1. Aos estudantes de Teologia, ensinam-lhes as classificações - Teologia Sistemática, Dogmática, Fundamental, de um lado, Teologia Bíblica, de outro. A(s) primeira(s), milenar(es). A(s) segunda(s), teoricamente nascida(s) em 1787 [marco "didático" - a conferência de Gabler, na Universidade de Altdorf (recomendaria um excelente livrinho publicado pela JUERP, "Teologia do Antigo Testamento - questões fundamentais no debate atual", de G. F. Hasel, de quem o Oráculo guarda bons artigos. O primeiro capítulo esboça a história do nascimento das Teologias Bíblicas desde a Reforma)]. É um jeito de classificar as Teologias. Deu certo - até aqui.
2. Entretanto, chega-se a um ponto, onde a distinção entre elas é tão coerente quanto, sob certa perspectiva, a distinção entre a Epistemologia de Platão e a de Aristóteles. Os dois criam no acesso à "Verdade", o que esboçaram em mitos aparentemente antagônicos, mas, no fundo, teologicamente aparentados - a Divindade, a Providência, Deus, nos dois casos, assegurava o acesso à "Verdade". Para Platão, oferecendo-a sacerdotalisticamente (filósofos há que são intestinamente sacerdotais!). Para Aristóteles, oferecendo ao homem pá e picareta, e um princípio universal de inteligibilidade - o Logos. Nos dois casos, mitos, teologias - que poderiam ser representados pelo famoso tema - the truth is out there.
3. Aquelas duas espécies de Teologia, a seu tempo, tornam-se indistintas, também. Quando? Quando as duas operam sob o diapasão de crer e fazer crer que portam, sustentam, carregam, dizem, alguma coisa de verdadeiramente supra-humano. Quando "acreditam" que o conteúdo do que "acreditam" seja "conhecimento". Quando desconhecem/escondem que constituem mitos racionalizados (Morin). Aí, não há diferença entre uma e outra.
4. Por isso, proponho outra classificação - que dê/dá conta da conjuntura atual. Suba-se à montanha e, desde lá, seja observada a comunidade dos teólogos. Um a um, que se vá separando-os por meio dos pressupostos teórico-metodológicos e retórico-programáticos em que se sustentam. Feito isso, penso ser possível estabelecer a seguinte classificação.
5. 1) Teologia metafísico-ontológica. De longe, a maioria - ainda. Ela crê que seu conteúdo constitua "conhecimento" (dentre eles, os modernos gostam de Habermas, porque Habermas lhes permite afirmar que tudo é "conhecimento", logo, também - e sobre-excelentemente -, a "fé"). Retoricamente, "conhecem" "Deus" e "o mundo de Deus" (uns, até, constrangidos, dizem conhecê-los analogicamente e poeticamente). O que confere ao "conhecimento" que constitui seu "depositum fidei" o caráter de "Verdade" - a mesmíssima, a ipssíssima "Verdade" platônico-aristotélica, pais dessa Teologia. Ela sobrevive, a despeito do século XIX. Espero, ansiosamente, o dia de sua morte, conquanto considere de direito que teólogos metafísico-ontológicos falem, escrevam, publiquem. Cabe é a mim preservar-me.
6. 2) Teologia traditivo-metafórica. Eis, aí, uma novidade do século XX. Retoricamente, ela não "crê" mais. O século XIX arrancou-lhe, como a mim, o terceiro olho, aquele com que Lobsang Terça-feira Rampa via os mistérios. Isso é sinal dos tempos. Ela, contudo, não pode prescindir das palavras mágicas da tradição - que são "coisas", sabemos, desde que o Enuma elish trata "nomes" e "seres" como sinônimos. As palavras da fé, no fundo, são o que mantêm o circo da fé, o trapézio, o homem-bala, a mulher barbada, o urso triste. Há, aí, segundo eu vejo, uma conta de chegada entre o século XIX - incontornável - e a "tradição". Mantenham as rotativas rodando! Não parem. "Deus" morreu, mas as palavras, ah, como saem doces da boca... Como entram eficientemente pelos ouvidos... Descobriu-se que, no frigir dos ovos, não era a Providencial Metafísica-Ontologia em si quem "cuidava" do rebanho, mas as "palavras". Satisfaçam-se, pois, dois paladares: mantenham-se as palavras traditivas, as rotinas, traditivas, os gestos, traditivos, até as homilias e liturgias, tudo, não se mude nada, ao mesmo tempo em que se pode afirmar que tudo mudou. Corro todos os riscos da ousadia, mas pronuncio um solene "não", porque, não, o século XIX não passou por aí, não. Mais uma vez, contudo, reconheço o direito de os teólogos traditivos-metafóricos soltarem suas palavras encantadas, de manterem nelas fixos olhos encantados [se os teólogos metafísico-ontológicos são sacerdotes, os traditivo-metafísicos são mágicos, encantadores de serpentes (mas, cf. Sl 58,5-6)], também de escreverem, de publicarem. Mas dessa teologia tenho mais desconfianças do que da primeira.
