
terça-feira, 19 de julho de 2011
(2011/435) "Aurora", Livro Primeiro, aforismo 3: "Tudo cumpre o seu tempo", de Nietzsche - sim e não, meu caro, sim e não

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
(2010/641) Simone Weil, uma escrava - como Nietzsche queria


2. Já meu filósofo preferido, que vai se tornando um desalmado a cada dia que passa, dizia exatamente isso, isto é, para as plebes, para mim, Cristianismo é religião de escravos, e, para as classes dominantes, tem um lado bom e um ruim - bom, aquele já apontado por Marx, nesse caso, como mau: é entorpecente de massas, e dá a cada um a dose diária e necessária de morfina; mau, tem o pendão de despertar a misericórdia, e, as elites, se se deixam intoxicar por esse veneno, a civilizalção entra em colapso.
3. Simone Weil confessa-se escrava. Mas nem tanto. De modo curiosamente próximo à minha própria experiência, considera as doutrinas farrapos humanos, inúteis, imprestáveis, e abre-se para a mística: uma "escrava" com liberdades filosóficas e teológicas... Eu deixei-me batizar quando o laço do passarinheiro armou-se sob meus pés; ela, antes de morrer, depois de uma vida de mística e anti-dogmatismo. Nisso, muita diferença... Mas os dois olham com toda a desconfiança do mundo, e ainda mais, para as catequeses de cabresto, que fazem de Deus, para Simone, um "objeto" e, a meu ver, uma naftalidade de espantar baratas...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
terça-feira, 30 de novembro de 2010
(2010/603) Ser, Linguagem, Tradição - Eterno Retorno

2. Na leitura de hoje, Losurdo afirma como "a doutrina do eterno retorno configura-se, então, como a contravingança das classes dominantes, que agora zombam das esperanças e das ilusões das classes subalternas" (Domenico Losurdo, Nietzsche, o rebelde aristocrata, p. 478). A Gaia Ciência, da década de 80 do XIX, é onde Nietzsche começa a defender a tese do eterno retorno. Ele passava a alegar que a História apresentava até uma série local de mudanças, mas que se repetiam infinitamente, de modo que o idêntico sempre retorna ao seu ponto pré-definido.
3. Estamos, aí, diante de uma das últimas tentativas de Nietzsche de abalar a revolução - aniquilar a tese da história linear, inaugurada pelas teologias do fim do mundo, empregadas por judeus e cristãos contra a poderosa Roma dos césares. A vitória de Roma sobre os pobres e oprimidos era aparente. A História caminhava para a vitória dos justos - e Roma receberia a sua compensação pelo sofrimento imposto aos homens. É dessa retórica de esperança que se nutrem os revolucionários do século XVIII e XIX, dirá Nietzsche, fazendo-se escorar nessa confiança e doutrina. Nietzsche, portanto, precisa aniquilar a tese da linearidade da História, para, com ela, aniquilar a esperança dos revolucionários, e com ela, a ação revolucionária propriamente dita. É nesse contexto que se aplica a citação com que abri essa postagem - o eterno retorno é a contravingança dos poderosos contra os desempoderados, assim como o Cristianismo histórico-escatológico, linear, fora a vingança dos desempoderados contra os poderosos.
4. Aí jaz, com todas as cores, a razão de minha absoluta repulsa a toda teoria que, de um lado, feche a saída para a esperança, seja isso em que roupagem se apresente, e, de outro lado, que suprima a consideração pela ação eficiente do sujeito. Não é por outra razão que me alio radicalmente às teses hermenêuticas de Schleiermacher e de Dilthey, bem como me alio inteiramente à tese do primeiro Heidegger, a da condição imanente do "ser" como "evento" aqui e agora, à moda heraclitoiana.
5. No mesmo impulso, sou levado à repulsa em relação às teorias de sobredeterminação da Linguagem (uma nova deusa, dessacralizada), do segundo Heidegger, da tese estruturalista dos franceses do pós-guerra (calvinismo dessacralizado) e, no limite, a tese do pan-tradicionalismo de Gadamer, isso se posso considerar que Gadamer fale, o tempo todo, da Tradição forte, e não da tradição fraca, mas, ainda assim, custaria a retirar minhas barbas do molho. Essas teorias, na prática, produzem o mesmo efeito da teoria do eterno retorno - elas dizem: não adianta, nada muda, nada de fato muda, nada que se faça muda coisa alguma, porque é a Linguagem a decidir todas as coisas, é a Tradição, a pôr cada qual onde está, e a prendê-lo aí, é a Estrutura, a brincar com os homens, é o eterno retorno de todas as coisas para o lugar definido para todas as coisas.
6. Não. Nego-me a aceitar tais teses, venham de quem venha, disfarçadas que sejam, ao ponto de insuspeitáveis "liberais" se deixarem comover por sua aparente "utilidade" - revolucionários a contemplar a Tradição? - e, pior!, a nossa Tradição? Ao fim e ao cabo, não são úteis - não à liberdade, porque elas são debilitantes das pulsões revolucionárias, como de resto foi todo o século XX. Pouca, muito pouca coisa de verdadeiramente revolucionária vingou nesse século, século em que a cultura de massa, a TV, o cinema, a música, a arte, fizeram muito bem seu papel de "pão e circo"., século cujo esforço outro não foi que não soterrar o XIX - a erasio memoriae da revolução. Proclamou-se, inclusive, o fim da história! E esse fim é igualmente sobreposto à Roma invicta pelo filósofo aristocrático - quando se quer que a história acabe, saiba que aí há uma vontade de manter o status quo, aí subjaz o cinismo de manter as coisas tais quais elas estão.
7. Todavia, como um labrador insaciável, eu farejo no ar o sentido paralisante dessas filosofias. Recuso-as. Direito meu. Não me dirão que a Linguagem escreve essas linhas, porque é contra qualquer deus útil que desembainho essa espada. Não me dirão que é a Tradição quem escreve essas linhas, porque posso muito bem escolher de que lado estou nessa briga de dois mil anos - e não estou do lado de Roma. Não me dirão que é uma Estrutura a escrever essas linhas, porque essas linhas carcomem os vergalhões que a sustentam. Muito menos dirão que o eterno retorno bate à porta da minha casa, porque a porta de minha casa só se abre ao sol da esperança, e não se curva ao reacionarismo das classes dominantes.
8. Prefiro Heráclito e a novidade aberta. Prefiro a condição histórica humana, aberta - sim, amanhã posso estar sob a bota dos poderosos, mas pode ser que não! Não há destino - há riscos - e os correrei, porque isso é viver.
9. Eu lia a Bíblia, aliás, a leio, para defender-me - ali estão tantas artimanhas do poder, dos sacerdotes, dos reis, dos poderosos, dos ricos - eles escreveram 95% dessa biblioteca! -, que, observando-as, aprendo a contorná-las, e a proteger minha casa de seus sortilégios. Igualmente, aprendo a identificar no Cristianismo as mesmas estratégias de apropriação, expropriação, cooptação e maldade - e contorno-as. Vou tornando-me protegido, dia a dia, do poder desmesurado da canalha político-religiosa. Por isso leio a Bíblia. Aliarei também mais essa razão para continuar a ler meu até aqui filósofo predileto - a sua deslavada transparência aristocrática, desnuda, não-dissimulada, não evergonhada, revela-me inequivocamente as mesmas retóricas alhures disfarçadas de filosofia e teologia. Próximo de Nieztsche, estarei mais preprado para me defender daqueles que, tendo na alma o mesmo diabo aristocrático, disfarçam-se. Esses, sim, são perigosos, porque, "mesmo quando não é formulada de modo explícito, a doutrina do eterno retorno surge como aspiração na cultura antirrevolucionária" (Losurdo, op. cit., p. 480).
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
domingo, 28 de novembro de 2010
(2010/594) Até tu, Kierkegaard?


