1. Em 11 de janeiro de 1923, Adolf von Harnack fez publicar em Christliche Welt, "a revista dos teólogos liberais" (1), a "provocação" Quinze Perguntas aos Teólogos que Desprezam a Teologia Científica. Se julgarmos o objetivo dessas "perguntas" pela tréplica de Harnack à réplica que Karl Barth publicou, na mesma revista, em 08 de fevereiro, resulta compreensível que eu veja nela uma "provocação": "elas foram endereçadas a você também, sim, especialmente a você" (2). Após a tréplica de Harnack, Barth reagiu, a 26 de abril, com An Answer to Professor Adolf von Harnack's Open Letter. Finalmente, em 24 de maio, sempre na mesma revista, Harnack "encerra" a discussão - a rigor, "tirando o time de campo" - com A Postscript to my Open Letter to Professor Karl Barth. Se consigo controlar os eventos posteriores a essa "correspondência", a teologia liberal, pouco a pouco, sairá de cena, e a teologia dialética - barthiana - conquistará o século XX, inicialmente com o próprio Karl Barth e, século adentro, com as sempre monumentais Teologias Sistemáticas. O que quer que Harnack efetivamente tinha em mente quando falava de "teologia científica" não teve força suficiente para conter, muito menos superar, a reação conservadora - neo-ortodoxa - que se iniciara em meados de 1850, depois de um século de aprofundamentos filológicos aplicados às Escrituras e que, também influenciados pelas Luzes, certamente dão considerável lastro à teologia liberal. Barth ganha a batalha. O século XX, perde.
2. Vou dedicar-me a uma série de postagens para responder a cada uma das Perguntas de Harnack. Naturalmente, meus objetivos são diametralmente opostos aos que moveram Karl Barth, ele, em todos os sentidos, alguém que "desprezava" o que quer que Harnack considerava "teologia científica" e que, fosse ela o que fosse, era "liberal" demais para um neo-ortodoxo como Barth - um homem de palavras "modernas" e argumentos em estilo "acadêmico" - e mentalidade escolástico-medieval.
3. O que me motiva é o contexto da teologia no Brasil - seu ingresso no MEC - e a conseqüente (talvez meramente circunstancial, talvez logo a comunidade teológica se canse dela) discussão a reseito do estatuto teórico-metodológico [epistemológico] da teologia. As propostas que tenho lido (e criticado) são - praticamente todas - no estilo de Barth. Nessa direção em que sopra o vento, o século XXI da teologia no Brasil terá a cara confessional, dogmática e ortodoxa que Barth conferiu à teologia cristã do século XX. E no MEC! O que eu lamento.
4. Conforme se pode ler em minha postagem anterior, não estou convencido de que a teologia de Harnack possa ser classificada como "teologia fenomenológica", isso num quadro conceitual que prevê três tipos de teologia: 1) ontologia - fé e política, 2) metáfora - retórica e política e 3) fenomenologia - heurística indiciária (história das idéias). Para que eu assim me posicione, o ponto determinante é o caráter "normativo" da teologia de Harnack, conquanto seja uma normatividade "histórico-cultural". Como se expressa Gibellini, "Harnack buscava a essência do cristianismo, sem entretanto questionar o próprio conceito de cristianismo" (3) [de qualquer modo, uma posição definitiva quanto a esse ponto impõe a leitura da obra de Harnack]. Além disso, seu colega liberal, Ernst Troeltsch, teria-o criticado por ter-se dedicado a uma aproximação histórica da teologia cristã, sem no entanto, analisá-la também à luz da história das religiões (4) [o que insistentemente me lembra a crítica que se fez a Tillich: "teólogo provinciano"]. Isso eu interpreto como resultado da intenção de Harnack de "negociar" com as Luzes e o Romantismo um "território" de direito - restrito que fosse - para a "teologia científica", o que, para ele, ainda constituía um capítulo "eclesiástico". Inserir o "fenômeno" da teologia cristã dentro do universo mais amplo e substancialmente antropológico do conjunto da história das religiões significaria o reconhecimento da absoluta falta de "normatividade" - de especificidade "histórico-ontológica" do cristianismo - ainda que, para Harnack, ele se resumisse ao núcleo (Kern) da pregação original de Jesus.
