1. Ei-la, sob minha tradução: "se a experiência de Deus é contrária ou discrepante em relação a qualquer outra experiência, como se dá a necessidade de uma radical retirada do mundo a ser evitado, ou como se pode escapar do sofisma de que se tem de permanecer no mundo uma vez que a retirada dele está baseada numa decisão da vontade, logo, uma coisa mundana?" (1).
2. Bem, não se trata de uma questão formulada em termos que me motivem. Barth, certamente, saberia responder a ela, porque haveria de fazê-lo a partir da ótica do mito metafísico a partir do qual opera. O máximo que Harnack poderia fazer é sacudir a cabeça, contrariado, aborrecido com o fato de Barth não "respeitar" as regras da ciência - Barth seria o primeiro teólogo na História a fazê-lo!
3. Se a questão fosse formulada hoje, apresentar-se-ia sob outra configuração: em termos científico-humanistas, o que significa o fenômeno que a fé religiosa chama de "experiência de Deus". Uma tal abordagem pode ser cientificamente apresentada e, eventualmente, respondida, porque o que estaria em jogo seria o fenômeno objetivável, seja sob recorte psicológico, antropológico, sociológico ou fenomenológico. Pôr em cheque uma posição teológica por meio de argumentos científicos é uma estratégia inútil, porque os ouvidos da teologia são surdos a argumentos científicos, soam-lhes como ruídos. As ciências partem, necessariamente, do século XIX - Kant, Schopenhauer, Feuerbach, Marx, Nietzsche, Dilthey, Peirce, isso para ficarmos, apenas, nas Ciências Humanas. Já a teologia, não se vê o caso de Hans Küng?, a primeira coisa que faz é desviar-se daí. A Teologia não quer, de forma alguma, saber...
4. Se a teologia estivesse verdadeiramente interessada e, por isso, fosse sensível a argumentos científicos, desde que aceitou que estivessem compondo a grade curricular de seus cursos (da graduação ao doutorado), a presença das Ciências Humanas já a teria transformado. Como a teologia pode dialogar - mas falo de diálogo verdadeiro, não cooptação seletivo de argumentos de interesse teológico, a que se resume a sua relação factual - com a Psicologia, a Antroologia, a Sociologia, a História, a Fenomenologia, e, ainda assim, levar a sério a metafísica? Mas é porque só ouve o que lhe agrada, a despeito da presença das Ciências Humanas em seu núcleo comum (até das grades da teologia umbandista e kardecista!), que a teologia joga seu jogo sob o regime do mito.
5. Ora, no campo do mito, posto que platônico, a realidade é dualista. O mundo físico e o mundo metafísico, para a teologia, compõem uma única realidade - não se vê a "lógica"´teológica dos sacramentos? Ora, os sacramentos são a "saída" teológica (catolico-romana) para a diferença de nível de realidade entre o mundo físico e o mundo metafísico, de modo que aquelas sete concentrações transdimensionais permitem a transfusão de graça de um para outro mundo. Ouvidos e corpos secularmente acostumados a lidar com a relação naturalíssima entre os dois diferentes níveis do real não têm nem como "ouvir" a pergunta de Harnack.
6. Não há qualquer modo de comunicação entre a perspectiva teológica e a perspectiva científica. Nenhum. Trata-se de uma questão paradigmática decidida a priori. Primeiro, você decide se vai entregar o seu padrão de raciocício e reflexão à cosmovisão das ciências - pronto, estará cego e surdo para a teologia. Alternativamente, você entrega seu padrão de raciocínio e reflexão para a teologia - pronto, estará cego e surdo para as ciências. As "conciliações", que estão na moda, basta ler os artigos recentes que discutem o estatuto epistemológco da teologia, soam ainda mais desagradáveis, porque não se dão conta, desde o início, de que a empreitada está viciada e corrompida por espíritos de partido.
7. A Harnack, eu diria o seguinte: se a teologia deixar-se fazer como procedimento científico, tudo, absolutamente tudo nela converte-se ao regime do jogo das ciências. Não sobrará nada, nem mesmo um núcleo seguro, constituido por um "fundador" - Jesus - e uma mensagem fundante - seu "evangelho" -, exceto como registro histórico-social de uma singularidade histórica - bem sabido, inescapavelmente intra-histórica!
8. Uma teologia como ciência considerar-se-á absolutamente "burra" a respeito da metafísica. Seu objeto de estudo será o discurso humano sobre o sagrado (discurso aí em sentido amplo, comportando linguagem, símbolo, mito, rito, liturgia - as expressões humanas em torno do tema "religião" e, inclusive, para além dela). Uma teologia assim não terá "experiências de Deus", da mesma forma como a Fenomenologia da Religião jamais foi apresentada, pessoalmente, ao "sagrado", conquanto investigará o que isso signifique na vida de quem as testemunhe - naturalmente que sob o regime da doutrina, uma vez que não há mística que não recoberta por uma interpretação doutrinária e cultural.
9. Não é à toa que Harnack vai perder a briga com Barth - entrou na arena em que o campeão da teologia ortodoxa está em casa, e vai levar uma surra...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
1. Adolf VON HARNACK, Fifteen Questions to the Despisers of Scientific Theology, Christliche Welt, 11 de janeiro de 1923, em: Martin RUMSCHEIDT, Adolf von Harnack: liberal theology at its height. London: Collins, 1989, p. 86.