2. Kierkeggard, grande teólogo romântico do XIX, admirável sob muitos aspectos, vociferou, contudo, contra os jornais socialistas, defendendo inclusive a tese de que mais se devia proibi-los e combatê-lo do que ao álcool - e começo a suspeitar de que fosse pela razão de que, enquanto este, adormece as consciências, aquele, as desperta... Não tenho certeza, todavia. O que sei, agora, se Losurdo me informa bem, é dessas palavras do teólogo: "é Kierkegaard quem acusa os jornais [socialistas] pelo fato de 'dragarem a lama dos homens que nenhum governo poderá mais dominar', eles 'são e serão o primeiro do mal do mundo moderno'. É necessário pôr fim a esta obra de açulamento das massas: 'Para a sociedade são mais necessárias as ligas proibicionistas contra os jornais do que contra as bebidas alcoólicas; é preciso não hesitar em 'proibir os jornais'" (Sören Kierkegaard, Diário, organizado por Cornelio Fabro, Morcelliana: Brescia, apud Domenico Losurdo, Nietzsche, o rebelde aristocrata, Revan, 2010, p. 453, na seção A cidade, o joernal, a plebe).
2.1 (atualização [29/11/2010]. Mais adiante duas páginas, Losurdo aprofunda a crítica a Kierkegaard, afirmando que para ele não importava nem o conteúdo em si do jornal - o problema era basicamente o acesso das massas à informação, pensamento muito próximo ao de Nietzsche, aliás. "'A forma inteira desta comunicação é falsa', no sentido de que promove a vulgarização e a massificação, próprias do mundo moderno: 'o jornal comunica tudo o que comunica como se fosse a Multidão, a pluradidade quem sabe'. Para tal propósito, o filósofo dinamarquês se exprime com acentos que poderiam ser definidos como nitzscheanos: cobre-se de ridículo um jornal que 'pretenda ser aristocrático e ser ao mesmo tempo um jornal'; não, 'ser aristocrata no meio dos jornalistas é como ser aristoctrata no meio de vagabundos'".
3. Kierkegaard não está sozinho nesse aborrecimento em face do fato de o povo ter acesso a jornais críticos do sistema político-econômico - ao lado desle está Wagner, está Treitschke, e, está, claro, Nietzsche. Não posso, pelo fato de Kierkegaard ser teólogo, terraplenar, todavia, a Teologia. Durante o regime de exceção brasileiro, por exemplo, é verdade que houve cristãos e teólogos colaboracionistas - uma Igreja inteira chegara a considerar que a ditadura era, de fato, Deus a lutar contra o diabo comunista. Mas aí dentro, todavia, encontravam-se teólogos que, ao contrário, consideravam que Deus estivesse, de fato, do lado da resistência e do combate à ditadura. Essa história de "de que lado Deus" está é um aborrecimento, um mito, um processo de manipulação de conciência, seja de direita, seja de esquerda - mas que há um lado admirável e um lado reprovável nesse fenômeno de apoio e de resistência, antagônicos, claro, aos regimes autocráticos, há.
4. Eu bem quisera terminar escrevendo que, uma vez teólogo, sempre teólogo, mas a memória de teólogos de esquerda, quero dizer, que não assumiriam, pelo contrário, combateram, posturas reacionárias como de Kierkgaard - um Bonhoeffer, por exemplo, e toda uma considerável categoria de latino-americanos me faz ponderar que não se trata de uma categoria de ideólogos em si - mas uma categoria de homens. Logo Kierkegaard, que escrevia tanto... Talvez, até por isso...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
(2010/590) "As religiões como 'instrumento de criação e de educação' nas mãos da classe dominante"

(2010/589) Karl Jaspers à luz de Domenico Losurdo - ainda sobre Nietzsche

2. Talvez se tenha descoberto a chave para esse fenômeno - ao menos nos termos em que Domenico Losurdo afirma, Nietzsche possuía dois discursos, um, para a classe dominante, outro, para a classe dominada, e, não, não estou "interpretando" Losurdo, estou, meramente, transcrevendo-o, na prática, literalmente: "é necessário chegar à plena consciência de que um é o discurso destinado às classes dominantes e outro o que deve ser dirigido às classes subalternas: 'É preciso distinguir rigorosamente entre A e B' (XIII, 448)" (Domenico Losurdo, Nietzsche, o rebelde aristocrata, Revan, p. 449).
3. Talvez agora de possa levar um tanto mais a sério o fato de que os discursos têm sentido relativos não apenas a seu autor, mas aos destinatários, aos referenciais a que se destinam - talvez, até, a história da recepção "metafórica" de Nietzsche no século XX possa ser explicada justamente pela cada vez mais negligente desatenção a esse princípio básico, mormente entre filósofos e teólogos - os discursos, se fossem gente, poderiam dizer toda a sua potência polissêmica, que, na verdade, não passa da atualização dos possíveis leitores potenciais; todavia, são "obra", são registro de uma intencionalidade situada e historicamente dirigida, de modo que é aí, e só aí, que se pode pretender instalar o princípio de inteligência desse discurso. Naturalmente, para quem ainda acredita nisso...
4. Uma última observação. Começava a duvidar de que Losurdo pudesse ter lido o mesmo Nietzche que eu - sim, reconheço, algo presunoso de minha parte, mas, ainda assim, metodologicamente prudente. Todavia, insisti em retornar a uma das últimas obras de Nietzsche, justamente aquela a que me refiro aqui - Para além do bem e mal. Se havia dúvida, não há mais. O leitor ou a leitora, desconfiados como eu, poderiam gastar meia hora a ler o capítulo nono - O que é Aristocrático? Pronto, todas as dúvidas se dissipam.
5. Nietzsche parece ser um último representante daquela espécie de homem aristocrático, logo, insensível, de coração bruto, não quero dizer "mau", quero dizer, "de pedra", não tocado pelos valores a duras penas construídos, sim, pelos "escravos". Nesse capítulo, Nietzsche justamente fala dessas duas únicas morais que há - a dos aristocratas, soberanos, senhores, dominantes, e a dos escravos, da plebe, dos dominados. E aqui ele encara a alma da Natureza em toda a sua brutalidade e insensibilidade - com a placidez de quem tem consciência disso: "a 'exploração' não faz parte de uma sociedade corrupta ou imperfeita e primitiva: petence à essência do que é vivo como função orgânica fundamental, é uma conseqüência da verdadeira vontade de poder, a qual é justamente a vontade da vida - Admito que, como teoria, isto seja uma novidade - como realidade é o facto primordial de toda a história: sejamos pois honestos para connosco próprios até este ponto! -" (Nietzsche, Para além de bem e mal, Lisboa: Guimarães, 1987, p. 198).
6. Esse vínculo programático entre a exploração do outro, a exploração do senhor sobre o servo, do dominador sobre o dominado, a uma função fundamental da vida, a um predicado orgânico, remete-me, com tremor, a um aforismo que, até aqui, muito apreciei, de A Gaia Ciência - e que, agora, tremo de ter errado o real sentido da intencionalidade aristocrática que o animava, e que eu lia com o "espírito de escravo" que me anima. Ei-lo: "- A consciência. - A consciência é a última fase da evolução do sistema orgânico, por conseqüência também aquilo que há de menos acabado e de menos forte neste sistema" (Nietzsche, A Gaia ciência - Livro Primeiro, 11, Lisboa: Guimarães, 1996, p. 47).
7. Não posso condenar meu filósofo preferido. Só posso me perguntar se essas seriam suas reflexões - de resto, no mínimo inquietantes, porque tocam as questões fundamentais da Filosofia, diante das quais todo o resto é espuma -, se ele estivesse do mesmo lado que eu, se fosse um legítimo representante da "tradição dos escravos", daqueles que se recusam a aceitar o destino natural, que têm a ousadia de pensar que, contra todas as aparêcias, contra toda a história real dos homens e das mulheres, diante de meus olhos, diante da minha face, diante de mim, todos os homens me são iguais - e que a desiguladade não constitui, para essa hmanidade, um destino, mas uma construção do resíduo de operação natural que permanece entre nós. Será apenas quando sairmos definitivamente da Natureza que poderemos, afinal, desvencilharmo-nos da lei da Natureza, segundo a qual os fortes dominam os fracos. E, no entanto, não é justamente hoje o dia em que a moda é o retorno à casa Natureza?, o abraço civilizatório ao mundo natural?, o cântico reverente e devoto à Ecologia? O Capitalismo, meus amigos, está a enamorar-se da Ecologia - Deus e o Diabo chegarão a fazer um pacto de domínio? Estamos à beira de um precipício - e queremos avançar ainda mais rápido para dentro dele...
8. Cuida-me parar de ler por hoje. Corro o risco de eu mesmo sair a abraçar cavalos... Deixa-me, então, ir atrás do que Nietzsche não teve: uma Bel a quebrantar-lhe a dureza do coração...
OSVALDO LIZ RIBEIRO
(2010/587) A máscara que Nietzsche pôs na cara