5. Harnack, arrisco afirmar, ainda pensa a partir da Igreja, e talvez se situe muito menos anacronicamente em face da história do Protestantismo do que Barth, que representa, a rigor, um esforço de contenção dos processos de emancipação da sociedade européia, inicados e patrocinados, afinal, pelo "espírito Protestante". A relação de Harnack com as Luzes e o Romantismo é de negociação - como as negociações que determinaram a nova geopolítica após a Primeira Gerra Mundial (estamos em 1923!) - que território permanece sob que poder? Talvez, até, mas isso é apenas um pensamento, Harnack projete em sua negociação as perdas alemães devidas à guerra. Já Barth, não. Barth não negocia nada. Pelo contrário, quer retomar - e retoma (Barth é o retorno à Idade Média!) todo o território (falo por metáfora, naturalmente) do "Sacro Império Cristão do Ocidente". Joga-se, aí, um jogo político, no qual a "fé" anima as armas.
6. Um brasileiro da Baixada Fluminense, cá permito-me pensar a questão fora do campo político. As respostas que pretendo dar às questões de Harnack serão articuladas no campo da investigação a respeito de uma verdadeira (em termos popperianos) teologia científica. Nesse sentido - e contra toda a longa série de artigos que, presentemente, defendem que seja muito "natural" que a teologia, tal qual é e está, tenha cadeira e lugar no MEC (e essa teologia é - apenas - confissão!) -, sirvo-me das próprias palavras de Harnack: "assim como há apenas um método científico, também há apenas um objetivo científico - a pura cognição de seu objeto" (5) [naturalmente que a expressão "a pura cognição de seu objeto" deve ser compreendida como opondo-se a uma aproximação ideológica e "dogmática" - previamente determinada pela "fé" -, e não como uma defesa da possibilidade "positiva" de acesso imediato aos objetos da cognição humana).
7. Assim, pretendo "usar" as Quinze Perguntas de Harnack para aprofundar minha perspectiva de uma teologia pós-metafísica, pós-política, heurística, indiciária. Será uma aventura, porque, certamente, do encontro de minha posição em amadurecimento com as provocações de Harnack (em 1923 [7 de maio] Harnack fazia 82 anos!) poderá sair uma configuração inesperada, quem sabe? Toda aventura é um risco - você volta dela com muitas fotografias e memórias, ou, por outro lado e/ou ao mesmo tempo, com um ou dois ossos quebrados... Que a aventura, pois, valha o risco.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
1. Rosino GIBELLINI, A Teologia do Século XX, São Paulo: Loyola, 1998, p. 17.
2. Adolf VON HARNACK, Open Letter to Professor Karl Barth, Christliche Welt, 08 de março de 1923, em: Martin RUMSCHEIDT, Adolf von Harnack: liberal theology at its height. London: Collins, 1989, p. 91.
3. Rosino GIBELINO, op. cit. p. 14-15.
4. Idem, p. 15.
5. Adolf VON HARNACK, A Postscript..., em Martin RUMSCHEIDT, Adolf von Harnack: liberal theology at its height. London: Collins, 1989, p. 106.
2. Vou dedicar-me a uma série de postagens para responder a cada uma das Perguntas de Harnack. Naturalmente, meus objetivos são diametralmente opostos aos que moveram Karl Barth, ele, em todos os sentidos, alguém que "desprezava" o que quer que Harnack considerava "teologia científica" e que, fosse ela o que fosse, era "liberal" demais para um neo-ortodoxo como Barth - um homem de palavras "modernas" e argumentos em estilo "acadêmico" - e mentalidade escolástico-medieval.
3. O que me motiva é o contexto da teologia no Brasil - seu ingresso no MEC - e a conseqüente (talvez meramente circunstancial, talvez logo a comunidade teológica se canse dela) discussão a reseito do estatuto teórico-metodológico [epistemológico] da teologia. As propostas que tenho lido (e criticado) são - praticamente todas - no estilo de Barth. Nessa direção em que sopra o vento, o século XXI da teologia no Brasil terá a cara confessional, dogmática e ortodoxa que Barth conferiu à teologia cristã do século XX. E no MEC! O que eu lamento.
