1. Há alguns anos, uns seis ou sete, talvez, um eminente teólogo canadense, velhinho já, daqueles de terem neve e, não, cabelos, falou-nos por ocasião de um café da manhã no Seminário do Sul. Havia umas quarenta pessoas. Ele falou de "amor": o Cristianismo tinha de "amar", como nunca, mais do que sempre, porque o segredo era amar, era amor. Os convidados, marejados, estavam praticamente em êxtase... Um Paulo redivivo, um profeta do amor, ali, com o segredo do Cristianismo...
2. Levantar a mão é claro que eu levantei, mas tinha o horário do avião, ele tinha que sair mais rápido do que o tempo de esfriar meu café com leite, e eu não fui selecionado para as perguntas. E eu faria essa: o senhor está convencido de que o que falta e faltou ao Cristianismo é o amor. Bem, ainda perguntando, o senhor acha que os cristãos que viviam na época de Nicéia, qando uma única doutrina sobrepujou-se às demais, não se amavam? O senhor acha que os cruzados, cristãos, não amavam nem a si, nem aos irmãos e nem aos mouros? O senhor acha que os cristãos da Inquisição não amavam os hereges que tornturavam e matavam? O senhor acha que os cristãos nunca amaram?
3. Mas, ainda pergunto, não foi sempre - e sempre é - em nome do amor que a Igreja fez e faz tudo? Sempre? Sempre houve Coríntios 13. O que faz com que o senhor pense que seu discurso teológico guarde algum segredo ou alguma novidade? Seria o quê? A nossa geração, finalmente, evoluiu para a condição de amar, ao passo que as gerações anteriores não estavam suficientemente preparadas para isso? Que os cristãos que inventaram o Dogma, que festejaram as Cruzadas, que iluminaram a Inquisião, não sabiam, não queriam, amar?
4. Não sei o que ele responderia. No entanto, não dou a mínima importância ao discurso que ouvi, porque é pura ingenuidade irrefletida. Sabem quando o Cristianismo vai poder, realmente, amar? Apenas no dia em que decidir que o amor é maior do que as doutrinas, quando não olhar mais a casca das pessoas, mas, apenas, elas mesmas, as pessoas, sem rótulos nem conteúdos pré-fabricados. Até hoje, sempre foi ter à mão dois valores, o amor e a verdade. Anselmo inventou aquela história raconalizada de que Deus é plenamente bom e plenamente justo, sendo por isso que, mesmo amando os homens, vai mandá-los para os quintos dos infernos, porque seu amor não pode desconsiderar a sua verdade. Na hora h, o amor abaixa a cabeça, põe o rabo entre as pernas, e a verdade diz quem manda no pedaço: acabou a brincadeira, amor, está na hora de os adultos conversarem...
5. Bem, prefiro a passagem da mulher dita pega em adultério: não te condenam os teus acusadores, mulher - nem eu. Ora, ora , ora - Jesus nao condena... Já Paulo... Já nós... Eu não vejo solução para nós, por isso. Porque quando o amor e a verdade se econtram, só brincam juntos se a verdade der as cartas. Se a verdade sentir-se, hum, ferida, digamos, o amor lhe dá permissão para ferir, matar, odiar - em nome do amor, isto é, em nome do esforço de fazer com que o filho do erro retorne para a verdade. E você pode chamar a verdade de verdade, fé, doutrina, dogma, esperança, do que quiser: se é a boa e velha verdade, danou-se...
6. Não estou aqui interessado em dizer que a Igreja deveria optar pelo amor, e deixar de lado a questão da verdade. Não serei eu a dizer a ela o que deve fazer - ela é bem grandinha. Estou, sim, dizendo, que enquanto houver a verdade, o amor é secundário, é epifenômeno. A verdade sempre terá a primazia de dar a palavra final, o golpe final, a despeito do amor.
7. E, então, eis aonde quero chegar. A classe de Tópicos Especiais e Teologia e eu, ontem, continuamos a ler o artigo de Enio R. Mueller. O Luís Cláudio é um aluno perspicaz. Ele já leu o artigo todo e, quando estávamos na penúltima parte, ele já cantava a pedra: "ah, mas na parte final o Mueller vai revelar que a esperança é a fé". O leitor se lembra de que o artigo de Mueller discute o estatuto teórico da tologia, que, agora, está no MEC. E ele define teologia como "a interpretação da realidade à luz da esperança". Só que, até o parte três, ele não deixa claro o que é a esperança. Até aí, dá uma volta enorme, e conclui dizendo basear-se em dois pilares: para a interpretação (hermenêutica), Ricoeur e Gadamer, e, para a esperança, Bloch e Adorno (mas isso sem dar as fontes, apenas citando os nomes...).