2. Todavia, ai!, Losurdo começa, vagarosa, mas inexoravelmente, a aproximar-se da desconstrução de meu própro bunker. Aí, meus amigos, como não haveria de ser?, aquele entusiasmo vai se transformando em perplexidade. Losurdo, agora, me gasta uma seção inteira, de quatro páginas, para me pintar Nietzsche como um "novo" Platão - o da República - a mesmíssima de Detienne. Modo meu de dizer que Losurdo afirma que Nietzsche tinha consciência de que a religião devia ser usada pela classe dominante para, por meio dela, "educar e modelar" o povo. A denúncia de ópio, de Marx, assume, em Nietzsche, conotação de prescrição médica - senhores, senhores, ao povo, religião na veia, posto que, assim, eles terão por certo que seu sofimento, necessário (à manutenção da ordem [que nos beneficia, a nós, classe dominante]) é não apenas natural, mas prescrição divina...
3. Corri, a checar a citação em Para além de bem e mal, parágrafo 61, e, sem tirar nem pôr, lá está. Meus malditos olhos, se passaram, passaram por aquela parágrafo sem se dar conta do que liam? Tenho em minha "defesa" as marcas a giz de cera que acompanham as páginas dessa obra, o que sigifica que a leitura se deu há muitos anos atrás, mais de dez, porque não uso giz de cera para marcar meus livros há mais de uma década anos. Já se disse que não se deve ler um livro para o qual não se está preparado, e é provável que eu não estivesse mesmo preparado para o Parágrafo 61 - ou, não vou descartar a hipótese, não quisesse ver, então, o que agora Losurdo me lança às faces.
4. Saio, pois, cocheando, manco, dessa surra de historiador. E, no entanto, já que tomo Para além do bem e do mal nas mãos, permitam-me a transcrição de um parágrafo que, com uma só apresentação, representa o significado da obra de Losurdo - retirar a máscara de Nietzsche, bem como ilustrar como o próprio Nietzsche pode ter preparado a armadilha em que caíram (caímos?) os receptadores metafóricos de sua filosofia e obra. Ei-lo, mandando um recado a seus posteriores;
Tudo o que é profundo ama a máscara; as coisas mais profundas têm mesmo um ódio à imagem e ao simbolo. Não será a antítese o disfarce adequado de que se serve o pudor dum deus? Eis um problema digno de ser posto: seria de espantar que um místico qualquer não tivesse já ousado algo de semelhante. Há factos de caráter tão delicado que convém encobri-los e torná-los irreconhecíveis por meio de uma grosseria; há certas manifestações de amor e de uma generosidade exuberante, depois das quais nada há de mais aconselhável do que pegar num bastão e dar uma sova à testemunha ocular: assim se turva a sua memória. Certas pessoas sabem perfeitamente turvar e maltratar a própria memória para, ao menos, se vingarem desse único cúmplice: - o pudor é muito engenhoso. Não são as piores coisas que nos causam mais vergonha: não há só maldade atrás sde uma máscara, - quanta bondade há na astúcia. Eu podia imaginar que alguém que tivesse de esconder algo de precioso e de vulnerável rolasse pela vida grosseiro e redondo como uma verde e velha pipa de vinho, de pesados arcos: a subtileza do seu pudor assim o quer. Para um homem dotado de um profundo pudor, os destinos e as decisões delicadas escolhem caminhos por onde poucos transitaram e de cuja existência nem os seus mais íntimos confidentes devem ter conhecimento: escondem-se deles tanto o seu perigo de vida como a sua reconquistada segurança vital. Um homem assim escondido que, por instinto, precisa da palavra para se calar e silenciar, que é inesgotável nos meios de velar o seu pensamento, quer e favorece que uma sua máscara o substitua no coração e no espírito dos seus amigos; admitindo, contudo, que o não queira, aperceber-se-á um dia de que, apesar de tudo, só se conhece dele uma máscara, - e que é bom que assim seja. Todo espírito profundo necessita de uma máscara: mais ainda, em redor de todo espírito profundo cresce necessariamente uma máscara, graças à interpretação sempre falsa, quer dizer, superficial, de cada palavra, de cada passo, de cada sinal de vida que ele dá (Nietzsche, Para além de bem e mal. Lisboa: Guimârâes, 1987, § 40, p. 55-56).
5. E a questão que se me impõe violentamente, agora, é: terá Losurdo retirado, enfim, a máscara de Nietzsche?
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
(2010/585) Não ler Losurdo - crime de "lesa inteligência"


