sexta-feira, 29 de agosto de 2008

(2008/15) Sobre metáforas e teologias


“El posto que deja vacante el moribundo

es ocupado por los murmullos de los que rezan”

(Levinas).

1. Inserida entre os densos e extensos parágrafos forjados pela pena do judeu lituano Emmanuel Levinas em seu “De outro modo que ser, o mas allá de la esencia”, essas pequenas linhas me interpelam a assumir radicalmente as conseqüências de minha "pertencencia a la ciudad terrestre", onde meus ecos fazem eco às vozes advindas do vazio deixado por aqueles que vieram antes de mim. Como uma criança chamada pelo nome, sinto-me marcado visceralmente por aqueles que me chamaram à existência e balbuciaram hierarquicamente em meus tenros ouvidos, subordinando-me por inteiro ao(s) dito(s), que deixaram rastros profundos, seqüelas irreversíveis, elevando a frágil doxa que me constituiu a um status elevadissimamente político e cultural, que fora denominado pelos mais sábios da república por teologia.

2. Somos sim, queiramos ou não, filhos e herdeiros da tradição judaico-cristã. A direção do Ocidente, engravidado pela ereção de Platão nas costas de Sócrates, pela die-reção desse casal, desses velhos loucos, que atravessou a cabeça de Páris – como escreveu Derridá em seu "O Cartão Postal". De Sócrates a Freud e além – também nos alcançou na fusão de Jerusalém com Atenas, realizada programaticamente pelos pais espirituais do Ocidente, mestres da Igreja Latina. Muito menos pela episteme logocêntrica de Atenas, fomos alcançados mais pela força avassaladora da ira e sede de poder do ciúme monoteísta, que interpretado com olhos e mentes ocidentais e experimentado com puro dinamismo sacerdotal fez da América Latina o espaço privilegiado da sub-reptícia lógica sacerdotalesca, que reproduziu mecanismos capazes de gerir dependências, atrelar consciências e mascarar ideologias. Recebemos um balbuciar hierárquico de mitos que nos atravancaram os passos, fazendo de nossos ouvidos o parque de diversões em que se moldou o que de mais grosseiro e culturalmente heterônomo poderíamos ter herdado dos nossos pais: o logocentrismo aristocrático grego de Platão e Aristóteles embalado pela lógica sacrificial do monoteísmo sacerdotal judaico do segundo templo de Jerusalém.

3. No profundo entrelaçamento de desejos de dominação religiosa e cultural, a tradição cristã na América Latina foi sendo moldada pelas teias e fios que norteiam as metáforas teológico-políticas – que, como já disse Osvaldo, desde os Persas vem assinalando o uso político do sagrado para estabelecer as regras que definem o poder no parque humano. Junto dessa tradição vieram pedras muito bem talhadas, que serviram para a moldura e arquitetura político-religiosa que se configurou como norma do fazer teológico cristão. Marcados visceralmente pela força da narrativa que determina a posição das pedras na confecção do arco, adentramos piedosamente as Catedrais, ludibriados pelos designs rítmicos de uma doxa traditiva – que não quer ser doxa – cantada em latim ou em vernáculo e orquestrada pela sinfonia de Roma ou por uma ortodoxia protestante que penetrou como espada nossa alma e espírito, fazendo-se passar por algo transcendental. Era a estética do mundo recebido – instrumentalização política da metáfora – que embalou (e embala) nosso modus vivendi.

4. Mas eis que nessa arquitetura religiosa teológico-política, construída pelos séculos e séculos de cristandade, algumas pedras foram se soltando do rearranjo teológico que formatou a grande narrativa que engoliu a todos nós homens e mulheres piedosos de tradição latina, abrindo uma fissura que fez com que as vacas sagradas – cânone, tradição, autoridade – caíssem uma após a outra, dando lugar aos respiros e suspiros de sublevação de homens e mulheres emancipados que não mais querem colocar sua fé em ídolos. Caiu, caiu a grande regula fidei –persa, judaica, cristã – que formata e endossa instituições demoníacas, que cooptam e enrabam tradições mais diversas e heterodoxas, para seu uso e trato, desmantelando culturas, templos, famílias e consciências, que agora servem como bois no pasto a um emaranhado de interesses políticos e religiosos que mantém vivo e ativo um depositum fidei que tem guardado em seus porões o sangue imaculado dos hereges, homens e mulheres inspirados pelo mesmo espírito do pequeno gigante Menocchio, de Ginsburg - O queijo e os Vermes – dos quais essa risível e estandartizada ortodoxia cristã nunca foi digna.

5. Mas não só de força e autoridade é feita à tradição; no ruir de pedras das catedrais, desmantela-se o arco e novas metáforas podem ser visitadas e suspiros e respiros de gente simples inspiram-me a perceber o grande vitral de experiências que penetravam as margens dos suntuosos templos e altares. Lembrei-me do Rubem, em suas “Confissões de um protestante obstinado”: “afinal de contas, que magia estranha é essa que faz com que uma mesma religião sejam coisas tão opostas?”

6. Deixo cair no colo por um pouquinho de tempo meu martelinho nietzscheano e passo a contemplar a pluralidade de vozes que embalam uma nova sinfonia, agora não mais orquestrada pela força heterônoma da cristandade romana ou protestante. Não há mais uma grande narrativa. Há gritos, suspiros, dor, risos, de gente como eu. E por eles me deixo inspirar, num diálogo que nasce das minhas metáforas com suas metáforas, dos meus murmúrios com seus murmúrios. E os sacerdotes, quando entoam suas palavras de ordem e força, deixo-os morderem-se a si mesmos em seus gritos, que me causam risos. E se deixam os gritos e partem com suas barrigas para longe dos púlpitos, a fazer política, pego outra vez no colo o martelinho herdado dos mestres da suspeita e coloco mais uma vez abaixo todos os ídolos. Se faço assim, é porque amo a Igreja, que até onde eu saiba, não é nenhuma grande Catedral, sendo composta por essas vozes simples, que amam, gemem e choram. Por amá-la tanto, sinto-me irremediavelmente atrelado a ela, e me junto aos murmúrios dos que oram diante do altar, que agora está vazio, pois os ídolos foram definitivamente colocados abaixo. Como já disse muito bem Tillich: “o protesto é uma forma de comunhão”.

JIMMY SUDÁRIO CABRAL

Um comentário:

Felipe Fanuel disse...

Caro Jimmy,

Como é bom ler um texto assim! Diz respeito à profundidade última da vida. Parece que essas coisas que a gente tanto critica têm um quê de sentido, mesmo que chacoalhados todos os seus fundamentos.

É uma ressignificação difícil, nem sempre possível. Será que dar um salto não seria erigir mais um altar? O Espírito iconoclasta não seria intrepto demais para manter-nos vivos? A necessidade substancial de acomodação não seria inerente a qualquer mortal, por mais incomodado que o seja?

A observável infidelidade às instituições são o maior indício de que hoje a autonomia das pessoas está acima da heteronomia pregada nos arautos religiosos. Mas ainda assim, as pessoas não são autônomas o suficiente para não depender de uma lei exterior. Elas clamam por referenciais de sentido, muitos dos quais impossíveis. São autônomas apenas para escolher a que ídolo servir, a que banco sagrado se acomodar.

Bom seria se a religião não passasse de poesia, arte, literatura. Só que na hora do vamos ver as pessoas querem se assumir politicamente em favor da instituição vazia de sentido para elas mesmas. Deve ser porque dói demais olhar para o céu e ver só nuvem. Precisam de um mágico que mostre que lá há seres alados e um velhinho sentado num trono.

Um abraço.

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