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terça-feira, 26 de maio de 2009

(2009/295) Alunos de Harnack


1. É instrutivo - alunos de Harnack estiveram ligados às principais correntes teológicas do século XX. Cito três.

2. O "maior" de todos, lamentavelmente, eu diria, Karl Barth. O fato prova que não há "ensino", apenas, aprendizado - aprende-se o que se quer, e Barth não quis aprender muita coisa de Harnack, antes, utilizou-se de sua formação para contrapor-se à tendência "liberal" da Teologia. Pegou uma boa carona na corrente "fenomenológica", apenas para sustentar aí sua vertente hegeliana...

3. Com todo respeito aos neo-ortodoxos e aos ortodoxos - uns e outros têm, de qualquer forma, ligações com o "movimento" do qual a Teologia dialética é uma expressão, a saber, a reação conservadora que se inicia desde aproximadamente 1850 e se completa com Barth -, o pai da Teologia dialética causou um tremento estrago na História da Teologia. É, naturalmente, compreensível uma reação tão marcada contra os regimes de emancipação da cultura que se esboçaram no século XVIII, se delinearam no XIX e se materializaram (definitivamente?) no XX - o XXI é uma incógnita. No entanto, pobre Teologia, experimentou um retorno à Idade Média, opinião e juízo que compartilho com Bonhoeffer.

4. Outro aluno de Harnack foi Dietrich Bonhoeffer. Esse, deixou-se marcar indelevelmente pelo "pai" - por exemplo, não podia mais desprezar, como negativo, o século XIX (que Barth simplesmente demonizava, como o fazem seus herdeiros, desnudos ou trajados de transparência presumivelmente opaca). É tão duro o golpe do XIX, mas tão profundo, que até a sua morte, em 1945 (a julgar pelo que escreveu até 1944), Bonhoeffer tinha, apenas, estabelecido a plataforma operacional da Teologia que se deveria praticar. Mas não teve tempo de aprofundar a intuição. Morre, prestando um tributo aos maiores críticos do Cristianismo - os cavaleiros do século XIX -, bem como tentando tornar pertinente uma tradição inteiramente elaborada sob e para o regime da heteronomia em um contexto, agora, de autonomia e maturidade intelectuais.

5. O terceiro filho que quero citar é Friedrich Gogarten - este, a meio caminho entre Barth e Harnack, evidentemente um pouco mais Barth do que Harnack, mas, ainda assim, alguém mais próximo da materialidade da "emancipação" - que ele chamava "secularização" - do que Barth. Não chegou a ser um Bonhoeffer, mas teve muito mais tempo para escrever e publicar "Teologia pesada". Para Gogarten, há uma seculariação boa e uma ruim, como o colesterol. A boa, naturalmente, é aquela que vê lugar para o Cristianismo como parceiro. A má, aquela que considera que, das duas uma, ou o Cristianismo se torna contemporâneo em seus regimes político-religiosos, ou caduca.

6. Bonhoeffer tem os olhos postos no XIX. Sua pergunta é: como adaptar o Cristianismo a isso? Que tipo de fé essa situação permite - se permite? Ou seja, Bonhoeffer "viu", amplamente, a situação do homem moderno. Gogarten lida com os mesmos fios, mas os quer amarrar sob o movimento contrário - como adaptar a "secularização" ao Cristianismo? Que tipo de emancipação o Cristianismo "tolera". É sempre a velha história de "onde está o seu tesouro"...

7. Teria sido interessante estudar com Harnack, um homem sem meias-palavras. E, contudo, nosso destino não estaria, por isso traçado, porque cada um de nós constrói-se a partir de seus próprios compromissos. Os interlocutores são, apenas, catalisadores de nossos instintos.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

sábado, 23 de maio de 2009

(2009/285) Bonhoeffer e um "princípio batista"


1. Ontem ainda, Zabatiero "avacalhava" comigo, sugerindo que minhas reflexões a respeito da "Teologia" estivessem contaminadas por um "ranço batista" - já que minha tradição cristã é essa. Quem sabe? Bem, uma coisa é certa - só há a possibilidade de a tradição batista marcar minhas reflexões sobre "Teologia" por meio do espectro do seu contrário, isto é, eu ter adotado uma espécie de aversão prostática ao literalismo quase-fundamentalista da "Teologia" que grassa em nossos manuais... Está bem, tiro o "quase", se vocês quiserem.