2. No início do meu doutorado, caiu-me a mão, sem querer, Morin. Devorei os seis volumes de O Método - para mim, uma das obras mais importantes do século XX, uma preparação à altura dos desafios do século XXI. Sem nenhum tempo para fazer uma resenha à altura da coleção, criei um pequeno espaço em ouviroevento, e escrevi a declaração sensacionalista: "se eu fosse você, parava de fazer tudo que estou fazendo... e lia Morin". Sensacionalista ou não, ainda penso assim. Mas julgo-me cada vez mais um revolucionário menor, alguém absolutamente desprovido da capacidade de convencer quem quer que seja a fazer qualquer coisa, porque, de todos que me cercam, que eu saiba, apenas um, que nem aluno regular meu era, dedicou-se ao trabalho. Mesmo meus amigos mais chegados passaram à distância de minha recomendação, e os vejo penando com questões já superadas por Morin - mas eles não me crêem...
3. Essa lição deveria ser suficiente para eu perder a mania de achar que uma observação que faço mereça atenção dos transeuntes. Todavia, além de irônico e hiperbólico, sou compulsivo, de modo que, mesmo sabendo que dizê-lo e não dizê-lo dá no mesmo, não me furtarei à sensação estética de o dizer: "parem tudo o que estão fazendo e leiam Losurdo". Principalmente teólogos, filósofos e cientistas políticos - é absolutamente desconstrucionista a obra - para mim - máxima desse historiador: Nietzsche, o rebelde aristocrata. Como o próprio Losurdo afirmou, o caráter aforístico da obra de Nietzsche facilita que qualquer um tome seu discurso e o aplique ao que quer que deseje, e, meus amigos, isso criou uma absurda nuvem de escombros e fuligem histórico-filosófica sobre o filósofo. Já li muita coisa sobre Nietzsche - isto é, para os padrões de um teólogo, claro -, e nunca li nada comparado ao que Losurdo escreve. Nietzsche, para mim, até hoje, fora um desconhecido, e, pelo que sei do que de Nietzsche falam e escrevem expoentes da filosofia internacional, também eles conhecem outra pessoa, talvez criação de seus desejos político-filosóficos - mas não Nietzsche. Não posso crer que, conhecendo esse Nietzsche que Losurdo descreve em detalhes - "cada parágrafo" de Losurdo se faz acompanhar de tripla fonte: obras de Nietzshce, suas cartas escritas e recebidas e obras de terceiros -, escrevam dele o que se escreve.
4. É curioso como ocorre com Nietzsche exatamente o que ocorreu com Jesus - o que Jesus foi, de fato, enquanto homem histórico, não cabe em qualquer dos cômodos da catedral doutrinária erigida pela Teologia (por isso se prefere a metáfora à história, porque a história reduziria a uma fantasia 9/10 da "tradição", ao passo que a metáfora mantém as rotativas rodando, rodando, rodando...). O Jesus histórico ficaria horrorizado, se lhe contassem sobre o que fizeram com sua imagem. Algo muito parecido ocorre com Nietzsche - por razões sabe Deus quais, inventaram-nos um outro Nietzsche, talvez o tenham instrumentalizado, de modo que o Nietzsche de carne e osso - mas de que servem os homens de carne e osso? - jaz sepultado e morto. Já o Nietzsche-metáfora e o Cristo-da-fé freqüentam os salões - inclusive no mesmo time.
5. Morto - todavia, não tão definitivamente que não possa ser exumado (falo do filósofo, evidentemente!) - e Losurdo cavou fundo! Começo a perceber que terei de rever parte considerável de minhas percepções sobre Nietzsche - não há nada de necessariamente ruim nisso. Todavia, aprendo, mais uma vez, que deixar o trabalho de nos informar sobre o passado a filósofos e teólogos é pedir para ser enganado, é gostar de ser enganado (ou de engar, eventualmente?), e preferir a dissimulação, o engodo, a estética das montagens convenientes, a plástica teatral dos interesses - à facticidade da história, que, a despeito das teses narratológicas, ri-se de nós, porque não há esforço humano capaz de apagar o passado, conquanto um simples gesto de esferográfica possa adulterá-lo. Sob a tinta azul, entre a tinta e a celulose branca, sobre a linha da pauta, espera, pacientemente, o fato. E como os fatos são fáceis de colher, meus amigos - como peixes em lagoas deles fervilhada - eles saltam para nós, quando os queremos, de fato.
6. No entanto, eu pressinto, o movimento de interrupção da série de fantasias metafóricas sobre Nietzsche não deve terminar tão cedo. O recurso à metáfora é um modo de nos apropriarmos da sagacidade filosófica, da falta de floreios, da lucidez irradiante de Nietzsche, desviando-nos de sua patológica consciência de classe, sua compulsão aristocrática, sua posição política escravocrata, cínica, um Marx ao contrário, surpreendentemente, nesse sentido, um signatário da República - daquela, que os filósofos também escondem, uma vez que Maquiavel, ao lado de Platão, assume as feições de Gandhi...
7. Losurdo deve ser lido. Sim, ele nos assedia no momento em que estamos a fechar dissertações, a encadernar teses, a publicar textos intermináveis - e, tão logo toquemos a caixa mágica que nos chega à mão, nossos textos, todos, são como que imediatamente corroídos pelo tempo, como que devorados por traças, como que diluídos em ácido, e revelam-se... quimera... Sim, haveremos de perder muito do que cuidamos saber, e muito do que escrevemos há de ser lançado à lava ígnea das bobagens. No entanto, meus amigos, sairemos de Losurdo com carne e ossos nas mãos, e saberemos, finalmente, quem foi e o que disse aquele filósofo cujo fim foi a loucura.
8. Acho que terei de ler Nietzsche todo outra vez. "Zaratustra não deve falar ao povo" - e, todavia, eu o ouvi, e agora é tarde, meu amigo...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
sábado, 20 de novembro de 2010
(2010/571) "Os dois se ignoram mutuamente" - Losurdo, sobre Marx e Nieztsche