8. E, então, chega a parte quatro do artigo. O Cláudio quer, de uma vez só, sepultar os esforços de Mueller. Estamos no penúltimo parágrafo da p. 99. Eu tento contê-lo. Calma, Cláudio. A palavra "revelação", mais "Lutero", mais "esperança", mas "sub specie asternitatis", mais "'no coração de Deus'" - sim, esse conjunto pode, muito, muito plausivelmente, mesmo, como você vê, indicar a "doutrina": a esperança, em Mueller, é um outro nome para a mesma fé cristã, isto é, para os dogmas. Mas, disse eu, diante de um tribunal, Mueller poderia dizer que tudo isso são formas abertas de se referir à utopia aberta, vá lá, termos infelizes, porque carregados de história, mas, em todo caso, como negar-lhe a defesa? Vamos, Cláudio, esperar. Vamos ver se não há alguma afirmação mais categórica, menos fugidia...
9. E chega o parágrafo que começa na p. 99 e termina na 100: "o modo in spe designa aqui uma correlação do teológico com o filosófico ou científico, considerados como caracterizando-se pelo modo de interpretação in re. A spes, portanto, não significa nesta correlação o mesmo que a virtude da esperança dentro da correlação com as virtudes da fé e do amor. Uma hermenêutica teológica ao modo da esperança já é sempre uma hermenêutica informada pela fé e animada pelo amor. O intellectus spei não descarta, mas inclui um intellectus fidei, como tem sido desenvolvido especialmente na teologia “clássica”, e um intellectus amoris, como tem sido desenvolvido especialmente na teologia latino-americana das últimas décadas. Manter esta correlação é de fundamental importância, pois ela assegura a relação da teologia como hermenêutica com a revelação, por um lado, e com a ética, por outro".
10. Bem, aqui a defesa de Mueller, caso ele a deseje, seria muito dificultada. Ele fala de "manter esta correlação". Bem, correlação entre o quê? Entre o intellectus spei, de um lado, e, de outro, o intellectus fidei e o intellectus amoris de outro. Esperança mais fé e amor numa nova correlação - hermenêutica. E a fé, aí, diz-se, é aquele tipo "como tem sido desenvolvido especialmente na teologia 'clássica'". Ora, o intellectus fidei da teologia clássica é a doutrina, o dogma, meta-se o homem por aí por meio de retóricas de analogia ou metáfora, tanto faz. Nesse caso, o parágrafo que Cláudio queria marcar como a confissão de Mueller, de fato, já dizia isso: a teologia é como que um olhar de Deus, uma visada sub specie aeternitatis do mundo, revelada ao homem na fé, isto é, na compreensão da doutrina e do dogma. Quando a teologia é interpretação da realidade à luz da esperança, e quando essa esperança é o mesmo depósito de fé da História da Igreja, e quando essa fé transforma-se na filtro revelado do que está para além da realidade-real, ora, isso nada mais é do que a atualização, em "chave" hermenêutica, da boa e velha tradição luterana. Fé e amor... mas, agora, com uma pitada de opacidade humana. Barth não ia gostar, mas Bultmann, Ebeling, Fuchs, Tillich iam achar muito interessante. "Deus é símbolo para Deus"...
11. Voltei àquele café. E senti o estômago um tanto mais embrulhado. Porque Mueller tenta fazer mais do que o velho teólogo canadense achou que fazia. Quer abraçar, agora, o mundo e o MEC. Quanto ao mundo, já disse: pretender manter a fé e a verdade juntas é não ter entendido muita coisa da História do Cristianismo. Não pense ele, nem a moda metafórica que grassa por aí, que disfarçar a verdade com aparências retórico-hermenêuticas faz da fé outra coisa que não aquilo que dela se sabe desde a "teologia cássica" - a necesidade de manter os doutrinas, fingindo-as verdadeira, mas, apenas, metáforas ou interpretaçõs, já demonstra a negociação que ela, a verdade, impõe ao amor. Na hora h, não se assustem quando a metáfora e a interpretação cravarem suas garras no peito desprevenido da esperança.
