1. Haroldo e Jimmy. Os temas de nossas conversas martelam-me a cabeça. O tempo todo. São como "possessões", espíritos que me tomam, e que precisam ser exorcisados. Tenho duas estratégias para expulsá-los de meu corpo: a) capturá-los, o que faço por meio de argumentos, e b) recalcá-los, deixando que o tempo os leve ao cansaço, e eles, então, cansados, durmam. Mas, aí, um belo dia, eles despertam, acesos, e, ai, começa tudo de novo.
2. O tema da teologia como metáfora é meu demônio da vez. Dormitava. Meu post "Por uma nova classificação teórico-metodológica da Teologia" despertou-o, sonolento, e o post de Haroldo, "Sem pedras o arco não existe" deixou-o atarantado. Por isso, respondi com o post "Arcos que sustentam velhas pedras e pedras que formam novos arcos". Com isso, entretanto, não, ele não voltou a dormir, o danado. Sapateia na minha cabeça. E, ontem, Jimmy ainda me pôs contra a parede - retoricamente falando -, propondo-me uma certa pax com Gadamer e sua doutrina hermenêutica da "tradição".
3. Ora, insisto que meu problema com a "metáfora" não se dá no campo da utopia (política) nem da literatura (estética). Eu amo metáforas, bolas de sabão que criamos com nossa boca, e sopramos, e elas voam, coloridas, até estourar. O que eu absolutamente não posso suportar é metáfora entrometendo-se na exegese (heurística). Talvez, como apoio metodológico (analogia), sim - é mesmo imprescindível. Mas como ferramenta de - que termo! - "produção de sentido", na exegese, não.
4. Vejam o caso do midrash. Olha que caso lindinho eu escolhi para ilustrar o que queria dizer. Encontram-se no Bereshit Rabba 1:10 e Midrash Tanhuma Bereshit, c. 5. Respectivamente, diz-se que a primeira letra do Tanak é beth - que é fechada em cima, em baixo e atrás, sendo aberta, apenas, na frente, o que ensinaria que se pode investigar apenas o que está à frente da criação, mas, não, o que está atrás, em cima e embaixo. Além disso, beth é a segunda consoante do alfabeto hebraico, e não a primeira, e o Tanak começou com a segunda, e não com a primeira, porque beth é a consoante incial de "bênção", ao passo que, alef, de "maldição", e, ao contrário do que os gnósticos diziam, continua o Midrah, a criação é boa, e não ruim.
5. Não é "lindinho"? Muito criativo. Chega a ser artístico - e comovente. Mas, cá entre nós, o que isso ensina sobre Gn 1,1?, quero dizer, em termos histórico-críticos, se com isso queremos dizer a intenção de pesquisa semântico-arqueológica e histórico-social da perícope? Rigorosamente nada, não é? Mais do que isso - eu também poderia achar estranho que esse mesmo alef seja a primeira letra do nome "Deus" ('elohim), em hebraico - e brincar de dizer que "Deus" e "maldição" tramam a mesma malha. Mas tudo isso é puro artifício. Sabemos que alegoria e midrash, parentes, não têm por interesse e intenção e o sentido original de uma passagem, mas a "produção de sentido" - lembro-me do Croatto de 84 - como projeto hermenêutico intencional. Midrah e alegoria são recursos estéticos, políticos ou estético-políticos. Nunca, heurísticos. Úteis, se o que você quer é produzir sentido político para comunidades situadas em seu horizonte de sentido, ou se deseja fruir e experimentar subjetivamente a plástica e a imagética das palavras (sem o arco!). Mas, se você quer ouvir o que quem as escreveu quis dizer - e disse - com as palavras que escreveu, deixam de ser úteis, e transformam-se em entraves, estorvos, entorpecentes.
6. Aí reside meu problema com o uso da metáfora na Teologia, quando ela, a Teologia, insiste, nesse caso, equivocadamente, em postular que seu projeto de utopia encontra-se "no texto" (como expressão de consciência histórica). Não, não se encontra, não. Encontra-se na história da recepção desse texto - quando muito -, na história da fé, na história do Cristianismo, na história da Teologia, na história narrativa do mundo e das idéias do mundo. Na consciência do autor daquele texto, não. Na palavra (não no arco) que ele pôs no papel, sim e não. Não, se perguntar a ele o que ele disse. Sim, se fizer dessa palavra uma caixa de Pandora, um brinquedo da cabala, uma potência semântica, um metamorfo, uma massa de modelar, um caleidoscópio.