Marx, Nieztsche e a 'mais-valia'2. Tá bom pra vocês? Definitivamente, a recepção "metafórica" de Nietzsche no século XX é uma demonstração de como se pode fazer espuma, de como se pode viver de espuma, de verborragia e celulose - sem qualquer substância entre os dedos. Benditos sejam os historiadores - ah, mas alto lá: os historiadores a quem evidentemente cabe o título, porque há uma corrente metafórica narratológica na historiografia que, a meu ver, faz um tremendo papel de bobo, quando não nos faz a nós outros de bobos, entre suas goladas de cerveja e baforadas de cachimbo, ao entardecer. Metáfora, tá... Qui prodest? Tudo por uma boa platéia? Mas, em sendo esse o caso, realmente "boa"?
(407) Como no mundo antigo, assim no moderno o otium dos melhores, ou seja, da classe dominante, fundamenta-se, observa Nietzsche com a costumeira falta de escrúpulos - sobre a 'mais-valia' (...) fornecida pelos escravos ou pelos servos de todo tipo (...). Também esta categoria tem uma longa história. No século XII - observa Tocqueville - não tinha ainda surgido o Terceiro Estado e, portanto, a situação pode ser caracterizada assim: de um lado havia 'aqueles que cultivavam a terra sem possuí-la' e, do outro, 'aqueles que possuíam a terra sem cultivá-la'. Na realidade, é uma situação que continua a existir ainda alguns séculos depois, a julgar pelo menos por Taine: no Antigo regime vemos uma 'classe que, grudada à gleba, sofre a fome há sessenta gerações para alimentar as outras classes'. Como é confirmado em particular pelo quadro traçado por La Bruyère: homens ou talvez 'animais selvagens' com aspecto humano habitam em 'tocas' e 'vivem de pão preto, de água e de raízes' e desse modo 'poupam para os outros homens a pena de semear, de trabalhar e de colher para viverem'. Montesquieu, por sua vez, não tem dificuldade de identificar a fome do luxo (e, em última análise, da civilização) no 'trabalho alheio'. Imediatamente antes de Nietzsche, Schopenhauer indica com clareza no 'trabalho desmedido' de uma massa de operários, escravos ou semiescravos, o fundamento do otium de poucos e do desenvolvimento da civilização enquanto tal.
(408) Nietzsche é mais preciso. Ao falar de 'mais-valia' se exprime com a mesma linguagem de Marx, segundo o qual a extorsão de 'mais-trabalho' (...) ou 'mais-valor' (...) já não é o fundamento natural e insuperável da civilização enquanto tal, mas de uma sociedade fundada na exploração de classe. Poder-se-ia dizer que o debate sobre o trabalho chega às suas conseqüências extremas na Alemanha e, mais exatamente, nas duas plataformas teóricas e políticas contrapostas de Nietzsche e de Marx. Os dois concordam em aproximar a sociedade antiga e a sociedade capitalista: ambas fundamentam-se no 'mais-trabalho', que os beneficiários do otium impõem aos seus servos. Permanecendo clara a antítese no que respeita ao juízo de valor, Nietzsche não teria dificuldade em subscrever esta análise de Marx: 'Os povos modernos não souberam fazer outra coisa senão mascarar a escravidão no seu próprio país e impuseram-na sem máscara no novo mundo'.
Os dois se ignoram mutuamente. Mas o primeiro critica as teses do segundo, lendo-as, ainda que de forma parcial, esquemática e muitas vezes distorcidas, em Dühring. Este, ao exprimir a própria simpatia pelos 'elementos oprimidos da sociedade' e o próprio compromisso na luta contra as 'injustiças sociais', junto com os 'sistemas econômicos baseados no pedestal da escravidão, seja a antiga ou a americano-moderna ou colonial', condena o 'trabalho assalariado semilivre' do mundo moderno que, na realidade, é uma espécie de escravidão, condena a 'escravidão em sentido estrito e em sentido amplo' (...). Novamente são atacadospela análise crítica os Estados Unidados da Guerra de Secessão e a Europa da revolução industrial, a metrópole capitalista e as colônias, mundo moderno e mundo antigo, tudo junto. Mas com a sua pretensão de querer emancipar o trabalho enquanto tal, Dühring - objeta Nietzsche - se revela um 'anarquista' (...), pelo fato de pôr em discussão os fundamentos mesmos de todo ordenamento social e da civilização enquanto tal.
Por sua vez, embora ignorando Nietzsche, Marx conhece bem um autor francês do século XVIII que parece ter algum ponto de contato com o filósofo alemão. Trata-se de Linguet, que considera a escravidão como uma condição eterna da civilização, de modo que o recurso a nomes mais 'suaves' não muda nada da substância da coisa. Sim, 'a essência da sociedade [...] consiste em exonerar o rico do trabalho; desse modo lhe são fornecidos novos órgãos, mem-(409)-bros incansáveis que tomam sobre si todas as operações cansativas de cujo fruto o rico se apropria'. Marx julga o autor francês ao meso tempo 'reacionário', por causa da sua saudade da instituição da escravidão, e brilhante, pelo fato de desmascarar eficazmente a ideologia dominante, revelando a persistente realidade da escravidão e da mais-valia. Se tivesse podido, Marx teria inserido também Nietzsche, junto com Linguet, nas suas Teorias da mais-valia, entre aqueles autores modernos que não exitam em pronunciar sem fingimento o segredo da acumulação capitalista (o tabu inviolável da apologética vulgar), sem sequer esconder o que há de escravista no moderno trabalho assalariado' (Domenico Losurdo, Nietzshe, o rebelde aristocrata, Revan, p. 407-409).
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
sexta-feira, 5 de novembro de 2010
(2010/556) Transcrição das p. 346 e 347 de Nietzsche, o rebelde aristocrata, de Domenico Losurdo
346 (A) Podemos agora dar uma rápida olhada no percurso realizado pelo filósofo. Nós o vimos falar de três etapas na sua evolução, a 'metafísica', a 'iluminista' e a 'imoralista'. Na realidade, no que diz respeito à primeira etapa, convém fazer uma distinção ulterior. Aproveitando e radicalizando a lição de Burke e do romantismo alemão empenhado na crítica da revolução, O Nascimento da tragédia denuncia os efeitos devastadores da hybris da razão, mas identificando o seu início já em terra grega. É verdade, esse tema continua a
deixar vestígios vistosos em todos os escritos que precedem à virada 'iluminista'; nesse sentido, Nietzsche tem razão ao falar de uma fase 'metafísica' no seu conjunto. No entanto, por outro lado, é preciso não perder de vista as novidades importantes que intervêm já com a segunda e a terceira Inatuais. No plano mais exatamente filosófico, a crítica da visão meramente antiga da história é a crítica também da plataforma ideológica ao modo de Burke, incapaz de fundamentar e estimular a ação contra-revolucionária que se impõe e da qual o 'homem de Schopenhauer', ou seja, o 'rebelde solitário' se encarrega. No plano mais estritamente político, essa figura toma o lugar do membro da 'comunidade popular' celebrada nos anos de O Nascimento da tragédia.
347 (B) Com Humano, demasiado humano, vemos surgir um 'iluminismo' aristocrático que analisa impiedosamente as paixões, as ilusões, o fanatismo do movimento revolucionário e disseca no plano psicológico as palavras de ordem morais que ele agita. Enfim, a quarta e a última fase, que, no plano político, é sinônimo de 'radicalismo aristocrático' (...) e, no plano filosófico, de imoralismo, de afirmação da inocência do devir. O fio condutor, o elemento de continuidade é representado pela crítica, antes pela denúncia apaixonada da revolução e dos perigos mortais que ela faz pesar sobre a civilização.(aqui, permitam-me a digressão, é exatamente onde bifurcam nossos caminhos - Nietzsche vai para a "direita"m eu diria, para o partido aristocrático, ao passo que eu vou para a "esquerda", para o partido "popular", por assim dizer, mas, quem me conhece o sabe, sem os engajamentos partidários e, talvez, sequer as ações mínimas - apenas uma filosofia de gaveta e gabinete). O protagonista da luta assim evocada e auspiciada é, primeiro, o membro e o cantor da 'comunidade popular', que à hybris da razão e da revolução contrapõe o mito supra-histórico no qual se reconhece e com o qual se alimenta todo um povo, graças à visão trágica do mundo intimamente unido, não obstante a escravidão e a carga de sofrimentos que a civilização inevitavelmente comporta. Depois é a figura do 'rebelde slitário' que toma o lugar da anterior. Consciente de não poder mais apelar para uma 'comunidade popular' irremediavelmente desaparecida, ele agita, ao contrário, com gesto de desafio a sua solidão em contraposição à massificação produzida pela revolução e pela modernidade. Pretende mais do que nunca opor-se à revolução, mas com a consciência de que por ela deve saber aprender algo, a começar pela recusa a entregar-se de modo preguiçoso e inerte à tradição, para interromper a gradualidade do seu desenvolvimento com uma ação resoluta cheia de riscos e de dilemas morais. Segue-se a figura do 'iluminista' atristocrático que, tirando proveito também do 'iluminismo moral', zomba da pretensão da revolução de apelar para a razão e a justiça e sublinha, ao contrário, o que há aí de rude, de supersticioso, de intolerante, de fanático e de doentio. Intervém finalmente o aristocrata imoralista que, enquanto submete à suspeita e à dessacralização mais impiedosa os valores e os falsos ideais da revolução e da modernidade, ao mesmo tempo conserva fresco e intacto o seu fervor e o seu entusiasmo pelo novo que pretende realizar e que pretende realizar não mais como 'rebelde solitário', mas, como logo veremos, de modo organizado, apoiando-se no 'partido da vida' ou no 'novo partido da vida', a fundar.
2. Bem, e como eu sou maximamente legal, transcrevo entrevista de Domenico Losurdo a Marcos Flamínio Peres, no Folha online, a que, na verdade, tive acesso pelo blog do Zelmar.
Leia entrevista com Domenico Losurdo, biógrafo de Nietzsche
MARCOS FLAMÍNIO PERES
De formação marxista, o professor de filosofia na Universidade de Urbino (Itália) Domenico Losurdo fala sobre sua biografia "Nietzsche - O Rebelde Aristocrata", que está sendo lançada no Brasil. Destaca a importância dos aforismas na obra do pensador alemão, mas alerta que eles podem ser usados para "provar quase tudo".
Por que Nietzsche é tão popular?
Domenico Losurdo - Ele é um prosador muito fascinante, que se exprime, no mais das vezes, por meio de aforismos. Eles desdenham o cansativo concatenamento das demonstrações lógicas. Não há leitor que não consiga tirar da obra desse filósofo um aforismo que lhe pareça particularmente iluminador. Mas isso também favorece o arbítrio.
Como é a recepção de sua obra hoje?
Em nível internacional continua a prevalecer a "hermenêutica da inocência", contra a qual meu livro polemiza. Em todo o arco da sua evolução, Nietzsche não se cansa de repetir que a escravidão é o fundamento inalienável da civilização.
Como entender isso? O início da atividade literária de Nietzsche ocorre em meio à Guerra de Secessão (1861-65), que marca a derrota do Sul dos EUA em eternizar a escravidão negra.
Ele manifestou todo seu desprezo por Beecher-Stowe, a autora do célebre romance abolicionista "A Cabana do Pai Tomás".
Mas, onipresente em Nietzsche e no debate cultural e político da segunda metade do século 19, o tema da escravidão se dissipa ou se transforma numa inocente metáfora no âmbito da hermenêutica da inocência _(Bataille, Deleuze, Vattimo, Colli, Montinari etc.).
Assim o filósofo é "salvo", mas a um preço caro, atribuindo-se a ele uma capacidade limitada de entender e querer no campo político: ele teria feito recurso constante à "metáfora" da escravidão, estando totalmente às escuras na áspera polêmica e na luta que, sobre tal tema, se espalha em volta dele.
Está superada a tão falada relação entre Nietzsche e nazismo? Ele ainda está marcado pelo irracionalismo?
A categoria de "irracionalismo" não me parece particularmente produtiva para explicar Nietzsche e Hitler.
São claros os elementos de continuidade e descontinuidade que subsistem entre um e outro. Quando lemos em Nietzsche terríveis palavras de ordem ("aniquilamento das raças decadentes", "aniquilamento de milhões de malsucedidos"), não podemos deixar de pensar na tradição colonial e no sociodarwinismo, herdados e radicalizados por Hitler.
Também a celebração nietzschiana da escravidão nos reconduz ao nazismo. O Terceiro Reich pretendia encontrar na Europa Oriental, entre os eslavos, os escravos para trabalhar para a "raça dos senhores".
No entanto esse motivo é antípoda ao pensamento de Nietzsche, que, vivendo numa época histórica diferente (anterior à Primeira Guerra), se bate pela unidade da aristocracia de todos os países europeus, inclusive os da Europa Oriental.
O que Nietzsche tem a ensinar no século 21?
Só compreendendo o caráter extremamente reacionário do pensamento de Nietzsche é possível captar a sua grande capacidade desmitificadora.
Exatamente porque condena a abolição da escravatura, a democracia e o movimento socialista, Nietzsche acaba traçando um quadro bastante sombrio do Ocidente e, portanto, contestando sua pretensão de exportar ao mundo a "civilização", por meio da expansionismo colonial e da força das armas.
Não há dúvida de que uma crítica da "guerra humanitária" e do "imperialismo dos direitos humanos" não pode prescindir da lição de Nietzsche.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
terça-feira, 2 de novembro de 2010
(2010/549) Da mentira conservadora