2. Mas alto lá. Não dá pra generalizar. Concordo que o grosso, hum, está bem, capitulo outra vez, que a esmagadora e inquestionavelmente hegemônica maioria da totalidade do que grassa em todos os nossos arraias "teológicos" tem essa tradição doutrinário-literal-dogmático-fundamentalista, herança de uma certa região sul não muito agradável - em termos políticos, claro - de uma certa nação do Norte, terra de Gog e Magog (ironia!)...

3. Não dá pra generalizar, não, porque há algumas coisas escondidas aqui e ali que, vou lhes dizer, é chumbo grosso nas fuças do sujeito literalista, sacerdotalista, ortodoxo, "crentão". Coisa boa, mesmo, de fazer a gente pensar.

4. Um desvio, e volto para esse ponto. Bonhoeffer morreu em 1945 e, em 1944, rascunhara as bases para a reflexão teológica mais ousada do século XX - "um cristianismo a-religioso para um mundo tornado adulto". Ninguém, nenhuma Teologia, nem do Norte, nem do Sul, nem do Leste, nem do Oeste - que eu saiba - chegou perto, continuou o trabalho, levou-a a sério. Enterrado o corpo assassinado de Bonhoeffer, ufa!, também a Teologia medieval, metida em trajes moderninhos, sim, mas de alma medievalíssima, respirou aliviada.

5. Pois bem: eis um princípio batista que se poderia empregar perfeitamnete bem numa Teologia que tentasse dar seguimento às reflexões ambiciosas de Bonhoeffer: "nem a maioria, nem a inoria, nem a unanimidade refletem necessariamente a vontade de Deus". Ah, meus amigos, olhem lá os sacerdotes, os pastores-sacerdotes, os teólogos-sacerdotes, de cara feira! Ah, com um princípio desses, como vou tocar o gado? Se eu não posso ter o cajado de Deus na mão, como posso pôr a pastarem as ovelhas?

6. Vamos raciocinar. Se nada reflete, necessariamente, a vontade de Deus, nem a maioria, sessenta em cem, nem a minoria, quarenta em cem, nem a unanimidade, todos os cem - como alguém, sozinho ou em grupo, vai poder dizer o que "Deus quer", o que "Deus decidiu"? Se esse princípio batista for levado a sério, o que acontece com esses pregadores indecentes e imorais de hoje? O que acontece com as manipulações político-pornográficas, travestidas em espitirualidade, que grassam em nossas assembléias?

7. Ninguém me contou - eu estava lá: sessão ordinária da igreja. Novo pastor. Primeira fala à congregação. "Irmãos, Deus me deu uma visão para a Igreja". Minhas tripas torceram-se. Quase vomito. O nome da visão era "Igreja com Propósitos"... Visão: fosse aquela congregação verdadeiramente batista, um lhe pegava pelos fundilhos, outro, pelos cabelos, e o jogavam lá no olho da rua. Mas não era, não, uma congregação batista, só tinha o letreiro na porta, de modo que ouviram-se aleluias e mãos farfalhantes ao ar. Alguns juram até que Deus esteve por ali, abençoando a patifaria, e registrou-se em ata e tudo... virou História!

8. Mas se aquela fosse uma congregação batista, de verdade, quer dizer, se levasse a sério esse princípio batista, esse de dizer que ninguém sabe de Deus nada não, nem os que dizem ter visões - ah, principalmente esses! -, nenhuma visão seria levada a sério, nenhum dedo mágico, nenhuma boca revelatória, apenas a reflexão, o diálogo, a crítica - alguma coisa parecida com o que Bonhoeffer começava a pensar.

9. Mas ele está morto. E os batistas também vão morrendo, todos. Vai-se substituindo (quer dizer, algum dia ele se materializou, saiu do papel?) essa tradição pelos modelos neo-pentecostais ou próximo-neo-pentecostais. O futuro, qual é? O pior possível - antevejo. Mas se é o que se quer, que se lambuzem. Talvez cheguemos ao fundo do poço, e ponhamos a mão na consciência - se não for tarde...

