quarta-feira, 8 de abril de 2020

(2020/050) Sobre vento, sopro e espírito em hebraico não ser exatamente o que você pensava


Os dicionários - todos - de hebraico traduzem o termo ruah como ou vento, ou sopro ou espírito. Vento e sopro a gente entende de primeira - o sopro é uma espécie de vento, ou o vento é uma espécie de sopro. No entanto, o que vento e sopro têm a ver com espírito, ou o que espírito tem a ver com vento e sopro.

Bem, a questão está mal colocada. Primeiro, o problema da relação entre espírito, vento e sopro nada tem a ver com hebraico, mas com nossa própria língua. Tenha em mente que o judeu e o israelita usavam uma só e a mesma palavra - ruah - para se referir a vento e a sopro, bem como áquilo que, hoje, considera-se espírito.

Pois esse é o problema: o que hoje se considera espírito. Para o usuário da Bíblia, "espírito" - que aparece nas traduções - é uma espécie de fantasma. Eu brinco em sala de aula, dizendo que a alma ou o espírito é o Gasparzinho. É a esse Gasparzinho, a esse fantasma, à alma, que a mente se remete quando lê a palavra espírito. Para o leitor cristão da Bíblia, há um fantasma dentro de cada pessoa, e, a rigor, a pessoa realmente seria a sua alma, esse fantasma, esse Gasparzinho, e não o corpo em si. O termo hebraico ruah, então, referi-se-ia a esse fantasma que habita provisoriamente o corpo das pessoas, que teologicamente o chamam de alma.

Entretanto, esse conceito não é suportado pelo termo hebraico. O sentido de ruah relacionado ao corpo humano tem a ver com aquela cena de Yahweh soprando nas narinas do Adão - o sopro da vida, o vento da vida. É a essa mesma ideia de sopro da vida que o livro de Eclesiastes se refere: que o pó volte à terra, e o sopro ao deus que o deu. Não há aí qualquer ideia, conceito ou figura de alma, fantasma, Gasparzinho. E não há nada aí de identidade vinculada a essa alma - que não existe nesses textos. Quando Almeida traduz "alma vivente", está pintando com as cores de Platão, o grego, o texto de um judeu - em hebraico, nefesh hayah não significa alma vivente, mas garganta viva, e a garganta é viva porque a respiração, o sopro, o vento passa por ela: ruah, ruah, ruah, ruah... Não é da alma que se trata, mas apenas da vida, dom da divindade, que se traduz na manutenção da respiração, do sopro, do vento, disso que se chama hoje de "espírito", mas se interpreta à moda grega, que nada tem a ver com a moda bíblica.

Agora se pode compreender porque o israelita e o judeus mais antigos aplicam ao vento, ao sopro, à respiração o mesmo termo: ruah. Não era porque estavam pensando em alma. Para que esse mito impere, primeiro Alexandre terá que conquistar o mundo...

Uma última palavra. Há tradições diferentes no Antigo Testamento, tradições que passam pela crença no duplo. Não é nem o conceito de respiração vital (ruah) judaico nem o conceito de alma grega, mas um conceito mais antigo e mais universal, que antropólogos chamam de duplo. Cria-se que a pessoa morria e ia, ela mesma, para o mundo dos mortos. Esse duplo da pessoa passa a viver em outro andar, abaixo da criação, no sheol. Não se aplicava a esse duplo a palavra ruah, mas outra, muito interessante: 'elohim (a mesma para designar os deuses). Quando Saul consulta a profetiza mágica e ela invoca Samuel, o termo que descreve o ser que sobe do sheol é 'elohim, e não ruah. Estamos aí diante de tradições mais antigas, mas nem por isso menos interessantes...







OSVALDO LUIZ RIBEIRO




Um comentário:

Gustavo Luiz disse...

Olá Osvaldo!
Muito obrigado por esse texto esclarecedor. Ajudou-me bastante.
Acompanho seus 'posts'. Tenho uma admiração por você.
Um abraço.

Em tempo: Assisti essa semana as suas aulas (gravadas) sobre Cânticos dos Cânticos, disponibilizado pela Unida nessa quarentena. Achei muito interessante sua abordagem. E, cá entre nós, não é que você tem razão!
Continue nessa sua caminhada.

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