1. Na insondável noite dos tempos, inventamos a Teologia. Nós, Homo sapiens, com nossos úteros e nossas próstatas, com os olhos da cara, o medo no peito, o sangue gelado, os pés na terra nua, sob a nigérrima abóbada do firmamentum, balbuciamos estéticas hierofanias, de caça e de caçadores, posto que é assim que o bicho-homem apropria-se do seu mundo - o que é?, de onde veio?, para onde foi?
2. Ah, aí iniciamos a nossa segunda maior caminhada hermenêutica. A primeira, termos roubado do DNA o Norte e o Sul, o Raso e o Profundo, o Sim e o Não, e termos rabiscado à unha, na terra, na carne da gente, nosso mapa. A consciência ("nada" mais) é (que) um furto biológico, ciúmes entre neurônios e cromossomos. Coisa do organismo, disse Nietzsche, o vidente de pathos. Que bom! E a segunda, esboçada no "Prefácio" de Origens, de Eliade, que eu tive ímpetos de tentar corrigir. A "experiência do sagrado" - não com o sagrado, mas do sagrado - é um tipo de experiência sem conteúdo, dita "da consciência". A meu ver, o segundo passo, necessário, universal, depois do primeiro.
3. Estética foi essa noite. De assombros e fogos de artifício. Não é por outra razão que a "experiência do sagrado" (Fenomenologia da Religião) desdobre-se em tantas formas - arte, religião, política, pesquisa, mística. Ela é o levantar-se substantivo e subjetivo do Homo desde o húmus - um passo, Homo, mais um, Hermes (ou Exu, ou Mercúrio, ou Manitu, se quiseres). Essa primeira Teologia é como aquela gosma dos caramujos, a escorrer de nossos corpos, a lambuzar a terra, o céu - Tudo.
4. E vieram os reis. Chegou o grande dia do sol a pino, onde não há sombras, apenas o causticante fogo da política. E a Teologia foi descoberta pelos olhos perspicazes das aves de rapina, que sobem, sobem, o vento/espírito as leva, até que caem sobre as presas, certeiras. Não serão encontradas Grandes Civilizações tradicionais que não sejam construídas como que pela e dentro da Teologia. Assíria, Babilônia, Egito, China. Maias, Astecas, Incas. Tupis. Não foi, contudo, senão a Pérsia que elevou a arte da política teológica ao ápice do aperfeiçoamento - enfiar dentro da cabeça do povo os mitos (Detienne sabe que Platão ensinou isso na República, e eu aposto que Platão copiou isso dos persas). Antes da Pérsia, deuses contra deuses. Com a Pérsia, é cada deus vencido quem traz, pela mão, o vencedor - Ciro, seja Marduk, seja Yahweh. Início - ah, como sou cáustico! - da teologia como metáfora, uso político da estética.
5. Não creio que a era política da Teologia tenha sido a de maior duração. Desde a noite dos tempos estéticos, até o início do cinismo político-teológico, milhares, milhares e milhares de anos. Orgia de hierofanias, soltas, perdidas, porque não fecundadas pela crença da tribo - "a fé vem do ouvir", "mas quem deu crédito à nossa pregação?". O período político da Teologia, contudo, marcou a consciência do espírito humano a ferro e fogo, e fez dos deuses o que as imagens políticas esculpidas no córtex no-los pintam. A poesia aí, é passarinho na gaiola. Canta, passarinho, canta assum preto, canta.
6. Ah, Tragédia! Ah, Loucura! Ah, Cinismo! E foi esse deus que nos prenderam na cabeça, na boca, no ouvido. Fora o da estética... Mas não. Marionete de diabos. Boneco de ventre-loucos. A palrar. A tagarelar. E a fazer de nós os soldadinhos de chumbo, marcha soldado, cabeça de papel. Quando meu amigo diabo, Nietzsche, disse-me que eu era uma besta de carga, uma rês, quase lhe esmurrei a cara, mas, quando dei pelo que ouvia, e fazia, chorei. Depus ali, ritualmente, como quem se desfaz de imagens de velhos cultos trocados por novos, minha idolatria, e minhas roupas, e caminhei, nu, pelo gelo. Vês como me deixas, Prometeu?
7. Agora, nu e congelado, plúmbeo e cianótico, contemplo o horizonte. Vejo reis, ainda, e castelos, e exércitos. É, ainda, a segunda (e maldita) Teologia - é ela quem dá as cartas, como crupiê batoteiro. Que posso fazer, senão esperar o próximo dia, e aguardar que saia de dentro da carne da gente a Teologia de terceira onda? Um dia, estética, hoje, política, amanhã, agora, ah, Deus, quem dera, heurística. Científico-humanista.
8. Ela só pode sair de dentro da gente, da carne da gente, porque ela é filha da descoberta romântica do Homo. Conseqüência ecológica dos campeões do 19. É dentro de nós que ela dormita. Tem medo de acordar, e ver sumirem todas as cortes e todos os reinos. E, de fato, é somente depois que nós mesmos despertamos, convertemo-nos a uma nova existência, uma nova política, uma nova vida, que ela pode acordar.