10. Depois que Bonhoeffer morreu, não se deu muita atenção às suas reflexões críticas, principalmente aquelas que são fruto de um pensamento que leva a sério o século XIX. Ora, o princípio batista é exatamente alguma coisa que, na religião, tenta levar a sério o século XIX. De Bonhoeffer, desvia-se, porque ele está morto. Do princípio batista, justamente porque ele está vivo, e é um antídoto para essa pantomima da fé que se ensaia nos salões da manipulação... E é disso que aprendeu a viver a nossa sã doutrina...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

(2009/283) Resposta às Quinze Questões de Adolf von Harnack - IX (pergunta sete)


1. Há mais um pouquinho do que um mês que respondi à sexta das quinze perguntas que Harnack fez aos "Teólogos que Desprezam a Teologia Científica" (1). Chega a hora de continuar a empreitada.

2. Eis a sétima pergunta que von Harnack fez aos desprezadores: "se Deus é simplesmente diferente de qualquer coisa dita sobre ele na base do desenvolvimento da cultura, na base do conhecimento recolhido pela cultura e na base da ética, como pode esta cultura e no longo prazo sua própria existência ser protegida contra o ateísmo?".

3. A pergunta de Harnack pressupõe o platonismo oracular-sacerdotal, e, todavia, o platonismo sacerdotal-oracular sequer tem ouvidos para ouvir tal questionamento, porque é sua índole a expressão constante disso que se lhe denuncia. Nos termos dessa postura clássica das religiões, e o Cristianismo não fugiù à regra, a divindade é de outro mundo, e as informações que se dispõe a respeito dela - dos deuses em geral - são informações metafísicas e reveladas aos "xamãs", aos "profetas", aos "sacerdotes" - e, conforme Paul Veyne já nos disse, crêem-se neles, nos oráculos carismático-narradores. O resto é essa mesma política...

4. Assim, o questionamento de Harnack pressupõe, de um lado, esse status quo sacerdotal-oracular, mas, por outro lado, também a possibilidade sistêmica e cultural do questionamento desse "poder" retórico. Não é tanto "Deus" a questão - mas o "sacerdote". Quem fala pela boca de Harnack é tanto um Kant quanto um Dilthey - e, claro, um Feuerbach.

5. O raciocínio é o seguinte. Se Deus é "o Totalmente Outro", como se pode esperar que a cultura não se considere impossibilitada de crer nele, já que não tem acesso a ele, não há meios de se chegar até ele, ninguém sabe, ninguém poder dizer como ele é, onde ele está, nem pôr a questão, se ele é, de fato, extra-cultural, extra-humano. A "situação" reage: ele se "revela", ou seja, os sacerdotes de plantão apresentam-no, na forma de revelação, doutrina, sermões etc., para a população sacramentalmente cega para isso. "Bento que bento é o frade, frade (...) Tudo que seu mestre mandar, faremos todos"...

6. O que está por trás da provocação de Harnack é o "embuste" pós-kantiano de um discurso "revelatório" - daí que as retóricas de revelação têm-se de driblar Kant, seja voltando para a Idade Média, seja superando a modernidade por meio do prefixo pós. Não é à toa que Barth vai ser o primeiro a responder, como se a ele tivessem sido endereçadas as provocações - e não se duvide! Barth, de um lado, baseia-se na primeira premissa de uma pseudo-fenomenologia: a incapacidade de o homem chegar a Deus, por ser ele o "Totalmente Outro", e, por outro lado, Barth se baseia na retórica da revelação - esse "Totalmente Outro" se dá a conhecer à "Igreja" - outra retórica, porque não é bem exatamente à Igreja que ele se dá a conhecer, mas aos formuladores normativos da fé-doutrina - por meio da revelação.