4. Conforme se pode ler em minha postagem anterior, não estou convencido de que a teologia de Harnack possa ser classificada como "teologia fenomenológica", isso num quadro conceitual que prevê três tipos de teologia: 1) ontologia - fé e política, 2) metáfora - retórica e política e 3) fenomenologia - heurística indiciária (história das idéias). Para que eu assim me posicione, o ponto determinante é o caráter "normativo" da teologia de Harnack, conquanto seja uma normatividade "histórico-cultural". Como se expressa Gibellini, "Harnack buscava a essência do cristianismo, sem entretanto questionar o próprio conceito de cristianismo" (3) [de qualquer modo, uma posição definitiva quanto a esse ponto impõe a leitura da obra de Harnack]. Além disso, seu colega liberal, Ernst Troeltsch, teria-o criticado por ter-se dedicado a uma aproximação histórica da teologia cristã, sem no entanto, analisá-la também à luz da história das religiões (4) [o que insistentemente me lembra a crítica que se fez a Tillich: "teólogo provinciano"]. Isso eu interpreto como resultado da intenção de Harnack de "negociar" com as Luzes e o Romantismo um "território" de direito - restrito que fosse - para a "teologia científica", o que, para ele, ainda constituía um capítulo "eclesiástico". Inserir o "fenômeno" da teologia cristã dentro do universo mais amplo e substancialmente antropológico do conjunto da história das religiões significaria o reconhecimento da absoluta falta de "normatividade" - de especificidade "histórico-ontológica" do cristianismo - ainda que, para Harnack, ele se resumisse ao núcleo (Kern) da pregação original de Jesus.
5. Harnack, arrisco afirmar, ainda pensa a partir da Igreja, e talvez se situe muito menos anacronicamente em face da história do Protestantismo do que Barth, que representa, a rigor, um esforço de contenção dos processos de emancipação da sociedade européia, inicados e patrocinados, afinal, pelo "espírito Protestante". A relação de Harnack com as Luzes e o Romantismo é de negociação - como as negociações que determinaram a nova geopolítica após a Primeira Gerra Mundial (estamos em 1923!) - que território permanece sob que poder? Talvez, até, mas isso é apenas um pensamento, Harnack projete em sua negociação as perdas alemães devidas à guerra. Já Barth, não. Barth não negocia nada. Pelo contrário, quer retomar - e retoma (Barth é o retorno à Idade Média!) todo o território (falo por metáfora, naturalmente) do "Sacro Império Cristão do Ocidente". Joga-se, aí, um jogo político, no qual a "fé" anima as armas.
6. Um brasileiro da Baixada Fluminense, cá permito-me pensar a questão fora do campo político. As respostas que pretendo dar às questões de Harnack serão articuladas no campo da investigação a respeito de uma verdadeira (em termos popperianos) teologia científica. Nesse sentido - e contra toda a longa série de artigos que, presentemente, defendem que seja muito "natural" que a teologia, tal qual é e está, tenha cadeira e lugar no MEC (e essa teologia é - apenas - confissão!) -, sirvo-me das próprias palavras de Harnack: "assim como há apenas um método científico, também há apenas um objetivo científico - a pura cognição de seu objeto" (5) [naturalmente que a expressão "a pura cognição de seu objeto" deve ser compreendida como opondo-se a uma aproximação ideológica e "dogmática" - previamente determinada pela "fé" -, e não como uma defesa da possibilidade "positiva" de acesso imediato aos objetos da cognição humana).
7. Assim, pretendo "usar" as Quinze Perguntas de Harnack para aprofundar minha perspectiva de uma teologia pós-metafísica, pós-política, heurística, indiciária. Será uma aventura, porque, certamente, do encontro de minha posição em amadurecimento com as provocações de Harnack (em 1923 [7 de maio] Harnack fazia 82 anos!) poderá sair uma configuração inesperada, quem sabe? Toda aventura é um risco - você volta dela com muitas fotografias e memórias, ou, por outro lado e/ou ao mesmo tempo, com um ou dois ossos quebrados... Que a aventura, pois, valha o risco.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
1. Rosino GIBELLINI, A Teologia do Século XX, São Paulo: Loyola, 1998, p. 17.
2. Adolf VON HARNACK, Open Letter to Professor Karl Barth, Christliche Welt, 08 de março de 1923, em: Martin RUMSCHEIDT, Adolf von Harnack: liberal theology at its height. London: Collins, 1989, p. 91.
3. Rosino GIBELINO, op. cit. p. 14-15.
4. Idem, p. 15.
5. Adolf VON HARNACK, A Postscript..., em Martin RUMSCHEIDT, Adolf von Harnack: liberal theology at its height. London: Collins, 1989, p. 106.
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