terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

(2009/023) Das coisas que fingimos não ver


1. Em pleno carnaval de 2009, a Suiça, a gloriosa Suiça, a "exemlar" Suiça, a invejada Suiça pressente um terremoto de proporções devastadoras, sente, sob os pés, como uma das antigas serpentes cosmogônicas, a mover-se o chão firme. O "São Jorge" da vez é Obama, montado sobre o alazão Crise, empunhando a lança da Comunidade Européia, tendo por escudeira a aborrecidíssima Angela Merkel. O desde sempre criminoso "segredo bancário suiço" (de resto, padrão para toda uma série interminável de paraísos fiscais) pode - em que apostamos? - acabar.

2. A Suiça ostenta uma pose severa e austera de civilidade. Mas, a julgar pela origem e pelo "valor" do dinheiro que ela guarda - religiosamente (1) -, o chão, sob seus pés, além de, agora, ameaçar esboroar-se, guarda, fétidos, cadáveres e morte. Fede. A despeito do sacramento do pecado, a Suiça viveu - e vive - como se fosse exemplo de vida. Ser suiço é ser modelo de precisão!

3. Durante a semana passada, num momento de arroubo "pastoral" (do que me envergonho depois, porque esses arroubos são fruto da "posição" como que de púlpito em que a cátedra nos coloca...), dizia à classe de Teologia da Faculdade Batista do Rio de Janeiro das práticas criminosas que nos são próprias em determinadas épocas e que, amanhã, daqui a um ano, cem, serão consideradas como o deveriam ter sido ao primeiro dos homens e mulheres vítimas delas - crime.

4. Falei-lhes, para começar, do tratamento que as mulheres recebem desde que a história é história - não sei de desde quando o mundo é mundo... Parece ter sido assim, mulheres tratadas como mercadorias, coisas descartáveis, paridoras e despejos de emulsões gonodais de macho, na Bíblia, quero dizer, em Israel e em Judá, na Grécia, na Igreja, quer dizer, no Ocidente Cristão. Ainda é assim em muitos lugares do planeta. Um aluno, missionário na África, dizia-me, depois da aula, que "trabalha" numa região da África onde o valor da mulher é menor do que o de uma cabra...

5. Falei-lhes da escravidão racial. A escravidão existe desde que a primeira guerra se fez, eu imagino, mas não era uma escravidão ontológica, racial. Nem por isso era melhor, ou pior, era, apenas, baseada em outras premissas. Mas falava da racial, a dos negros, que faz dos Estados Unidos da América a mesma pantomima que caracterizava a "democracia" ateniense, coisa de homens livres, e, neste caso, brancos. Atenas e a "América" tiveram - e têm - seus dias de "Suiça".

6. Toleramos tudo isso. No fundo, ainda há pessoas que, se pudessem, fariam as coisas voltarem aos "bons tempos". Todavia, meu discurso preparava o bote, como uma cascavel atrás da pedra. Como Moisés Chaves, em Modelo de Oratoria, falando de um Amós a enlaçar a atenção dos israelitas, na praça, para, depois de "seis" denúncias, dar na cabeça de Israel, também eu, ali, falando dos antepassados, preparava-me, desde o início, para falar de nós.

7. Que práticas ainda temos - e me refino a nós, "cristãos" -, para as quais ainda sacamos uma multidão de "justificativas", mas que, é tão certo quanto o sol nascer amanhã, amanhã serão objeto de juízo sobre nossa "sanidade" ética e moral? Ora, se toleramos práticas que nossa tradição condena - juramentos, juros, usura -, também é verdade que mantemos práticas que ela condena e que, contudo, nisso ela é tão condenável quanto nós.

8. Lá, não dei o nome à coisa. Trata-se das relações homofóbicas. Entendo perfeitamente a condenação "bíblica". Entendo perfeitamente a razão de nossas justificativas "idealistas". Em última análise, se consideramos que o homem e a mulher são "heterômatos pseudo-livres" (ou seja, são robôs feito por Deus com a liberdade de viverem segundo Deus quer, ou, caso contrário, vão para a "sucata"), e, se, ainda, consideramos que Deus, por alguma razão, abomina o homossexualismo (Deus sempre abomina aquilo que seus criadores abominam - isso é um princípio decorrente da tese de Feuerbach), então, nesse caso, faz todo sentido que o "cristão" considere abominável o homossexualismo. Ainda que, epistemologicamente, saibamos que Deus é cópia do cristão, para este, ele mesmo é cópia do Deus que cuida crer. Logo, faz sentido.

9. Por outro lado, se admitirmos que o homem é um autômato livre, isto é, que sua existência dá-se por meio de sua livre determinação ecologicamente situada, que suas leis, seus gostos, suas práticas, são - absolutamente todas! - produto de sua cultura, de sua história, que as coisas que faz e desfaz são feitas e desfeitas por sua livre iniciativa, que, se há Deus(es), não se pode, em sã consciência, atribuir nada de concreto, no homem e na mulher, a "ele(s)", se somos mais nietzscheanos e românticos do que agostinianos e "cristãos", se rompemos a placenta que, de tanto "amar", não quer, nunca, parir - ainda que ame um aborto nunca espelido -, não resta alternativa senão admitir que é de direito, pleno, a auto-existência homossexual, gostemos disso ou não. Aliás, é a premissa do Direito - felizmente.

10. Tudo se resumirá à plataforma epistemológica de raciocínio. A que uso, agora, é romântico-complexa - logo, é aberta, biológica, ecológica, orgânica, no sentido em que compreende os valores, as leis e as práticas humanas como frutos histórico-condicionados das relações histórico-sociais humanas. Para a plataforma epistemológica platônico-cristã, contudo, cuja premissa é, para o tema, a "revelação" consignada em Levítico, por exemplo, compreende-se o "fechamento". Só não deviam ser esquecidas aquelas épocas em que esse mesmo princípio tolerava a submissão/opressão da mulher, bem como a escravidão dos negros. Posso me fechar em minha clausura doutrinária, mas não posso evitar que o futuro tenha de mim a mesma idéia que tenho, hoje, de meus antepassados que, posto estarem do lado de cá, não podiam - não queriam! - deixar-se tocar pela face humana que humilhavam - em nome de Deus. Sim, Deus é, mesmo, Todo-Poderoso!

11. A Suiça pode cair. Também aí são outros que deverão derrubá-la, porque, a depender dela, há coisas que, absolutamente, não se deseja confessar que vê...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO


(1) “O manejo do dinheiro na Suíça”, diz Ziegler, “se reveste de um caráter sacramental. Guardar, recolher, contar, especular e ocultar o dinheiro, são todos atos que se revestem de uma majestade ontológica, que nenhuma palavra deve macular e se realizam em silêncio e recolhimento” (Gilles Lapouge, A morte do segredo bancário suíço, Luís Nassif on-line, disponível aqui em 24/02/2009)

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