sábado, 30 de agosto de 2008

(2008/16) Da bocarra faminta dum ogro


1. Penso, cada vez mais fortemente - o que é sempre um grave risco - que cada palavra nossa tem de dar contas de sua topografia pragmático-epistemológica. E não estou, aqui, referindo-me à obviedade de se saber em que corrente de pensamento nos situamos - mas, o que é consideravelmente menos óbvio, se estamos situados.

2. Com "situados" quero me referir à consciência pragmática. Só há três topos retóricos: pesquisar/descobrir, transformar/convencer, experimentar/fruir. De outro modo: saber, fazer, querer. De outro modo, ainda: heurística, política, estética. Não vou escrever sobre isso aqui - tenho escrito sobre isso na ouviroevento (Série Pragmática). A meu juízo, a lucidez retórica passa pela lucidez pragmática.

3. Para que vamos ao passado? Para levantar do túmulo corpos e caras, e falar com eles, é uma boa resposta. Ao menos é o que todo historiador e exegeta desconfiado das tendências ditas (com procedência?) "pós-modernas" tenta fazer. Faz? Essa é a questão. Mas nisso reside a metáfora do ogro de Bloch, ogro que está onde estiver a caça - e sua caça, sabe-se, é a carne humana.

4. Para ir ao passado e lidar com gente, é necessário fazer História e Exegese (que venham em seu auxílio todas as irmãs da Antiga e Iniciática Ordem das Ciências Humanas, que venham, ainda, as irmãs da Ainda Mais Antiga e Iniciática Ordem das Ciências da Natureza - a tarefa é muita para só papel, pá e picareta). Passado, ou é gente, ou é não-gente. Gente que compôs o arco das pedras de Polo e Kam - as pedras, a noite dos tempos as cunhou. O arco, essa gente. Desmonte-se o arco, e essa gente volta ao túmulo.

5. A História e a Exegese - histórico-críticas, advirta-se! - lidam com carne humana. Está embrulhada em papel, essa carne. É preciso desembrulhá-la. O papel, aí, como o de açougues antigos, não tem serventia que não o embrulhar da carne fresca. Não se vai ao açougue comprar papel de embrulho. E, contudo, sem o embrulho, a carne estaria morta - inexoravelmente. Seus duplos, incomunicáveis.

6. A heurística indiciária, venatória, carnívora (não resisto: "ôgrica") - é o xamanismo das Humanidades, a evocação possível dos espíritos, a religião que nos resta. Daí o cercar-se dos cuidados contra as fraudes e falsificações, da evocação de espíritos de mentira, da efabulação de oráculos sofismáticos. Contra a incerteza de ouvir verdadeiramente a voz dos túmulos, rituais de exorcismos contra as técnicas de artificialidade retórica. Melhor que permaneçam na cova, do que serem suas mandíbulas articuladas para a pronúncia do não-ser, do nunca-dito.

7. Aí termina a heurística - minha mística. Resta ver o que podem fazer com os mesmos textos a política e a estética. Entendam-me: se não se vai ressuscitar a carne humana enterrada na cova do texto - e não falo de personagens! -, não há como lidar com esse texto sem a destruição completa do arco e a manipulação (em sentido alquímico) das palavras-metais no cadinho da metáfora. Fora do arco, todas as pedras daquele texto constituem, quando novamente articuladas, seja esteticamente, seja politicamente, metáfora, alegoria, imaginação.

8. Textos falam? Não. A intentio operis não existe. Constitui alguma coisa entre a ingenuidade e o programa de partido. Apenas consciências humanas falam - e, atenção, se não são os mortos, são os vivos (também "os céus", do Salmo, não falam coisa alguma que não reverbere, antes, na mente do contemplador - a diferença é que se pode, teórico-metodologicamente, tentar pôr os defuntos do texto a falar). A estética fará nascer novas palavras da página, novos arcos, como fumaças dançarinas, fogos-fátuos, que não durarão para além da excitação extática. É lícito e legítimo. Se sabe que tão somente usa palavras grafadas numa página, há lucidez, aí. Se cuida, coitada, lidar com pessoas antigas, não sabe nada, e engana-se em sua própria imaginação. E não vejo razão alguma para, hoje, uma estética parva - não nesse campo.

9. Também a política pode fazer textos falar - bem sabido: intenções políticas, intenções de pessoas políticas, é que falam aí. A pastoral é uma intenção política. A utopia é uma intenção política. O que querem é o que Marx queria - "os filósofos apenas interpretaram o mundo de forma diferente. O que importa é mudá-lo". Toda utopia é - nesse sentido - marxista. Política. E isso não é nem "saber" nem "sentir" - é "querer". Quando a transformação do mundo diz-se fazer por força de textos do passado - ou se fez heurística, antes, ou se frauda a memória do passado, e, por confessado amor às gentes vivas, violentam-se as gentes mortas, e, com isso, também as vivas.

10. Por isso, Jimmy, penso que sua Tese deverá ir mais fundo do que se foi até agora - é preciso não apenas arrancar de nós o Soberano, mas fazer-nos assumir a coragem de transformar o mundo a partir de nós. No fundo é, sempre, o que se faz. Quando se vai ao passado, apenas se diz ter achado lá - e não se achou - o fogo de Quixote, a faísca de Brancaleone, que incendeia o engajado. Mas é seu próprio coração que costura palavras e sintaxes urdidas no calor da utopia. Não há, então, critério algum, de nenhuma espécie, e o tapete que os fios poídos do passado costuram podem ser os da TdL ou os da Opus Dei - em termos de processo, a mesma coisa. O que ali vai diferente é a ética e o valor. E esses, não estão no texto, mas na carne - e na carne que lê! Há cento e poucos anos não há mais fundamento algum, mas ainda lidamos - conosco mesmos ou apenas com ou outros? - como se fosse necessário (e possível!) ir buscá-los além e aquém.

11. O que é, no fundo, a metáfora, enquanto retórica da política? Vergonha de si, de confessar que se ousa assumir como opção ética u-tópica e a-tópica - sim, sim, pura arbitrariedade e abertura para o outro? Nesse caso, ainda se crê, aí, em fundamento para a Ética? É o que, então? Encantamento de consciências não-emancipadas, frágeis e fracas demais para denunciar, que, também aí, carregam-se pesos e cargas? Que diferença há entre as declarações "Deus te quer escravo" e "Deus te quer livre"? O ser escravo ou livre dessa gente depende de "Deus"? Dos mortos? Das palavras mortas desses mortos?

12. Sinto-me trágico. Assumo o trágico. Suspeito - temo - que, enquanto essa Metáfora, esse Deus, esses mortos, essas palavras sentirem-se eficientes, ainda caminharemos meio-vivos, meio-mortos, um pouco no útero, um pouco na cova. A Metáfora ainda nos distrai. Hospitalar, ela nos anetesia. É preciso a dor definitiva.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Ref. do § 9 - Georges LABICA, As 'Teses sobre Feuerbach' de Karl Marx. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 35.

(post relido e corrigido em 31/01/2008)

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