sábado, 23 de agosto de 2008

(2008/007) Sem pedras o arco não existe


1. A formulação de uma ‘nova’ teologia há de passar necessariamente pelo modo como lemos os textos fundantes da respectiva tradição. No nosso caso, os textos bíblicos. Quando Rubem Alves, falando de religião, diz que é uma “teia de símbolos”, “rede de desejos”, está indicando para o dado que estamos num campo eminentemente de produção e reprodução de sentidos. Neste universo simbólico, as conexões são ilimitadas e incontroláveis. É o próprio gênio humano em sua capacidade e possibilidade de transcendência. Busca romper as amarras do seu tempo e do seu espaço. E por isso viaja. Habita espaços ainda não existentes. Reaviva as memórias da vivência, para além das gerações. Busca dar sentido ao seu presente. Ah! Se fosse uma viagem livre, sem controle...

2. Os textos, no caso, bíblicos, são as pedras do arco. Os textos são a matéria-prima com que se podem fazer vários arcos. Arcos são construções de sentido; são metanarrativas, que brotam da produção de sentido em contextos originários. Arcos não são iguais em todos os tempos. As curvas arquitetônicas mudam. As técnicas do fazer também se renovam. Mas há uma tendência em se construir pela imitatio, pela reprodução de um modelo projetado em algum momento passado. Assim se tem feito ao longo dos tempos. A teologia ‘metafísico-ontológica’, conforme a proposta de classificação de Osvaldo, tem estado a reproduzir, com pequenas adaptações, modelos de arcos sem considerar as pedras.

3. Uma teologia ‘traditivo-metafórica’ também trabalha com arcos. As múltiplas e, em si, inesgotáveis combinações das pedras produzem arcos de sentido. Vamo-nos acostumando a dizer que cada um produz o seu arco. Pedras são palavras, textos. Estaríamos num labirinto interminável de palavras. Cada qual encontra o seu sentido numa parte do todo.

4. Há que considerar o arco, ou melhor, os arcos, a partir das pedras. No arco da teologia, textos fundantes ou sagrados são pedras. Estas, claro, não são todas do mesmo padrão. Isso nós já sabemos! Basta apreciar o colorido dos textos bíblicos. Quanta variedade de gêneros há aí no multicor canônico! É porque as pedras provêm da história; provêm do cotidiano da vida. Testemunham processos históricos. Vêm carregadas de experiências. Nos textos tem pessoas; tem vidas; tem história. Textos são eles mesmos um arco, menor é claro. A física quântica ensina que mesmo as menores unidades são preenchidas de vazios e estes, em movimento, formam um conjunto.

5. Textos precisam se interpretados a partir da história. Afinal, são produções históricas. Passam, ou podem passar, por releituras; novos sentidos se acrescentam. Mas, sem o acesso histórico perde-se a possibilidade do caminho ‘científico’, isto é, a busca de produzir conhecimento humano sobre os processos que envolvem os próprios textos. Nos últimos séculos, vozes isoladas no início começaram a preparar estes acessos. O chamado método histórico-crítico é expressão disso. Uma leitura histórico-social é sua continuação necessária. Exegese histórico-social dos textos bíblicos precisa ler os próprios textos em perspectiva fenomenológica. Deve buscar elucidar como se dão, ou melhor: se deram os processos geradores de textos. Há que se perguntar pelas intencionalidades nos momentos originários. A pergunta pela funcionalidade retórica não pode estar ausente. Interessa o fenômeno, o processo, para se entender os conteúdos. Afinal, sociedade é sempre espaço de contradições. Interesses e projetos de poder são colocados em prática, ou sofrem resistência, ou, então, até são superados. Deve-se jogar com hipóteses. Indícios, argumentos e provas são o adubo para seu crescimento. Com razão, Osvaldo designa esse jeito de fazer teologia de ‘crítico-fenomenológica’. Com a ‘virada antropológica’, o caminho é por aí.

6. Necessário se faz focar as próprias pedras. Uma ‘nova’ teologia deve ser dialógica na busca da verdade e na produção de conhecimento. Deve ser crítica. Não pode mais trabalhar com a ‘verdade’ pressuposta, pré-elaborada, “revelada”. Há de trabalhar duramente, experimentalmente, para expor os processos, mesmo que seja dolorido. A luz analítica deve clarear o caminho, de forma metodológica. A reserva de domínio não pode mais ser sua marca. Por isso, a teologia no Brasil ganhou ‘cidadania acadêmica’. Essa cidadania ainda deve ser forjada na construção de conhecimento! Não basta mais só admirar a beleza do arco. Há que se perceber como as pedras foram encaixadas, ver o que serviu (e serve) de liga. Isso é tarefa de uma leitura histórico-social e fenomenológica dos textos. Neste sentido: sem pedras o arco não existe!

7. Porém: aí não se esgota o reservatório. O horizonte dos horizontes está aberto!


HAROLDO REIMER

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