9. Fala aí - há disciplina como essa?, que corre em nossas tripas como fezes, em nossas veias, como sangue, em nossos capilares, como linfa, em nossas sinapses, como correntes elétricas, em nossos genitais, como emulsões eróticas? Insípida? Ah, não - tem gosto de fel e mel. Incolor? Ah, não - tem a cor do céu e da terra, e, sobretudo, da carne. Por que demoras, amiga minha? Por que demoras? Desperta, desperta, e vem...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Ah, aí iniciamos a nossa segunda maior caminhada hermenêutica. A primeira, termos roubado do DNA o Norte e o Sul, o Raso e o Profundo, o Sim e o Não, e termos rabiscado à unha, na terra, na carne da gente, nosso mapa. A consciência ("nada" mais) é (que) um furto biológico, ciúmes entre neurônios e cromossomos. Coisa do organismo, disse Nietzsche, o vidente de pathos. Que bom! E a segunda, esboçada no "Prefácio" de Origens, de Eliade, que eu tive ímpetos de tentar corrigir. A "experiência do sagrado" - não com o sagrado, mas do sagrado - é um tipo de experiência sem conteúdo, dita "da consciência". A meu ver, o segundo passo, necessário, universal, depois do primeiro.
3. Estética foi essa noite. De assombros e fogos de artifício. Não é por outra razão que a "experiência do sagrado" (Fenomenologia da Religião) desdobre-se em tantas formas - arte, religião, política, pesquisa, mística. Ela é o levantar-se substantivo e subjetivo do Homo desde o húmus - um passo, Homo, mais um, Hermes (ou Exu, ou Mercúrio, ou Manitu, se quiseres). Essa primeira Teologia é como aquela gosma dos caramujos, a escorrer de nossos corpos, a lambuzar a terra, o céu - Tudo.
4. E vieram os reis. Chegou o grande dia do sol a pino, onde não há sombras, apenas o causticante fogo da política. E a Teologia foi descoberta pelos olhos perspicazes das aves de rapina, que sobem, sobem, o vento/espírito as leva, até que caem sobre as presas, certeiras. Não serão encontradas Grandes Civilizações tradicionais que não sejam construídas como que pela e dentro da Teologia. Assíria, Babilônia, Egito, China. Maias, Astecas, Incas. Tupis. Não foi, contudo, senão a Pérsia que elevou a arte da política teológica ao ápice do aperfeiçoamento - enfiar dentro da cabeça do povo os mitos (Detienne sabe que Platão ensinou isso na República, e eu aposto que Platão copiou isso dos persas). Antes da Pérsia, deuses contra deuses. Com a Pérsia, é cada deus vencido quem traz, pela mão, o vencedor - Ciro, seja Marduk, seja Yahweh. Início - ah, como sou cáustico! - da teologia como metáfora, uso político da estética.
5. Não creio que a era política da Teologia tenha sido a de maior duração. Desde a noite dos tempos estéticos, até o início do cinismo político-teológico, milhares, milhares e milhares de anos. Orgia de hierofanias, soltas, perdidas, porque não fecundadas pela crença da tribo - "a fé vem do ouvir", "mas quem deu crédito à nossa pregação?". O período político da Teologia, contudo, marcou a consciência do espírito humano a ferro e fogo, e fez dos deuses o que as imagens políticas esculpidas no córtex no-los pintam. A poesia aí, é passarinho na gaiola. Canta, passarinho, canta assum preto, canta.
6. Ah, Tragédia! Ah, Loucura! Ah, Cinismo! E foi esse deus que nos prenderam na cabeça, na boca, no ouvido. Fora o da estética... Mas não. Marionete de diabos. Boneco de ventre-loucos. A palrar. A tagarelar. E a fazer de nós os soldadinhos de chumbo, marcha soldado, cabeça de papel. Quando meu amigo diabo, Nietzsche, disse-me que eu era uma besta de carga, uma rês, quase lhe esmurrei a cara, mas, quando dei pelo que ouvia, e fazia, chorei. Depus ali, ritualmente, como quem se desfaz de imagens de velhos cultos trocados por novos, minha idolatria, e minhas roupas, e caminhei, nu, pelo gelo. Vês como me deixas, Prometeu?
7. Agora, nu e congelado, plúmbeo e cianótico, contemplo o horizonte. Vejo reis, ainda, e castelos, e exércitos. É, ainda, a segunda (e maldita) Teologia - é ela quem dá as cartas, como crupiê batoteiro. Que posso fazer, senão esperar o próximo dia, e aguardar que saia de dentro da carne da gente a Teologia de terceira onda? Um dia, estética, hoje, política, amanhã, agora, ah, Deus, quem dera, heurística. Científico-humanista.
8. Ela só pode sair de dentro da gente, da carne da gente, porque ela é filha da descoberta romântica do Homo. Conseqüência ecológica dos campeões do 19. É dentro de nós que ela dormita. Tem medo de acordar, e ver sumirem todas as cortes e todos os reinos. E, de fato, é somente depois que nós mesmos despertamos, convertemo-nos a uma nova existência, uma nova política, uma nova vida, que ela pode acordar.
9. Fala aí - há disciplina como essa?, que corre em nossas tripas como fezes, em nossas veias, como sangue, em nossos capilares, como linfa, em nossas sinapses, como correntes elétricas, em nossos genitais, como emulsões eróticas? Insípida? Ah, não - tem gosto de fel e mel. Incolor? Ah, não - tem a cor do céu e da terra, e, sobretudo, da carne. Por que demoras, amiga minha? Por que demoras? Desperta, desperta, e vem...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Um comentário:
Olá mestre,
É sempre bom ouvi-lo, lê-lo, escutá-lo, recordar das sua palavras.
Um abraço,
Ailton
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