uma alegada "imanência". Lévinas faz o mesmo, mas não através da "imanência" do "eu" em sua solidão, mas a manutenção do Outro (e ele fala da Bíblia e do Deus da Bíblia) através do outro: novas vias para a transcendência, horror, talvez, do niilismo que se suspeita esconder na nudez antropológica incontornável.

10. Perigosa essa imiscuidade do velho no aparentemente novo. Ainda ontem, profeticamente, um teólogo vociferava contra a dogmática da Igreja, "unívoca", dizia ele, instrumento de poder de toda uma era, asseverava. Hoje, ele mesmo afirma que o Espírito Santo está em Gn 1,2, ele e a Trindade toda. Ora, ora, ora - dogmática! Dogmática, não!, gritará, apressadamente, em defesa própria: metáfora! Ah, é?, metáfora?, e metáfora para quem? Para mim é mentira mesmo... A mesma igreja, os mesmos hinos, a mesma liturgia, os mesmos dízimos, as mesmas pregações - mas é tudo diferente! - não é, mais, dogmática, é metáfora! E, Haroldo, se você ouvir os argumentos, são mesmo esses da não-transcendência, da imanência: pura retórica. Barth pegou Kant e o Romantismo, imunizou-nos deles por meio de nos meter goela abaixo um discurso velho de revelação e iluminação. Os novos Barthes pegam a mesma denúncia de Kant - céu de chumbo! -, criticam Barth e sua escola "dogmática", mas, ha!, ha!, ha!, mantêm tudo como está. Imañência, é como chamam a estratégia política de manter tudo como e onde está.

11. Penso, Haroldo, que a imanência é outra coisa: e talvez seja exatamnte disso que você, de fato, está falando (minha função é, apenas, problematizar). É a constatação de que não há "valores" como há "coisas". Não posso, honestamente, dizer que respeitar as pessoas seja um valor "objetivo", dado. Ele só pode ser construído. Em termos sociais, exigido. Construído, não se faz, necessariamente, melhor do que seu oposto - é-lhe, apenas, antagônico. Não há nada no próprio valor em si que me deva fazer escolhê-lo, porque o valor não é uma verdade - é um "gosto". Todavia, a exigência - as pessoas, em sociedade, devem respeitar-se - não há de encontrar nenhum fundamento fora do próprio jogo, descoberto dentro dele e fora do qual inexiste. Imagine o vulcão descobrir que pode, simplesmente porque pode, despejar lava sobre tudo à sua volta... Imagine que esse vulcão queira, porque queira, despejar lava à sua volta... Isso é um homem: ele, simplesmente, pode. Nada há que o impeça - senão ele mesmo ou seu irmão. O mito dos deuses tem sido usado para coibir isso, eventualmente para legitimar isso. Chega!

12. Lamentavelmente, minha decisão pessoal não muda, necessariamente, a decisão de ninguém. Por séculos, ainda, talvez para sempre, os deuses serão usados para controlar pessoas, para o bem ou para o mal, pela direita e/ou pela esquerda. Os valores, eventualmente, continuarão a ser pensados platonicamente: é um vício da mente e da boca... O que eu posso dizer, com toda honestidade, Haroldo, é que, para mim, acabou. Encaro, solitário, minha agonia de ser humano, a lucidez de assassinar Platão, e de pagar a pena máxima, sem sursis - todo homem nasce faltando um pedaço - não é possível ser homem só. Precisa-se de outros homens, de mulheres, de outras mulheres, de homens, para se ser homem ou mulher. O trágico é que você depende disso, mas não pode fazer nada a respeito. Sua existência depende, também, deles. Ou você desiste, ou espera, ou toma. A teologia toma, pela força, pela mentira, aquilo que só a espera há de alcançar - se é possível chegar ao final dessa estrada...

13. Isso vi em Cantares - numa leitura completamente dissociada de tudo que já encontrei (Cantares, para mim, de 1,1 a 8,4, é uma contra-tragédia). Preparo-me para escrever a história. Ela, de certo modo, no que ela tem de típico, ensaia-se em minha vida.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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