7. A pergunta sete de Harnack toca esse ponto, mas é muito fácil esquivar-se dela desde dentro da retórica barthiana, porque qualquer coisa, aí, é respondida por meio da "incapacidade humana", do "pecado", da "condição natural humana", essas coisas que só valem para os humanos, mas não para os gestores a fé (Platão é política pura!) - que devem ser anjos... O protestantismo de Barth é uma hierocracia envergonhada, porque, se assumir seu presuposto de fundo - uma hierocracia doutrinário-revelada -, Barth tem de submeter-se à Roma (ou submeter Roma a si!). Mas é disso que se trata - uma segunda Roma, tanto que Barth considera que todas as "denominações" do planeta têm de repetir a mesma doutrina - a dele, naturalmente...

8. Harnack viveu perto demais dos "neo-ortodoxos". Não se deu conta, contudo, de que não há argumento nesse mundo capaz de trazer um neo-ortodoxo para o plano da Epistemologia kantiano-diltheyana. Tolice de Harnack. No mundo "dialético" - e é apenas por isso que ele se diz dialético -, a Tese é Deus, a antítese, é o homem, essa toupeira-cega, esse asno-turrão, e a síntiese é a "revelação", a "doutrina": o sacerdote esconde-se num desvão do sistema...

9. A pergunta de Harnack não é uma pergunta - é um posicionamento. É Kant, Feuerbach e Dilthey, riscando a giz os limites da Teologia - a cultura. Mas observe-se como é impossível fazer com que quem queira, ainda, furar o bloqueio, o fure: Tillich, o teólogo da cultura, não brincou de Deus e Cultura, ao mesmo tempo, invertendo a Antropologia, de modo a dizer que a cultura é religião, antes que a religião ser cultura? Ora, com isso, dançou com Deus no salão da cidade... um Barth mais sutil...

10. Não sei o que se pode fazer para curar essa "indisposição". Não sei se há argumento possível. Nao sei como o processo se dá e se desenvolve. O que sei é que, um belo dia, atolado ou não na areia movediça da neo-ortodoxia (e até dos fundamentalismos do momento), você ouve falar de Kant, de Feuerbach e de Dilthey, e tudo cai, desmorona, e você só pode seguir pelo caminho de Harnack, Bonhoeffer, Küng - caminhos que não lhe são forçados, mas inexoráveis. Deve ser uma contra-revelação isso, eu acho... Também somos, nós, homens de fé, então.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

1. Para as "questões", cf. Adolf VON HARNACK, Fifteen Questions to the Despisers of Scientific Theology, Christliche Welt, 11 de janeiro de 1923, em: Martin RUMSCHEIDT, Adolf von Harnack: liberal theology at its height. London: Collins, 1989, p. 86.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

(2009/281) Três homens que se foram


1. Rudolf Bultmann (1884-1976), Paul Tillich (1886-1965) e Dietrich Bonhoeffer (1906-1945). Três homens. Uma pátria. Um tempo. Uma Igreja. Uma história.

2. Uma história? 1933. Dá-se a subida de Hitler ao poder. Nesse mesmo 1933, Tillich é expurgado da cátedra - o primeiro professor não-judeu a sofrer a intervenção do Estado. A Decisão Socialista é apreendida pela polícia alemã. Nesse mesmo ano, bom matemático, Tillich deixa a Alemanha, e emigra para os Estados Unidos da América. É provável que, se ficasse, tivesse que optar entre pregar , ensinar e escrever "conveniências" e enfrentar a acusação de "alta traição", escolher entre a vida e a morte, escolher entre a consciência e a rendição. Escolheu. Talvez eu tivesse feito o mesmo. O que não muda os fatos.

3. Rudolf Bultmann permaneceu na Alemanha. Não estou inteirado de sua relação com a alta política alemã. A colaboração formal e informal entre a Igreja e o Estado Nacional-socialista alemão não foi privilégio católico... Rudolf tinha inclinações nacional-socialistas? Apenas "acomodou-se"? Os casos de Tillich e de Bonhoeffer sugerem questões nervosas - que implicações há em "permanecer"? Seja como for, é sugestivo o trabalho de Bultmann no centro nervoso de uma Alemanha nazista, anti-sionista, judeo-fóbica. O Antigo Testamento - judeu - é "marcionizado" - a Igreja não lhe deve satisfações, nem o tem como "fundamento". O Novo Testamento é arrancado de seu chão histórico - chamou-se a isso desmitologização, mas, fosse mesmo isso que se diz ter sido, o querigma teria sido necessariamente jogado fora, já que também o querigma é mito, de modo que o nome é bem outro... O resultado é um Cristianismo não-judeu - sob medida para um Império Contra-judeu. Constantino e Hitler são perfeitos paralelos para a relação institucional da Igreja... Aliás, Pinochet e Brasília, também... A Itália de Mussoline que o diga! A "Igreja" ama o poder... porque se pensa sê-lo... Restam as resistências locais, lúcidas, loucas...