12. Quanto ao MEC, bem, um discurso que sugere um olhar como que desde a eternidade, revelado desde o coração de Deus a um homem, agora, superado de sua contingência pela mágica da teologia, consubstanciado na fé, filtro hermenêutico da realiade, bem, isso é tudo menos o que eu gostaria de ver entre nós. Mas, se é para ser assim, gostaria imensamente de ver como a coisa vai acabar quando um teólogo da FTU sentar-se com um teólogo da EST para, desde a eternidade, falar desde o coração dos orixás, as verdades reveladas e consignadas na forma da fé, uma das quais diz que monoteísmo é uma prova de cegueira, porque o olho viu, eventualmente um, mas não todos os deuses... Ao que um teólogo da escola onfreyana-dawkinsiana retrucará: deuses, como assim, deuses? É ou a verdade de todos, ou a mentira de todos. Mas, se a verdade de todos contradiz-se, como fica? E, se é a mentira de todos, porque não chamar-lhe logo pelo nome?
13. Ah, fé, vai ser duro livrarmo-nos de ti... És mesmo uma neurose...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Levantar a mão é claro que eu levantei, mas tinha o horário do avião, ele tinha que sair mais rápido do que o tempo de esfriar meu café com leite, e eu não fui selecionado para as perguntas. E eu faria essa: o senhor está convencido de que o que falta e faltou ao Cristianismo é o amor. Bem, ainda perguntando, o senhor acha que os cristãos que viviam na época de Nicéia, qando uma única doutrina sobrepujou-se às demais, não se amavam? O senhor acha que os cruzados, cristãos, não amavam nem a si, nem aos irmãos e nem aos mouros? O senhor acha que os cristãos da Inquisição não amavam os hereges que tornturavam e matavam? O senhor acha que os cristãos nunca amaram?
3. Mas, ainda pergunto, não foi sempre - e sempre é - em nome do amor que a Igreja fez e faz tudo? Sempre? Sempre houve Coríntios 13. O que faz com que o senhor pense que seu discurso teológico guarde algum segredo ou alguma novidade? Seria o quê? A nossa geração, finalmente, evoluiu para a condição de amar, ao passo que as gerações anteriores não estavam suficientemente preparadas para isso? Que os cristãos que inventaram o Dogma, que festejaram as Cruzadas, que iluminaram a Inquisião, não sabiam, não queriam, amar?
4. Não sei o que ele responderia. No entanto, não dou a mínima importância ao discurso que ouvi, porque é pura ingenuidade irrefletida. Sabem quando o Cristianismo vai poder, realmente, amar? Apenas no dia em que decidir que o amor é maior do que as doutrinas, quando não olhar mais a casca das pessoas, mas, apenas, elas mesmas, as pessoas, sem rótulos nem conteúdos pré-fabricados. Até hoje, sempre foi ter à mão dois valores, o amor e a verdade. Anselmo inventou aquela história raconalizada de que Deus é plenamente bom e plenamente justo, sendo por isso que, mesmo amando os homens, vai mandá-los para os quintos dos infernos, porque seu amor não pode desconsiderar a sua verdade. Na hora h, o amor abaixa a cabeça, põe o rabo entre as pernas, e a verdade diz quem manda no pedaço: acabou a brincadeira, amor, está na hora de os adultos conversarem...
5. Bem, prefiro a passagem da mulher dita pega em adultério: não te condenam os teus acusadores, mulher - nem eu. Ora, ora , ora - Jesus nao condena... Já Paulo... Já nós... Eu não vejo solução para nós, por isso. Porque quando o amor e a verdade se econtram, só brincam juntos se a verdade der as cartas. Se a verdade sentir-se, hum, ferida, digamos, o amor lhe dá permissão para ferir, matar, odiar - em nome do amor, isto é, em nome do esforço de fazer com que o filho do erro retorne para a verdade. E você pode chamar a verdade de verdade, fé, doutrina, dogma, esperança, do que quiser: se é a boa e velha verdade, danou-se...
6. Não estou aqui interessado em dizer que a Igreja deveria optar pelo amor, e deixar de lado a questão da verdade. Não serei eu a dizer a ela o que deve fazer - ela é bem grandinha. Estou, sim, dizendo, que enquanto houver a verdade, o amor é secundário, é epifenômeno. A verdade sempre terá a primazia de dar a palavra final, o golpe final, a despeito do amor.
7. E, então, eis aonde quero chegar. A classe de Tópicos Especiais e Teologia e eu, ontem, continuamos a ler o artigo de Enio R. Mueller. O Luís Cláudio é um aluno perspicaz. Ele já leu o artigo todo e, quando estávamos na penúltima parte, ele já cantava a pedra: "ah, mas na parte final o Mueller vai revelar que a esperança é a fé". O leitor se lembra de que o artigo de Mueller discute o estatuto teórico da tologia, que, agora, está no MEC. E ele define teologia como "a interpretação da realidade à luz da esperança". Só que, até o parte três, ele não deixa claro o que é a esperança. Até aí, dá uma volta enorme, e conclui dizendo basear-se em dois pilares: para a interpretação (hermenêutica), Ricoeur e Gadamer, e, para a esperança, Bloch e Adorno (mas isso sem dar as fontes, apenas citando os nomes...).
