quinta-feira, 28 de agosto de 2008

(2008/12) O lugar da exegese nos programas de ciências da religião

1. Nestes dias acontece em São Paulo, na PUC, o I Congresso da Associação Nacional dos Programas de Pós-Gradução em Teologia e Ciências da Religião (ANPTECRE). Eu estava previsto para estar numa mesa de comunicações sobre o lugar da exegese ou dos estudos de textos sagrados em programas de ciências da religião. Acabei não podendo ir para atender 'tarefas'. Lá diria mais ou menos o seguinte.

2. Não há, na atualidade, clareza epistemológica sobre o procedimento dos estudos nos campos das Ciências da Religião. A nomenclatura não é unificada. Discute-se se é uma disciplina ou se são várias ciências em olhar multidisciplinar. Se se supõe uma pluralidade de ciências, o método e a pertinência de algumas ciências também não são claras.

3. Por extensão dessa discussão no campo das Ciências da Religião, a Teologia também não tem (mais) clareza de sua epistemologia. O reconhecimento “oficial” da Teologia enquanto “ciência cidadã" na academia impõe novas demandas e desafios. A grande desconstrução no campo da Filosofia no século XIX pede um repensar do fazer teológico sem o lastro da Metafísica clássica.

4. Apesar desses desencontros e demandas, Ciências da Religião e Teologia estão juntas como subárea da Filosofia na Capes/CNPq. A relação com a própria subárea de Filosofia carece de precisão e aproximação; há mais desencontros do que encontros. Enquanto Teologia e Ciências da Religião não constituírem área própria não terão alcançado a cidadania acadêmica, pois 'cidadania' presspõe igualdade, ainda que com diferenças.

5. As Ciências da Religião se nutrem epistemologicamente da chamada “virada antropológica”. Fé, crença, religião, teologia são entendidos como frutos da potencialidade e capacidade humana de simbolização. Todo o aparato religioso é entendido como parte constitutiva da construção cultural. Dentro dessa perspectiva, a Teologia precisa prestar contas, epistemologicamente e metodologicamente, do caráter próprio do conceito de “revelação” com que sempre trabalhou e ainda trabalha.

6. Nos cursos de Teologia, de forma tradicional, a exegese ou os estudos sobre a interpretação de textos sagrados – no contexto ocidental trata-se classicamente da exegese e interpretação de textos bíblicos – tem tido lugar assegurado no labor acadêmico. A Renascença e o espírito científico “moderno” ajudaram a fomentar e desenvolver um “método histórico” para o acesso aos conteúdos e à história dos textos. No desenvolvimento de um método “histórico” já se vislumbrava certa tendência de superação de um “método dogmático”, tradicionalmente típico da Teologia. Os estudos de exegese e interpretação, com seu aparato lingüístico, filológico, gramatical, arqueológico, constituem/constituíram elemento emancipador e via de acesso privilegiado às “essências” da religião ou das religiões sem constituir (somente) mero processo de justificação de “verdades” teológicas próprias nas confissões cristãs e entendidas como recebidas por revelação divina.

7. Esse caráter emancipador da exegese e dos processos hermenêuticos tem sido fomentado nas últimas décadas com o acréscimo de novas perspectivas como a “história dos efeitos”, com influência inegável das reflexões de Gadamer. Mais recentemente, a epistemologia e a metodologia da história social têm deixado suas marcas nos estudos de textos sagrados, buscando situar os conteúdos de textos sagrados no campo da história das mentalidades e na própria reconstrução do cotidiano de grupos, comunidade e povos que estão por trás da produção de tais textos.

8. Essa perspectiva, aliada aos estudos em campos conexos como a Arqueologia e a Etnologia possibilitam superar as formulações dogmático-doutrinárias em prol de um acesso (mais) histórico à materialidade e à vida das pessoas e dos grupamentos humanos que projetaram em textos suas realidades, utopias, interdições, leis etc.

9. Agrega-se ainda a perspectiva fenomenológica na análise do processo de produção social de textos (sagrados). Com a perspectiva fenomenológica, busca-se focar o próprio fenômeno do processo e não somente os conteúdos eventualmente aproveitáveis em termos doutrinários ou supra-históricos. Creio que a exegese latino-americana, em boa medida, deu passos importantes neste tipo de estudo, claro em sintonia com o que faz em outros espaços acadêmicos na Europa e Estados Unidos. Há aí um processo de questionamento da tradição e da autoridade que lastreiam a Teologia. Os estudos exegéticos têm a potencialidade de subverter o arco da tradição na medida em que se foca sobre a materialidade e a historicidade dos textos sagrados, em geral tão vitais para as construções das confissões religiosas em particular.

10. É evidente que “novas” perspectivas hermenêuticas como as de classe, gênero, cultura e etnia (feminista, negra, ecológica, homoafetiva) tornam os olhares múltiplos e mais atentos sobre os textos sagrados, suas construções, seus interditos. Interesses de leitor ou leitora podem ajudar a redescobrir e acessar sentidos de textos sagrados dantes não assim percebidos. Aí haverá que se perguntar se o interesse do leitor serve como luz e guia heurístico ou somente como canalizador de interesses.

11. Com isso, a “exegese” tem lugar garantido, honrado e privilegiado na Teologia, com reais chances e possibilidades intrínsecas ao seu método e epistemologia de realizar estudos transdisciplinares e interdisciplinares.

12. A pergunta que fica é quanto ao lugar da “exegese” ou “estudo de textos sagrados” em programas de Ciências da Religião. Aparentemente, a Sociologia e a Antropologia da Religião capitaneiam, ou querem capitanear, os estudos multidisciplinares sobre o fenômeno religioso. Nisso há razões e certa razão, uma vez que estas ciências têm epistemologia e metodologia elaboradas e reconhecidas no campo acadêmico. Mas, o multidisciplinar não pode se esgotar aí.

13. É necessário assegurar, pleitear, propor, defender o lugar justo, digno e honrado da “exegese” ou de “estudos sobre religião e literatura sagrada” em programas de Ciências da Religião. A exegese há tempo já deixou de ser mera fornecedora de conceitos atemporais para a construção de edifícios teológicos dogmáticos para ser uma disciplina crítica e propositiva no acesso às realidades de grupos e comunidades em tempos e espaços diversos. Como justificativa, toma-se o próprio desenvolvimento da epistemologia e da metodologia histórica inter- e transdisciplinar deste campo de estudos. Ciências da Religião deve ter olhares múltiplos sobre o fenômeno religioso em diversos recortes de tempo e espaço – contextos locais e distantes; tempos presentes e tempos passados. A exegese e os estudos de textos sagrados devem ter aí o seu lugar assegurado, não por concessão tradicional, mas por mérito de sua operacionalidade metodológica e epistemológica. É sobre isso gostaria de conversar.

HAROLDO REIMER

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