7. 3) Teologia crítico-fenomenológica. Nascer, nascer, ela ainda não nasceu - meu útero não é suficiente. Esboçou-se aqui e ali. Num Hans Küng, do "Teologia a Caminho", por exemplo (extraviada, contudo, num "Por que ainda ser cristão hoje?"). Mas mesmo nesse Küng que admiro, sem suficiente abertura para o mundo não-cristão (uma teologia africana não tem como ser "histórico-crítica", faltam-lhe os textos). Mas, para uma Teologia dos Cristianismos, sim, só se poderia, hoje, falar de Teologia Histórico-Crítica. Ela, essa Teologia crítico-fenomenológica não se relaciona mais com seu objeto a partir do paradigma de crer/descrer. Ela trasformou-se em Ciência Humana. Seu conteúdo é "mera" carne humana - nada mais (mas isso é tudo!, ao menos tudo que nos esteja à mão). Ela é filha do século XIX, conquanto venha sendo preparada desde que Aristóteles entrou na Europa, montando puros-sangues mouros. No entanto, ainda que deva ser, num certo limite, também "aristotélica", é pós-aristotélica que ela é, posto que "romântica", como todas as Ciências Humanas. Ah, o ogro de Bloch é a nova/nossa ubiqüidade.
8. A meu ver, somente essa última deveria estar no MEC. A primeira e a segunda são programaticamente políticas. A primeira quer fazer da Universidade - Igreja. A segunda quer estar durante a semana na Universidade e, aos domingos, na Igreja. A terceira é filha do tempo, desse tempo, como a alegoria teológica o foi desde Platão a Barth. Ela não é irreconciliável com a "Igreja". Absolutamente. Basta que a Igreja entre definitivamente no século XIX. Enquanto seguir atrás de Barth, só lhe resta metafísica e/ou metáfora.
9. Ah, mas aviso aos navegantes - dói, tá? A Teologia crítico-fenomenológica desmonta todo o edifício teológico. Não fica nada de pé. Quer dizer, fica a tradição, ficam os textos, fica a História. E é por aí que ela vai recomeçar. Como tenho tentado, depois da dor, resignadamente.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2 comentários:
Caro Professor Osvaldo,
Como é bom reler seus textos! Volto às suas mui instigantes aulas, depois das quais eu sempre saí mais incomodado que acomodado. Percebo, lendo-o agora, que ainda é assim — ainda bem!
Hoje estou na igreja, após quatro anos de seminário. Mas também em fase de produção de uma dissertação de mestrado sobre religião. É difícil dizer, confesso, se estou em alguma dessas categorias unicamente.
No dia-a-dia da vida, tenho aprendido a colocar meus ideias mais como inspiração do que como bandeira. Tenho aprendido a me preocupar com os problemas práticos da realidade acima de tudo. Isso significa reação política, é verdade, mas meu compromisso político é demasiado fraco e circunstancial, propenso a apoiar as minorias — os que têm menos poder — apenas por sonhar ingenuamente com um irreal mundo de justiça.
Por isso, no momento, sinto-me disposto a assumir cada vez mais meus erros teológicos do que buscar acertos em teologia. Escrevo, falo e prego uma teologia incoerente, errática, que só quer tentar indiossincraticamente.
Se estiver lendo literatura, e surgir algo, eis um texto; se estiver em um funeral de alguém, e acontecer algo, eis outro texto. Onde quer que eu esteja, o que quer que esteja fazendo, não passo de um zé-mané no mundo, sentindo e deixando-se sentir. Tudo o que eu disser, escrever e pregar são apenas reações minhas.
É por esses meandros do pensamento fraco que tenho caminhado. Vivo hoje uma verdadeira crise intelectual, onde não passo de um vaso rolando na mesa, pronto para cair no chão e quebrar a qualquer momento. Cada vez que o fantasma do pensamento forte bate na porta, trato de me retirar. Não agüento mais ser assombrado por isso.
Talvez o meu futuro seja sombrio por causa disso — e qual não é? —, mas estou me dando conta de que não passo de um ser que vive de sensações e delas depende para viver.
Descubro que todas as minhas energias e forças internas não passam de fluxos juvenis que insisto servirem para alguma coisa.
Um abraço.
Olá, Felipe. Meu imeio deu um berro aqui, e eras tu. Bom seu desabafo. Confesso que, hoje, já sinto-me numa outra fase, tendo passado por essa que você descreve - excetuando dela essas idas e vindas pastorais. As dores das crises converteram-se em sensações gostosas à alma.
Sei que você deve ter percebido que esse post em particular tenta tratar da Teologia de uma forma epistemológica. Isso só pode significar que, se eu não laboro em equívoco, não se pode estar nas três classificações ao mesmo tempo, nem ora cá, ora lá. Se algo parecido acontece, das duas uma, ou se está na primeira, ou na segunda. A terceira é por demais rigorosa e cruel para tolerar tergiversações. É mansa e meiga, mas inegociável.
Se para os teólogos, depararem-se com esse post deve ser difícil - quanto não deve ser para os pastores. Queria, Felipe, poder dizer algo diferente. Mas não me é possível. A pastoral está agrilhoada à e pela Teologia medieval, e tanto, que, ainda que o pastor, a pastora, queiram quebrar as algemas, deparam-se com uma situação terrível.
Assim, entenda que cuspo labaredas dirigidas à comunidade dos teólogos. O Felipe pastor deve ter dores ainda maiores, mais profundas, do que a do Felipe teólogo. Mas essa terra aí, essa não vou pisar, não.
Um abraço,
Osvaldo Luiz Ribeiro
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