4. 1939. Há um cheiro de guerra no ar. Há teólogos saindo da Alemanha e emigrando para os Estados Unidos. É aí, em 1939, que se encontra Dietrich Bonhoeffer. Seu olhar atravessa o Atlântico. Permanecer fora da Alemanha, nessa hora, parece-lhe fuga. Ele volta. Ele faz a travessia contrária. É como Neo, em Matrix. Juntas, as gargantas de Deus e do Diabo esperam por ele... E ele o sabe.

5. Esse Bonhoeffer é inspirador. Será preso - obviamente. Estará só. A Igreja lhe tem por constrangedora figura, porque sua presença basta para denunciar o compromisso da Ávida com o Ávido. A Ireja Confessante é seu reduto - um espinho nos olhos de tantos, de todo poder constituído. O cárcere é seu destino. Não basta - a morte, seu algoz. Todos estão aliviados, agora.

6. Não quero transformar Bonhoeffer em mártir - que foi. Assumiu sua consciência, não deve nada a ninguém, ningém lhe deve nada. Resta-nos o espelho a nos encarar... Mas é impossível não medir a distância entre ele e os demais, ele, onde a Teologia se fez pastoral mesmo. E, contudo, é um dos poucos, dos raros, quase um dos únicos teólogos do século XX que levaram a sério o século XIX. Não, nenhum outro, que eu possa me lembrar, exceto, a seu tempo e modo, um von Harnack, seu mestre, e um Hans Küng, respectivamente, entrada e saída dessa rolha reacionária que foi a Teologia do século XX, tão reacioária que, mesmo onde se fez libertação, ainda é por meio da alienação que ela opera, com "crianças" e "bestas de carga", mas, não, com gente adulta.

7. E Bonhoeffer pensava isso do homem europeu: um mundo em estado adulto. Barth, ele dizia, é medieval (e eu achando que fora eu a ter cunhado a expressão - desculpe, Bonhoeffer: créditos seus...). Bultmann, um homem que faz hermenêtica pela metade, ou seja, pára onde convém (onde lhe disseram convir?). Bonhoeffer, na cadeia, escrevendo as cartas a seu amigo Eberhard Bethge, preparava seu espírito para enfrentar a Transformação da Teologia (parodio, aqui, Transformação da Filosofia, de Karl-Otto Apel). Eis que parágrafo comovente:

7.1 "O mundo adulto (...), ou o mundo tornado adulto, é um conceito, genericamente, de derivação kantiana, mas (...) Bonhoeffer baseou-se sobretudo em Dilthey, do qual deriva diretamente o conceito e a descrição do processo histórico que levou à maioridade (...) do mundo moderno, que Bonhoeffer sintetiza na carta de 16-7-1944. Ele aceita a legitimidade do processo, mas é justamente daí que provém a questão: 'Cristo e o mundo tornado adulto'; quer dizer, a questão é como conjugar o processo do mundo em direção à autonomia com a fé em Cristo. A originalidade de Bonhoeffer não está na elaboração do conceito de 'mundo adulto', nem sequer na reconstrução histórica desse processo - elementos derivados diretamente de Dilthey -, e sim na formulação do problema teológico que daí provém" (Rosino GIBELINI, A eologia do Século XX, p. 116-117).