8. E, então, chega a parte quatro do artigo. O Cláudio quer, de uma vez só, sepultar os esforços de Mueller. Estamos no penúltimo parágrafo da p. 99. Eu tento contê-lo. Calma, Cláudio. A palavra "revelação", mais "Lutero", mais "esperança", mas "sub specie asternitatis", mais "'no coração de Deus'" - sim, esse conjunto pode, muito, muito plausivelmente, mesmo, como você vê, indicar a "doutrina": a esperança, em Mueller, é um outro nome para a mesma fé cristã, isto é, para os dogmas. Mas, disse eu, diante de um tribunal, Mueller poderia dizer que tudo isso são formas abertas de se referir à utopia aberta, vá lá, termos infelizes, porque carregados de história, mas, em todo caso, como negar-lhe a defesa? Vamos, Cláudio, esperar. Vamos ver se não há alguma afirmação mais categórica, menos fugidia...
9. E chega o parágrafo que começa na p. 99 e termina na 100: "o modo in spe designa aqui uma correlação do teológico com o filosófico ou científico, considerados como caracterizando-se pelo modo de interpretação in re. A spes, portanto, não significa nesta correlação o mesmo que a virtude da esperança dentro da correlação com as virtudes da fé e do amor. Uma hermenêutica teológica ao modo da esperança já é sempre uma hermenêutica informada pela fé e animada pelo amor. O intellectus spei não descarta, mas inclui um intellectus fidei, como tem sido desenvolvido especialmente na teologia “clássica”, e um intellectus amoris, como tem sido desenvolvido especialmente na teologia latino-americana das últimas décadas. Manter esta correlação é de fundamental importância, pois ela assegura a relação da teologia como hermenêutica com a revelação, por um lado, e com a ética, por outro".
10. Bem, aqui a defesa de Mueller, caso ele a deseje, seria muito dificultada. Ele fala de "manter esta correlação". Bem, correlação entre o quê? Entre o intellectus spei, de um lado, e, de outro, o intellectus fidei e o intellectus amoris de outro. Esperança mais fé e amor numa nova correlação - hermenêutica. E a fé, aí, diz-se, é aquele tipo "como tem sido desenvolvido especialmente na teologia 'clássica'". Ora, o intellectus fidei da teologia clássica é a doutrina, o dogma, meta-se o homem por aí por meio de retóricas de analogia ou metáfora, tanto faz. Nesse caso, o parágrafo que Cláudio queria marcar como a confissão de Mueller, de fato, já dizia isso: a teologia é como que um olhar de Deus, uma visada sub specie aeternitatis do mundo, revelada ao homem na fé, isto é, na compreensão da doutrina e do dogma. Quando a teologia é interpretação da realidade à luz da esperança, e quando essa esperança é o mesmo depósito de fé da História da Igreja, e quando essa fé transforma-se na filtro revelado do que está para além da realidade-real, ora, isso nada mais é do que a atualização, em "chave" hermenêutica, da boa e velha tradição luterana. Fé e amor... mas, agora, com uma pitada de opacidade humana. Barth não ia gostar, mas Bultmann, Ebeling, Fuchs, Tillich iam achar muito interessante. "Deus é símbolo para Deus"...
11. Voltei àquele café. E senti o estômago um tanto mais embrulhado. Porque Mueller tenta fazer mais do que o velho teólogo canadense achou que fazia. Quer abraçar, agora, o mundo e o MEC. Quanto ao mundo, já disse: pretender manter a fé e a verdade juntas é não ter entendido muita coisa da História do Cristianismo. Não pense ele, nem a moda metafórica que grassa por aí, que disfarçar a verdade com aparências retórico-hermenêuticas faz da fé outra coisa que não aquilo que dela se sabe desde a "teologia cássica" - a necesidade de manter os doutrinas, fingindo-as verdadeira, mas, apenas, metáforas ou interpretaçõs, já demonstra a negociação que ela, a verdade, impõe ao amor. Na hora h, não se assustem quando a metáfora e a interpretação cravarem suas garras no peito desprevenido da esperança.
