quarta-feira, 8 de abril de 2009

(2009/146) Da Teologia Liberal e de seu "caráter" ainda não-fenomenológico


1. Ontem de manhã, cumpri minha "obrigação" e apresentei a aula sobre Teologia Dialética. Poderia ser meramente um "desencargo profissional", mas dá-me um certo dissabor falar de teologias reacionárias, um verdadeiro freio de mão contra o avanço das rotinas epistemológicas emancipadas que varrem o Ocidente desde o século XVI, com inacreditável velocidade a partir do XIX (depois do Empismo inglês, do Iluminismo franco-europeu e, principalmente, do Romantismo alemão). Mas é a impaciência de uma meia-idade ainda cuidando ser juventude - era pra eu estar mais manso, eu sei...

2. Seja como for, a aula me trouxe algumas coisas positivas. Uma delas, sobre o que quero falar, é a pergunta de alguns alunos, boa, sobre se a teologia liberal constitui uma teologia fenomenológica - e não ontológica, então. Boa pergunta. Eu mesmo fiquei com alguma dúvida, até que um elemento me pareceu decisivo: não, a teologia liberal ainda é, ainda que no limite, ontológica. Bem, certamente não é fenomenológica.

3. Para refletir sobre a questão é preciso tomar os três "campeões" dessa questão, a que envolve a discussão em torno do tipo de teologia que faz Harnack, por exemplo. São eles: Feuerbach, Harnack e Barth.

4. Feuerbach reduz toda a teologia, e, nesse sentido, toda ontologia metafísico-religiosa, a projeção humana: mito, na forma de projeção antropológica, de modo que os deuses correspondem a hipóstases humanas, nada mais do que isso. Essa é uma proposição (em tese) heurística, porque ela constitui uma chave de leitura de todos os fenômenos religiosos, ainda que particularmente aplicada ao cristianismo (para o campo do discurso humano, ela é incontornável, conquanto não o seja, contudo [mas isso não vem ao caso], para o campo da "ontologia metafísica"). Ora, se uma teologia fenomenológica é inegociavelmente uma expressão científica, logo, investigativa, logo, passível de refutabilidade, de modo que essa teologia constituiria, verdadeiramente, um capítulo das Ciências Humanas, segue que uma teologia que se pretenda fenomenológica deve partir de Feuerbach - qualquer contorno ou tangenciamento da tese feuerbachana denuncia o caráter não-fenomenológico dessa teologia. Certo, Feuerbach não faz teologia - mas o que quero dizer é que uma teologia fenomenológica só pode ser pós-feuerbachiana, no sentido de atender às exigências do critério por ele estabelecido.

5. Bem, quanto a Barth não há dúvidas. Barth começa sua ascensão no cenário da teologia do século XX, de quem ele será o insuperável campeão, justamente tendo por interlocutor, diretamente, Harnack e, indiretamente, via Romantismo, Feuerbach. A teologia dialética de Barth edifica-se sob (contra ela, mas coooptando-a) a plataforma romântica - para a negar - e explicitamente em confronto com o liberalismo teológico de Harnack, de quem aceita a "provocação" constituída pelas quinze questões para um teólogo tradicional, que Barth responde, e, por meio da qual, a partir de então, "engole" a teologia liberal.

6. Se, num primeiro momento, Barth tem por deuteragonistas Harnack e Feuerbach, entende-se que a primeira fase de sua teologia tenha sido "dialética": a tese: um Deus Totalmente Outro, inacessecível, a antítese: um homem preso à sua condição antropológica (cooptação do Romantismo), e a síntese: a revelação de Deus em Jesus, na Palavra, na Igreja. Daí, Barth concentrar-se-á na teologia da Palavra de Deus, e, por conta da superação de seus adversários iniciais, agora, então, cada vez mais acentuadamente numa platéia doméstica, o que o levará a "focar" de modo cada vez mais acentuado a dimensão objetiva do dogma (contra, por exemplo, a subjetivação teológica de um Schleiermacher, outro "liberal"). O "novo" público de Barth define o caráter de sua Dogmática Eclesial - monumento do século XX, quase outra Súmula Teológica, se já não uma outra.