2. Bem, não se trata de uma questão formulada em termos que me motivem. Barth, certamente, saberia responder a ela, porque haveria de fazê-lo a partir da ótica do mito metafísico a partir do qual opera. O máximo que Harnack poderia fazer é sacudir a cabeça, contrariado, aborrecido com o fato de Barth não "respeitar" as regras da ciência - Barth seria o primeiro teólogo na História a fazê-lo!
3. Se a questão fosse formulada hoje, apresentar-se-ia sob outra configuração: em termos científico-humanistas, o que significa o fenômeno que a fé religiosa chama de "experiência de Deus". Uma tal abordagem pode ser cientificamente apresentada e, eventualmente, respondida, porque o que estaria em jogo seria o fenômeno objetivável, seja sob recorte psicológico, antropológico, sociológico ou fenomenológico. Pôr em cheque uma posição teológica por meio de argumentos científicos é uma estratégia inútil, porque os ouvidos da teologia são surdos a argumentos científicos, soam-lhes como ruídos. As ciências partem, necessariamente, do século XIX - Kant, Schopenhauer, Feuerbach, Marx, Nietzsche, Dilthey, Peirce, isso para ficarmos, apenas, nas Ciências Humanas. Já a teologia, não se vê o caso de Hans Küng?, a primeira coisa que faz é desviar-se daí. A Teologia não quer, de forma alguma, saber...
4. Se a teologia estivesse verdadeiramente interessada e, por isso, fosse sensível a argumentos científicos, desde que aceitou que estivessem compondo a grade curricular de seus cursos (da graduação ao doutorado), a presença das Ciências Humanas já a teria transformado. Como a teologia pode dialogar - mas falo de diálogo verdadeiro, não cooptação seletivo de argumentos de interesse teológico, a que se resume a sua relação factual - com a Psicologia, a Antroologia, a Sociologia, a História, a Fenomenologia, e, ainda assim, levar a sério a metafísica? Mas é porque só ouve o que lhe agrada, a despeito da presença das Ciências Humanas em seu núcleo comum (até das grades da teologia umbandista e kardecista!), que a teologia joga seu jogo sob o regime do mito.
5. Ora, no campo do mito, posto que platônico, a realidade é dualista. O mundo físico e o mundo metafísico, para a teologia, compõem uma única realidade - não se vê a "lógica"´teológica dos sacramentos? Ora, os sacramentos são a "saída" teológica (catolico-romana) para a diferença de nível de realidade entre o mundo físico e o mundo metafísico, de modo que aquelas sete concentrações transdimensionais permitem a transfusão de graça de um para outro mundo. Ouvidos e corpos secularmente acostumados a lidar com a relação naturalíssima entre os dois diferentes níveis do real não têm nem como "ouvir" a pergunta de Harnack.
6. Não há qualquer modo de comunicação entre a perspectiva teológica e a perspectiva científica. Nenhum. Trata-se de uma questão paradigmática decidida a priori. Primeiro, você decide se vai entregar o seu padrão de raciocício e reflexão à cosmovisão das ciências - pronto, estará cego e surdo para a teologia. Alternativamente, você entrega seu padrão de raciocínio e reflexão para a teologia - pronto, estará cego e surdo para as ciências. As "conciliações", que estão na moda, basta ler os artigos recentes que discutem o estatuto epistemológco da teologia, soam ainda mais desagradáveis, porque não se dão conta, desde o início, de que a empreitada está viciada e corrompida por espíritos de partido.
7. A Harnack, eu diria o seguinte: se a teologia deixar-se fazer como procedimento científico, tudo, absolutamente tudo nela converte-se ao regime do jogo das ciências. Não sobrará nada, nem mesmo um núcleo seguro, constituido por um "fundador" - Jesus - e uma mensagem fundante - seu "evangelho" -, exceto como registro histórico-social de uma singularidade histórica - bem sabido, inescapavelmente intra-histórica!
8. Uma teologia como ciência considerar-se-á absolutamente "burra" a respeito da metafísica. Seu objeto de estudo será o discurso humano sobre o sagrado (discurso aí em sentido amplo, comportando linguagem, símbolo, mito, rito, liturgia - as expressões humanas em torno do tema "religião" e, inclusive, para além dela). Uma teologia assim não terá "experiências de Deus", da mesma forma como a Fenomenologia da Religião jamais foi apresentada, pessoalmente, ao "sagrado", conquanto investigará o que isso signifique na vida de quem as testemunhe - naturalmente que sob o regime da doutrina, uma vez que não há mística que não recoberta por uma interpretação doutrinária e cultural.
9. Não é à toa que Harnack vai perder a briga com Barth - entrou na arena em que o campeão da teologia ortodoxa está em casa, e vai levar uma surra...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
1. Adolf VON HARNACK, Fifteen Questions to the Despisers of Scientific Theology, Christliche Welt, 11 de janeiro de 1923, em: Martin RUMSCHEIDT, Adolf von Harnack: liberal theology at its height. London: Collins, 1989, p. 86.
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