7. Não acredito que o auxílio que a exegese pode ou deve prestar à Teologia (e à utopia) seja o da subserviência metafórica. Penso que seja, antes, o da denúncia (análise do discurso!) - rasgar a carne dos textos e mostrar a nudez dos agentes que operaram o evento que os consubstanciou. Isso chegará até a revelar - ai de nós! - que muitas das desgraças que hoje podemos observar através da pesquisa arqueológico-semântica desses textos foram geradas por tantos outros projetos de utopia e tantas outras produções de sentido. O que me deixa trêmulo de medo - crer que nossas utopias são melhores do que as deles, porque somos melhores do que eles, e, de qualquer modo, melhor intencionados (o que faz de nossa alegoria, de nossa metáfora, de nosso midrash, algo mais legítimo ou mais eficiente do que os deles) pode ser o primeiro passo para que cometamos os mesmos erros que condenamos. Se, de fato, os condenamos - não evangelizamos, ainda?
8. Um deles, o de que mais tenho pavor e medo - a manipulação do sagrado, a manipulação (bem intencionada!) de consciências por meio da manipulação do sagrado. Meu Deus - isso tem cura? E, se tem, meu organismo suporta o remédio? E, se sim, saberei viver depois de o tomar?
9. Não estou pronto. Nasci antes do tempo. Ah, dominasse eu as técnicas da letargia e da hibernação. Talvez quisesse despertar em cem anos. Mas isso é tolice - nenhuma de nossas utopias pode garantir que, eventualmente, o bem vencerá, e a vida humana, finalmente, dar-se-á à luz. Navegar é preciso, mas, viver, viver não é preciso... é puro risco. Ou para o dizer pela boca de um gênio: "o observador não pode nunca conhecer o ponto exato de encontro entre o real e o dever-ser, a teoria e a prática, o positivo e o negativo. Não pode nunca dominar, ao mesmo tempo, os dois sistemas, o da determinação e o do dever-ser, sendo que o controle de uma das coordenadas exclui o controle da outra. É o salto na indeterminação" (Edgar MORIN, "Os ersatz sintéticos", em: Edgar MORIN, Em Busca dos Fundamentos Perdidos - textos sobre o marxismo. 2 ed. Porto Alegre: Sulinas, 2004, p. 49). Temo que a metáfora, quando a Teologia a usa, seja a atualização dessa fraude, de fingir-se fundar no real o que, de fato, só existe no sonho utópico. O artigo de Morin é um oportuno alerta.
10. PS. Jimmy, terá sido o eco de sua Dissertatio que me fez unir os temas "metáfora na Teologia", "utopia" e "marxismo"?
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. O tema da teologia como metáfora é meu demônio da vez. Dormitava. Meu post "Por uma nova classificação teórico-metodológica da Teologia" despertou-o, sonolento, e o post de Haroldo, "Sem pedras o arco não existe" deixou-o atarantado. Por isso, respondi com o post "Arcos que sustentam velhas pedras e pedras que formam novos arcos". Com isso, entretanto, não, ele não voltou a dormir, o danado. Sapateia na minha cabeça. E, ontem, Jimmy ainda me pôs contra a parede - retoricamente falando -, propondo-me uma certa pax com Gadamer e sua doutrina hermenêutica da "tradição".
3. Ora, insisto que meu problema com a "metáfora" não se dá no campo da utopia (política) nem da literatura (estética). Eu amo metáforas, bolas de sabão que criamos com nossa boca, e sopramos, e elas voam, coloridas, até estourar. O que eu absolutamente não posso suportar é metáfora entrometendo-se na exegese (heurística). Talvez, como apoio metodológico (analogia), sim - é mesmo imprescindível. Mas como ferramenta de - que termo! - "produção de sentido", na exegese, não.
4. Vejam o caso do midrash. Olha que caso lindinho eu escolhi para ilustrar o que queria dizer. Encontram-se no Bereshit Rabba 1:10 e Midrash Tanhuma Bereshit, c. 5. Respectivamente, diz-se que a primeira letra do Tanak é beth - que é fechada em cima, em baixo e atrás, sendo aberta, apenas, na frente, o que ensinaria que se pode investigar apenas o que está à frente da criação, mas, não, o que está atrás, em cima e embaixo. Além disso, beth é a segunda consoante do alfabeto hebraico, e não a primeira, e o Tanak começou com a segunda, e não com a primeira, porque beth é a consoante incial de "bênção", ao passo que, alef, de "maldição", e, ao contrário do que os gnósticos diziam, continua o Midrah, a criação é boa, e não ruim.