7. Barth, então, é inescapavelmente ontológico: o dogma é não apenas uma referência explícita à realidade metafísica (platônica), mas, sobretudo, "objetivo". O dogma é "revelação" e pronto. O problema é classificar Harnack. Bem, Harnack defende o emprego do método histórico-crítico - e o emprega! Isso faz dele um teólogo fenomenológico? Talvez. No entanto, o uso de ferramental crítico não defne, necessariamente, o caráter da teologia em que ele é empregado. É verdade que, por força de seu critério "histórico", Harnack reduza o fundamento do Cristianismo, a sua "essência normativa", unicamente ao que Jesus teria "pregado" - a rigor, aos Sinóticos, reduzindo o restante, de João a Apocalipse, a um capítulo da História da Igreja. Todavia, qual a relação de Harnack com esse núcleo "fundamental"?

8. Bem, não é uma relação "científica" (e a teologia fenomenológica quer-se científica), distanciada (e a teologia fenomenolçógica quer-se distanciada) - antes, trata-se de uma relação política, "normativa", no sentido de que, na condição de teólogo, Harnack afirma que é esse Jesus, metodologicamente reduzido à sua expressão histórica "concreta", o fundamento da fé, da teologia, do Cristianismo. Isso (para mim?) só parece poder significar que Harnack pensa politicamente a questão da teologia - determinando sua base teórica e seu escopo literário. Sobretudo, Harnack determina o critério da "norma" - o "fundamento histórico" -, ainda que sob um registro não necessariamente canônico (intra-canônico) ou conciliar. No entanto, a heurística não está em condições de estabelecer instâncias normativo-políticas - tão somente de descrever eventos e relações históricas, extraindo deles as interpretações e as implicações metodologicamente controláveis. Ora, a afirmação de que é Jesus, e o histórico, e não o de João, por exemplo, nem o de Paulo, o "fundamento" (normativo!) de uma religião, a cristã, não é uma atitude fenomenológica, mas política, e, nesse sentido, se a teologia de Harnack não tem o caráter necessariamente ontológico-metafísico que tem a de Barth, tem, por outro lado, um caráter ontológico-olítico, e, de qualquer modo, certamente não tem o caráter fenomenológico que uma teologia enquanto fenomenologa deve ter.

9. Assim, arrisco afirmar que Harnack não é, ainda, um teólogo fenomenológico. Nesse caso, por uma questão básica: sua teologia ainda tem função política, função de normatização, função de determinar, para uma coletividade engajada e nisso interessada, um núcleo fundamental e fundante para a fé. Naturalmente que será uma fé muito "menor", em termos de conteúdo, que a fé de um Barth, porque a fé de Barth não difere substancialmente da de Lutero, Agostinho, Nicéia ou Paulo - a fé platônico-cristã, característica, certamente, da Tradição. Já a de Harnack, constitui uma tentativa de negociação entre o melhor Lutero possível e o melhor estado da "razão" romântico-iluminista: que anéis se podem dispensar, sem que, por outro lado, percam-se os dedos? Um dedo que seja deve ficar!...

10. Julgo, portanto, que a teologia liberal foi uma tentativa de negociar terreno (para a teologia e a Igreja) com o avanço da epistemologia emancipada européia, naquela virada do XIX para o XX. Não diria que Hans Küng (aquele de Teologia a Caminho), postule alguma coisa muito diferente (também para ele "Jesus", o Jesus histórico, e o método histórico-crítico são fundamentais). Permanece, aí, uma tensão entre método e conteúdo. Talvez o método tenha uma função iconoclasta, como deve ter, sempre, na fenomenologia. Mas há, todavia, um ressupsoto de conteúdo desde a partida - Harnack e Hans Küng são tão "cristãos" quanto Barth - a sua diferença é que estão dispostos a negociar o máximo possível com a epistemologia, preservando o mínimo - inegociável - da "fé".

11. Se meus arrazoados estão decentemente sustentados, essa - a teologia liberal - ainda não é a teologia como fenomenologia que se deveria, no entanto, postular. E que, modestamente, postulo.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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