2. Talvez seja nesse momento que Nietzsche e eu nos identifiquemos, ele, um aristocrata anti-democrático, eu, um democrático da plebe (que ele detesta): ambos temos agonias fisiológicas diante dos conservadores, ainda que nossos temores se dêem por razões diferentes. No caso específico de Nietzsche, dá-se que os liberais conservadores de sua época, segundo juízo do próprio filósofo, uniam-se à retórica revolucionária, porque cuidavam assim, mentirosos que são, alcançar mais rapidamente seus interesses políticos e comerciais. No meu caso, porque não me sujeitaria facilmente a um cabresto ideológico, quanto mais se é o caso de cujas rédas estarem nas mãos da mais desqualificada categoria teológica do planeta. Nietzsche e eu nos encontramos justamente naquilo que nos separa definitivamente. Mas nisso concordamos: de santarrões, bastem os clérigos...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
domingo, 25 de abril de 2010
(2010/346) Da virada "iluminista" de Nietzsche

2. Se você ainda não comprou Nietzsche, o Aristocrata rebelede, de Losurdo (Editora Revan), recomendo que o faça urgentemente.
OVALDO LUIZ RIBEIRO
sábado, 24 de abril de 2010
(2010/343) Mergulho na auto-identidade


2. Esse Nietzsche e eu somos quase antípodas! Esse Nietzsche universitário, contra-moderno, ferrenhamente contra-moderno, é-o tanto que produz arroubos de defesa da tradição cristã! Sim, ainda que programática a atitude, Nietzsche é um jovem filólogo-filósofo a fazer contas alemãs, a ponto de ver num cristianismo-ponte a validade para o "povo alemão".
3. Há momentos em que uma fresta se insinua, e eu quase chego a ver nele um pouco de mim, mas, subitamente, Nietzsche volta a ser aquele decidido defensor da Tradição, da Elite superior, das castas, do "povo-corpo" uno, indistinto, em cuja expressão o sofrimento dos fracos se justifica pela glória da arte, a perspectiva de uma unidade, um corpo, em que muitos defecam, para que uma cabeça sorria... Oh, sim, não há sorriso sem fezes, se me entendem, mas não se pode dizer que qualquer que defenda uma tal perspectiva da sociedade entenda-se exatamente por fezes... É-se - sempre! - cabeça, nessas estruturantes utopias metafísicas determinstas. Os deterministas, elitistas, castistas, calvinistas, são sempre a "nata", nunca o esterco que aduba a glória dos eleitos!
4. Alguma coisa vai acontecer, eu sei, e Nietzsche passará a desancar também o cristianismo. Chegarei lá - ainda me faltam centenas de páginas. Mas essas primeiras me fazem perceber que eu sou um homem fora do (seu) tempo, fora do (seu) lugar, fora do (seu) mundo - um inatual. Ao contrário do que o jovem Nietzsche considerava para si, a modernidade é exatamente meu mundo, mas ela teima em não se desenhar no meu páis. Não sou - mais - "ovelha". Como cristão, estou imprestável: não me falam nada as doutrinas, as tradições, as verdades. E, no entanto, mas também por isso, estou imprestável igualmente para o "sacerdócio", porque não posso nem quere mentir nem para mim nem para ninguém. Não tenho nada a dizer a ningém que me queira ouvir como guru. Não vejo ninguém abaixo de mim - nem sobre mim. O espírito de igualdade me tornou imprestável para as fórmulas religiosas que mantemos em vigor...
5. Altar, púlpito, nada disso faz sentido - para mim. Diálogo, réplica, tréplica... Ah, isso, sim, me inspira. Mas nem mesmo os mais "avançados" dentre os teólogos gostam disso. O jogo está viciado, jogo de pregações monocórdias e sermões unilaterais, o vício cristão de dizer, sem cuidar ter sido realmente ouvido, o jogo cristão de dizer, mas não escutar, o jogo cristão de dizer, sem ouvir o que se está dizendo.
6. Ah, Losurdo, menino mau. Se já não havia esperanças para o grisalho de meus cabelos, agora é que me afundas ainda mais profundamente na terra... E o curioso, meu amigo, é que ao mesmo tepo que isso me angustia, isso me dá prazer. E isso também quer-me parecer uma atitude bastante moderna... Chega a ser mística minha sensação de liberdade...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
quinta-feira, 22 de abril de 2010
(2010/333) Gn 2-3, Nietzsche, Losurdo - e eu