5. Não é "lindinho"? Muito criativo. Chega a ser artístico - e comovente. Mas, cá entre nós, o que isso ensina sobre Gn 1,1?, quero dizer, em termos histórico-críticos, se com isso queremos dizer a intenção de pesquisa semântico-arqueológica e histórico-social da perícope? Rigorosamente nada, não é? Mais do que isso - eu também poderia achar estranho que esse mesmo alef seja a primeira letra do nome "Deus" ('elohim), em hebraico - e brincar de dizer que "Deus" e "maldição" tramam a mesma malha. Mas tudo isso é puro artifício. Sabemos que alegoria e midrash, parentes, não têm por interesse e intenção e o sentido original de uma passagem, mas a "produção de sentido" - lembro-me do Croatto de 84 - como projeto hermenêutico intencional. Midrah e alegoria são recursos estéticos, políticos ou estético-políticos. Nunca, heurísticos. Úteis, se o que você quer é produzir sentido político para comunidades situadas em seu horizonte de sentido, ou se deseja fruir e experimentar subjetivamente a plástica e a imagética das palavras (sem o arco!). Mas, se você quer ouvir o que quem as escreveu quis dizer - e disse - com as palavras que escreveu, deixam de ser úteis, e transformam-se em entraves, estorvos, entorpecentes.
6. Aí reside meu problema com o uso da metáfora na Teologia, quando ela, a Teologia, insiste, nesse caso, equivocadamente, em postular que seu projeto de utopia encontra-se "no texto" (como expressão de consciência histórica). Não, não se encontra, não. Encontra-se na história da recepção desse texto - quando muito -, na história da fé, na história do Cristianismo, na história da Teologia, na história narrativa do mundo e das idéias do mundo. Na consciência do autor daquele texto, não. Na palavra (não no arco) que ele pôs no papel, sim e não. Não, se perguntar a ele o que ele disse. Sim, se fizer dessa palavra uma caixa de Pandora, um brinquedo da cabala, uma potência semântica, um metamorfo, uma massa de modelar, um caleidoscópio.
7. Não acredito que o auxílio que a exegese pode ou deve prestar à Teologia (e à utopia) seja o da subserviência metafórica. Penso que seja, antes, o da denúncia (análise do discurso!) - rasgar a carne dos textos e mostrar a nudez dos agentes que operaram o evento que os consubstanciou. Isso chegará até a revelar - ai de nós! - que muitas das desgraças que hoje podemos observar através da pesquisa arqueológico-semântica desses textos foram geradas por tantos outros projetos de utopia e tantas outras produções de sentido. O que me deixa trêmulo de medo - crer que nossas utopias são melhores do que as deles, porque somos melhores do que eles, e, de qualquer modo, melhor intencionados (o que faz de nossa alegoria, de nossa metáfora, de nosso midrash, algo mais legítimo ou mais eficiente do que os deles) pode ser o primeiro passo para que cometamos os mesmos erros que condenamos. Se, de fato, os condenamos - não evangelizamos, ainda?
8. Um deles, o de que mais tenho pavor e medo - a manipulação do sagrado, a manipulação (bem intencionada!) de consciências por meio da manipulação do sagrado. Meu Deus - isso tem cura? E, se tem, meu organismo suporta o remédio? E, se sim, saberei viver depois de o tomar?
9. Não estou pronto. Nasci antes do tempo. Ah, dominasse eu as técnicas da letargia e da hibernação. Talvez quisesse despertar em cem anos. Mas isso é tolice - nenhuma de nossas utopias pode garantir que, eventualmente, o bem vencerá, e a vida humana, finalmente, dar-se-á à luz. Navegar é preciso, mas, viver, viver não é preciso... é puro risco. Ou para o dizer pela boca de um gênio: "o observador não pode nunca conhecer o ponto exato de encontro entre o real e o dever-ser, a teoria e a prática, o positivo e o negativo. Não pode nunca dominar, ao mesmo tempo, os dois sistemas, o da determinação e o do dever-ser, sendo que o controle de uma das coordenadas exclui o controle da outra. É o salto na indeterminação" (Edgar MORIN, "Os ersatz sintéticos", em: Edgar MORIN, Em Busca dos Fundamentos Perdidos - textos sobre o marxismo. 2 ed. Porto Alegre: Sulinas, 2004, p. 49). Temo que a metáfora, quando a Teologia a usa, seja a atualização dessa fraude, de fingir-se fundar no real o que, de fato, só existe no sonho utópico. O artigo de Morin é um oportuno alerta.
10. PS. Jimmy, terá sido o eco de sua Dissertatio que me fez unir os temas "metáfora na Teologia", "utopia" e "marxismo"?
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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