8. Barth, Bultmann, Tillich, Moltmann, Pannenberg - a lista é interminável -, não "levaram (apenas não suficientemente?) a sério" o séclo XIX (quanto a Tillich, cf. meus Por uma teologia pós-metafísica – diálogo com um epílogo circunstancial e Por que se escondeu esse menino? – a Teologia de Tillich à luz da Semiótica de Peirce). Hans Küng diz que apenas Edward Schillebeeckx o fez. Bonhoeffer disse que o faria - mataram-no. Nós, brasileiros, quem? O século XIX para nós é alguma coisa entre o século do diabo ou dos "ingênuos" crítico-materialistas... De lá sacamos a reação e o ácido sulfúrico da corrosão dos fatos... Ou seja: o que nos interessa. Bonhoeffer, não - ele bebe a losna e o fel. Deus do céu, ele vê, ele diz - e agora? E isso quando está a um ano da morte... Ele viu que havia mais coisa morta do que apenas seu corpo, às vésperas dela...

9. Não sei o que sairia de sua Teologia. Ficou a enigmática fórmula, inacabada, não explicitada: "cristianismo a-religioso num mundo tornado adulto". Talvez Vattimo pense seguir por aí - ao preço de dissolver a realidade com seu frasquinho alquímico de ácido sulfúrico, convertendo tudo em "interpretação" - que é tudo, menos levar a sério o XIX. Estremece-me o espírito em pensar no enfrentamento da tarefa, talvez inimaginável para a Baixada Fluminense. Todavia, é o cheiro da pulsão de morte que me move. Alguém tem de terminar a tarefa, e não na forma das negociações que empreenderam Tillich, Bultamann e os demais teólogos - como manter o mesmo, no novo... Não, é como o velho se faz nesse novo, se faz e se refaz, se desfaz, se transfaz.

10. Para mim, uma Teologia no MEC só pode ser pós-bonhoefferiana. Uma Teologia no MEC, a meu ver, tem de voltar àquela cela, recolher as anotações, e pôr-se em marcha, tendo diante de si um mundo adulto, não uma platéia hipnotizada pelo mito. É com o contra-Olimpo, o contra-Seir/Sinai, o contra-Gólgota, que a Teologia, no MEC vai dialogar. Sentar no chão, não nas nuvens. Varar os tímpanos com gravetos de árvores, para não mais ouvir cânticos de anjos - nem de diabos. Diabos - bastem-nos aqueles do século XIX...

11. Alguém vai encarar? Se não, sai da frente, que lá vou eu...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

(2008/105) Autonomia e coragem


1. É bom ter um parceiro de diálogo como Osvaldo. Por vezes dói receber suas acuradas percepções críticas a um texto exposto publicamente. Mas, isso é agorá. É discussão pública. É discussão que afia o espírito para a percepção mais acurada e cientificamente fundamentada.

2. Assim, trato de [me] corrigir. No tocante à morte de Benjamin, no texto de Hannah Arendt consta somente que "optou pela morte" (p.165). Em outros textos fala-se das circunstâncias nebulosas‘ que envolvem a sua morte, talvez por injeção de morfina. Não tendo outra fonte disponível, consultei, agora, a Wikipédia em alemão e lá há uma informação de que Benjamin teria ditado uma carta a um companheiro de caravana em rota de busca de outro espaço para viver e que esta carta teria ido parar nas mãos de Adorno. Mas que, em contraposição à tese comum de suicídio de Benjamin, haveria especulações sobre o assassinato dele, que vão desde um suicídio 'forjado' até atentado praticado por agentes de Stalin. Isso para corrigir a afirmação não devidamente fundamentada.

3. Outra é a questão do desespero. Esta coberto de razão o meu amigo em contradizer o senso de que ultima ratio do suicídio deva ser movida por ‚desespero‘. Claro, trazendo à memória os judeus de Massada, havemos de concordar que se tratou de um ato de autonomia. Tirar a própria vida pode ser ato de autonomia, neste caso, de autonomia levada às últimas conseqüências. Imediatamente me vêm à mente algumas produções cinematográficas recentes como Mar adentro e Menina de ouro, nas quais o tema do suicídio assistido é colocado em tela. Especialmente na primeira, a ênfase é a liberdade e a autonomia do sujeito frente à sua própria vida.