2. Bem, não posso dizer que eu possua, do mito grego, o domínio que penso poder dizer possuir do relato bíblico. Ainda assim, não ousaria afirmar que o mito de Prometeu - primeiro, possa ser lido "universalisticamente", como se fora um mito da espécie, um mito universal, uma metafísica da essência humana, nem, segundo, que resulte necessário afirmar dele que a condição de Prometeu seja inexorável. A dinâmica dos mitos é tal que, enquanto ele for um mito, pode ser transformado, desde dentro. Prometeu pode, a qualquer momento, arrebentar as correntes - em tese - e, também em tese, domesticar o corvo que lhe bica o fígado... Mas deixemos isso de lado.
3. Segundo Losurdo, Nietzsche reconheceria a ausência da condição de "tragédia pessimista" em Gn 2-3. E Nietzsche está certo. Mas isso nada tem a ver com uma condição espiritual ou cultural de um povo - nesse caso, o judeu. O fato de que o relato da "queda" de Adão e Eva não é inexoravelmente fatalista tem a ver com questões muito materiais e políticas.
4. Arrisco dizer: o relato foi produzido por sacerdotes judeus, por volta do século V, nos moldes - conscientemente?, intertextualmente? - da metodologia política de A República. Trata-se de construir uma narrativa que aprisione a população a ela, e exija da população comportamentos e ações programáticas. Trata-se de afirmar que cada homem e mulher vivem sob a maldição divina, e que, nos termos da maldição, estão apartados da presença de Deus. Mas não se trata de dizer que essa é uma condição inegociável, porque ela apenas estabelece o cenário dentro do qual a população judaica deve se conceber, cenário esse que tem por objetivo criar dependência sacerdotal na população.
5. Ora, mas a população judaica não pode conceber-se indefinidamente longe da presenaça de Yahweh. É dele que tudo vem! De modo que, o primeiro passo é essa população aceitar sua condição de afastada, apartada, amaldiçoada, mas o segundo é pogramaticamente ainda mais importante: aceitar que os sacerdotes do Templo de Jerusalém podem promover sempre renovadamente a aproximação entre esse povo pecador e o Deus aborrecido, aproximação essa mediada pela liturguia sacrificial. Cada judeu, homem ou mulher, se quiser uma aproximação mínima que seja com o divino, deve curvar-se diante da mediação sacerdotal.
6. Ora, se o mito afirmasse que o afastamento era absolutamente irremediável, primeiro, esses seriam os mais incompetentes gestores do sagrado de toda a história, porque, segundo, compreendendo que o leite estava terminantemente derramado, a população trataria de se aliar a outras narrativas mitológicas, para sua segurança espiritual, política, social, econômica, histórica. A tragédia do relato deve ser forte, mas não absolutamente destrutiva, muito menos irremediável. O povo judeu, destinatário do relato, deve sentir-se pecador, saber que Deus o condena e o tem por maldito, mas deve, ainda assim, querer as bênçãos desse Deus. A dose é muito bem sopesada. O relato, muito bem urdido.
7. O "erro" - se bem que isso também deve ser programaticamente político - de Nietzsche é achar que o relato biblico faz filosofia e teologia. Faz nada. Faz política. É a isso que resume tudo quanto o Templo de Jerusalém publicou. Política. E política aristocrática, hierocrática, sacerdotal e elitista.
8. A ironia e a contra ironia dessa história é que um judaísmio-cristianismo incipientes - mas só quando eram iniciais! - usaram essa condição contornável da condição humana para interpretar Jesus como a saída definitiva, "o" Cordeiro especial, logo, a tornar desnecessário o rito sacerdotal, a amarra institucional, a promulgar a liberdade da relação entre o homem e Deus, mas isso até que o próprio cristianismo reinventasse-se como religião de sacerdotes, e fizesse a tudo e todos, novamente, dependentes de suas pantomimas hierocráticas. O Templo de Jerusalém paira sobre a Igreja de Cristo, para desgosto do homem de Nazaré, eu suponho... E, quando eu vejo comunidades evangélicas apelando para a liturgia do templo, minhas entranhas queimam com fogo de dor.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
(2010/331) Do trágico e do fatalista

2. A questão que me constrangeu foi: é necessário ser fatalista para ser trágico? Um sujeito trágico tem de ser necessariamente "calvinista"? A condição deplorável e amargurada da esécie humana é inexorável? O "pecado original", bíblico, e o estupro de Perséfone, grego, são as marcas espirituais e psicológicas da espécie?
3. Não sei... A espéciwe humana sequer é um "destino". Trata-se de um "acidente" histórico-biológico (naturalmente que me recuso aqui ao mito calvinista, tanto quanto me recuso a um deus calvinista). Ora, dentro dos limites de minha argumentação, se a humanidade, contra todas as expectativas, emergiu da condição animal, isto é, se o surgimento da espécie é, e si, uma evidência da possibilidade de fuga do destino animal, conquanto tornar-se homem não seja exatamente deixar de ser animal, eu sei, mas acrescenta à espécie o que não parece haver em nenhum outro canto da biologia - a auto e livre-determinação - quanto mais não teria ela, agora, condições de, ainda mais, fugir à sua condição sub-humana...
4. Ora, se do que era absolutamente movido por DNA e destino, subitamente torna-se revolucionário - se é que raciocino elegantemente -, por que sou obrigado a conceber uma situação trágica inexorável? Por que não posso conceber, antes, uma ainda mais potencial possibilidade de revolução, quanto mais ela pode ser, agora, intencionalmente buscasda e construída?
5. Não, não: suspeito que o calvinismo, o fatalismo, no fundo, no fundo, sejam políticas aristrocráticas, sacerdotais, ladainhas destinadas ao convencimento das massas de que não adiantaria lutar pela liberdade, e que ser escravo, ser um quase-morto, ser um animal de carga é a maior felicidade a que pode aspirar um ser humano. É cinica a filosofia. É criminosa a política. Homem, teu nome é Prometeu! Basta-te um ferreiro a serrar teus grilhões...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
quinta-feira, 15 de abril de 2010
(2010/315) Nietzsche, O Rebelde Aristocrata, de Losurdo


domingo, 11 de abril de 2010
(2010/311) História feita à moda teológica

2. "Os eruditos alemães e os chamados pensadores alemães, distantes da história real, fizeram da história o seu tema e, como bons teólogos de nascimento, procuraram a comprovação da sua racionalidade. Temo que numa época futura se considere esta contribuição alemã à cultura européia como sendo o seu dote mais miserável: a sua história é falsa!" (p. 243).
3. Todo "ódio" que a Teologia nutrir por Nietzsche é pouco - porque ninguém a denunciou tanto como falsidade do que esse filho de pastor protestante... Esse fragmento póstumo não tem como ser desmentido: ainda se chama "teologia histórica" a reflexão de Oscar Cullmann e de Wolfgang Pannemberg! História? Mas... como assim? Não há nada de "história" ali, salvo raconalização mitológica da provinciana história da salvação que, em si mesma, é platônica, depois, agostiniana, logo, metafísica, ontológica, teológica - mito.
4. O que a Teologia chama de história é a encenação mitoplástica de um enredo mitológico, é uma racionalização - ao "modelo retórico da história - de doutrinas e crenças sistematizadas, é o mundo virado de ponta-cabeça. Não é história isso a que os teólogos chamam de história. História - que, contudo, senhores, nasceu também na Alemanha, porque o método histórico-crítico é filho de protestantes alemães! - é contingência, História é imanência, História é aleatoriedade, História é abertura ao imprevisto e ao imprevisível. O que se chama de história, e se reproduz como telos, é teologia disfarçada. A rigor, é política disfarçada... É, sempre, um clero a fabricá-la, e uma fábrica de catecúmenos a repeti-la... Ou, dito de outro modo:
5. "A maneira gótica de Hegel quando toma o céu de assalto ( - Epigonalidade). Tentativa de introduzir uma espécie de razão na evolução: - eu estou no extremo oposto, vejo inclusive na própria lógica uma espécie de desrazão e de acaso. Esforçamo-nos para compreender como foi na maior desrazão, quer dizer, na ausência de qualquer razão, que se produziu a evolução que leva até o homem" (p. 243).
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS. se alguém me acusa de ser, portanto, um não-teólogo, dou de ombros. Insisto: sou teólogo. Mas a Teologia não pode ser mais o que era há duzentos anos - e ainda o é. Tanto quanto a Química, apesar de ser filha e neta delas, não pode ser mais Metalurgia iniciática nem Alquimia... Não sou - aí, sim - um teólogo medieval, nem um teólogo pseudo-moderno, nem faço força para brincar de Idade Média. Faço força - sim, faço - para parir-me como teólogo do século XXI. E, se for para ser aqui o que se era lá, desistirei tão rápido que meu nome se apagará da história das tentativas.
(2010/310) Um parágrafo de tirar o fôlego - de Nietzsche

2. É muito "reconfortante", digamos assim: para a "vaidade intelectual", encontrar num só parágrafo toda uma longa série de postulados históricos com os quais tenho trabalhado há já consideravel tempo, particularmente depois de meu "encontro" com José Carlos Reis, na disciplina de Teoria da História. Esse período - séculos XVIII e XIX (conquanto suas verdadeiras raízes avançam tão fundo quanto a cultura greco-romana, o século das invasões árabes na Península Ibérica e o século XVI alemão, de que tudo o mais é desdobramento "criativo") - define a modernidade ocidental. É aí que tudo que conhecemos hoje como Ocidente está em gestão acelerada, em revolução, em reação - é isso tudo uma grande metáfora de batalhas civilizatórias, de mundos colimados, de políticas, de culturas... A Modernidade é uma invenção ocidental, situada entre uma estrutura pré-moderna planetária e uma reação pós-moderna ocidental. A Modernidade é a Geni da história ocidental contemporânea...
3. O "encontro" entre uma França iluminada e napoleônica, de um lado, com uma Alemanha mística e medieval, de outro, produziu o fenômeno mais extraordinário da cultura Ocidental, se considerarmos os últimos 200 anos: foi justamente aí que conceberam-se as Ciências Humanas, essas, sim, verdadeiras iconoclastas, incontroláveis: a Teologia pôde cooptar para si a "razão" - mas as Humanidades... a essas, só os falsos teólogos e humanistas, híbridos de fraude e desmedida.
4. Se o leitor quiser deliciar-se com uma história ambientada nesse período crítico, no olho do furacão da guerra napoleônica de invasão à Alemanha que, em reação, vai parir o Romantismo, divirta-se com Os Irmãos Grimm. É necessário inglês. As demais partes estão disponívesi no Youtube, e reproduzo aqui, apenas, a primeira.
6. Já Niezsche considera que tudo isso se resumiu a uma defesa da mística... Talvez tenha sido assim, de fato. Mas o que me interessa é que o próprio Nietzsche reconhece que, no final dessa "reação" romântica contra as luzes, o estado da "mística" (a rigor, da Teologia) resulta pior do que antes, porque, ao passo que a Teologia podia suster-se diante do Iluminismo - a rigor, não houve reação alguma de monta contra o Iluminismo -, o Romantismo, por sua vez, retira toda a base de argumentação metafísica, o homem, aí, torna-se pura contingência inexorável, de modo que, pressentindo, aí, sim, o perigo, as igrejas - todas - reagiram de modo violento: Vaticano I, Karl Barth e The Fundamentals. Sim, os gênios voam, agora, com asas mais fortes, maiores, do que antes.
7. Ainda que a intenção - primeira?, segunda? - de Kant tenha sido "abrir [manter] caminho para a fé", delineando os limites do conhecimento, no final das contas, o que a Crítica da Razão Pura consegue é anular as argumentaões racionais a respeito da metafísica, das doutrinas, da fé - tudo isso cai por terra de uma só vez. A Crítica da Razão Prática sustenta-se, abrindo caminho para a fé, somente onde a Crítica da Razão Pura não é levada a sério. De modo que não importa tanto para quem Kant prestava serviços - seus serviços, a médio prazo, tornaram a Alemanha cada vez menos "atual".
8. Não é revelador que a Teologia se faça, ai, como se fora ciência, quando não passa de mito e metafísica? Não há racionalidade na Teologia - ela, lamentavelmente, cnostitui-se um bolsão reacionário de racionalização: para o constatar, leiam-se quaisquer das obras magnas dos sistemáticos da moda. O que da Teologia tornou-se verdadeiramente ciência, a exegese, ainda sequer tornou-se fundamento das "ciências teológicas", todas, sem exceção, agarradas à Nicéia (cada uma a seu modo, naturalmente). O Ocidente vive dividido em dois mundos, ainda - o político-teológico, medieval e obscurantista, e o científico-humanista, perdido, ainda, por falta de verdadeira adesão civilizatória: as "máquinas" são científico-humanistas, mas seus operadores, medievais.
9. Perfeito o parágrafo de Nietzsche. Eu o poderia ter usado em Teologia no Divã, se o conhecesse à época... Mas não é tarde...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Sobre ombros de gigantes