4. Digamos que outro estivesse na pele de Benjamin. Sim, concordo. Quer faríamos nós? Que faria eu? Lembro ainda de outro filme, creio que alemão e em preto e branco, em que um judeu condenado à forca canta e dança na frente do juiz e do algoz. Ele leva a autonomia até o momento extremo, não dando vazão ao desespero. Sim, há que se tratar o suicídio como um direito derivado do pleno exercício da autonomia.

5. Relendo texto sobre e de Dietrich Bonhoeffer, morto por enforcamento em 1945 após alguns anos de prisão por participação em atentado contra Hitler, encontrei uma passagem que gostaria de compartilhar neste tópico. De Boenhoeffer se dizia que deixava sua cela “sereno, alegre e firme qual dono que sai de seu castelo”. Num poema escrito em 1944, Dietrich Boenhoffer (Discípulo, testemunha, mártir, São Leopoldo, Sinodal, 2007, p.102), ele se pergunta:

5.1 “Quem sou eu? Este ou aquele?
Sou hoje este e amanhã um outro?
Sou ambos ao mesmo tempo? Diante das pessoas um hipócrita?
E diante de mim mesmo um covarde queixoso e desperezível?
Ou aquilo que ainda há em mim será como exército derrotado,
Que foge desordenado à vista da vitória já obtida
?"



HAROLDO REIMER

terça-feira, 12 de agosto de 2008

(2008/001) Fazer teologia se tornou tarefa mais complexa

1. Em outros tempos, o peso de Metafísica, como um lastro, constituía garantia do discurso teológico ou da síntese teológica. Nos tempos posteriores aos “grandes descontrutores” do século 19 (Nietzsche e outros), Deus, enquanto princípio metodológico, está morto. Claro, para quem crê e se vincula com o Transcendente, pela oração, pela contemplação e pela meditação, Ele continua o mesmo: vivo e pessoal.

2. Para o fazer teologia, contudo, o referencial mudou. O que os descontrutores fizeram no campo reflexivo, filosófico, teólogos relevantes fizeram no campo propriamente teológico. Dietrich Bonhoeffer, por exemplo, a despeito de sua profunda fé, piedade e do martírio pela fé em Deus, propunha fazer teologia “como se Deus não existisse”. Para ele, o mundo emancipado [de Deus] constitui o quadro referencial para fazer teologia. Outros, como Tillich, propõem o método da correlação entre a fé e a cultura. Nesta perspectiva, fazer teologia é constante e incessante diálogo com a diversidade cultural. Neste caso, por pressuposto e por extensão, fazer teologia é dialogar com um patrimônio universal, de todas as culturas. Fazer teologia é tarefa ecumênica! Mais: é macro-ecumenismo enquanto processo.

3. A chamada ‘virada antropológica’ na teologia complicou a tarefa. Sem o lastro metafísico como pressuposto metodológico, cabe construir e reconstruir o fazer teologia a partir da ‘profanidade’ da cultura humana. Há que se ter claro: o que dizemos sobre Deus é nosso dizer, ainda que a maior autoridade religiosa o diga. Os mestres da suspeita no campo da Hermenêutica não nos deixam mais, ingenuamente, elaborar o discurso sobre Deus sem considerar os caminhos e os modos de fazer esta tessitura de palavras, nas quais Deus vem tomar morada, como quem deita na rede, uma rede das palavras. Há que se perceber o modo como fenomenologicamente se constrói o discurso. A razão deve necessariamente ser articulada. Ratio passou a ser elemento integrante do fazer teologia. Isso, contudo, não constitui novidade. A dimensão racional do labor teológico já acompanha o pensamento teológico crítico nos últimos séculos. As propostas nem sempre constituíram o mainstream no nascedouro e no processo; consistiam mais em propositura de insights, clarões em mundo de escuridões. Por conta do dissenso, seus propositores permaneciam em espaços marginais. Spinoza que o diga! Mas as sendas se transformaram em caminhos.

4. Agora há que construir novos caminhos. Abrir novas sendas. Esboçar novos insights. Dialogar sobre a [nova] complexidade da tarefa do fazer teologia é objetivo deste blog. Está dado o chute inicial!

HAROLDO REIMER
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