12. Quanto ao MEC, bem, um discurso que sugere um olhar como que desde a eternidade, revelado desde o coração de Deus a um homem, agora, superado de sua contingência pela mágica da teologia, consubstanciado na fé, filtro hermenêutico da realiade, bem, isso é tudo menos o que eu gostaria de ver entre nós. Mas, se é para ser assim, gostaria imensamente de ver como a coisa vai acabar quando um teólogo da FTU sentar-se com um teólogo da EST para, desde a eternidade, falar desde o coração dos orixás, as verdades reveladas e consignadas na forma da fé, uma das quais diz que monoteísmo é uma prova de cegueira, porque o olho viu, eventualmente um, mas não todos os deuses... Ao que um teólogo da escola onfreyana-dawkinsiana retrucará: deuses, como assim, deuses? É ou a verdade de todos, ou a mentira de todos. Mas, se a verdade de todos contradiz-se, como fica? E, se é a mentira de todos, porque não chamar-lhe logo pelo nome?
13. Ah, fé, vai ser duro livrarmo-nos de ti... És mesmo uma neurose...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
7 comentários:
"Ora, ora , ora - Jesus nao condena... Já Paulo... "
Osvaldo, essa passagem da mulher adúltera no evangelho de João parece-me, - embora eu não seja especialista - um acréscimo bem posterior, não é? Pois, parece-me, em documentos antigos desse evangelho não se conhecia essa passagem, conforme comentários na Bíblia de Jerusalém, André Chouraqui e alhures. Por mais bela que nos pareça, ainda assim é acréscimo espúrio, não seria assim?
Outra coisa, Osvaldo, permita-me discordar um pouco da leitura que tem do Paulo. Acho que ele é muito incompreendido, vítima daquilo que a 2a. carta de Pedro já advertia, a de que as cartas paulinas têm pontos difíceis de entendimento. Concordo, principalmente porque as cartas paulinas recorrem bastante à linguagem simbólica, cujos arcanos os antigos sábios tinham a chave e que, infelizmente, se perdeu. Bem, pode-se ver que eu simpatizo com o Paulo, naquilo que compreendo dele.
Um fraterno abraço,
Flávio Santos
Flavius, na fórmula que empreguei, "Paulo" é um estereótipo para o conjunto da literatura neo-testamentária a ele atribuída - seja "dele" ou não. Não se trata de referir-me ao Paulo histórico.
"Jesus", por outro lado, constitui um referencial literário - o Jesus daquela passagem. Não foi minha intenção refletir sobre a cronologia dos textos, mas sobre o valor dos seus discursos: um, não condena, outro sim, e não me surpreende que justamente o mais "aberto" seja aventado como o "espúrio". Trata-se de uma adesão. Eu prefiro essa narrativa do que a teologia inteira de Paulo, tirada do templo, e, por isso, pela teologia sacerdotalcontaminada. É impossível ser crítico do templo e não perceber o "tom" paulino - e, nesse caso, seja de qualquer Paulo.
Sim, Paulo é de "difícil compreensão". Serei eu também um dos que o distorcem? E será que há exceções?
Seja como for, o século XX abre com uma dicotomia Jesus/Paulo (Harnack) e fecha com a mesma dicotomia (Hans Küng). De modo que não é novidade o que eu estou dizendo. São águas antigas, já, cansadas de correr.
Mas legal você ter comentado. Obrigado por sua visita.
Osvaldo.
Obrigado pela resposta, Osvaldo.
Existe uma passagem de Paulo, que entendo que é chave para a compreensão da teologia dele. É a de 1Coríntios, 5:9-13. O que se escreve ali? É a correção que ele prescreve aos seus destinatários, pois entenderam de suas recomendações anteriores de abster-se de relações com certos humanos, que, pelos seus "vícios", não adentrariam o Reino dos Céus. Que se passou? Os destinatários da carta anterior criaram dissensão entre eles, "homo sapiens". Paulo corrige que os humanos por ele referidos necessários de abstinêncioa são os do interior da consciência. Que se fosse do exterior, do mundo secular, restaria aos destinatários da carta se excluírem do mundo. Prescreve, por conseguinte, que deixasse a Deus (figura retórica) cuidar de julgar os "homos sapiens", cabendo ao leitor destinatário preocupar-se com a purificação da consciência, de gerir a sua interioridade, abster-se de criar dissensoões entre eles, "homo sapiens".
É complicada a teologia paulina, sim, concordo. Que olhos devemos apor? Não a secular! Como disse "Jesus", a Lei e os Profetas resumem-se em dois mandamentos: "Amar a Deus sobre todas as coisas", e outro, de idêntica natureza, "amar ao próximo como a si mesmo". Pois se não chegarmos a amar ao próximo, não conhecemos a Deus, que a todos dá vida e respiração, e em quem existimos e vivemos, como diz Paulo em Atos, cap. 17.
Osvaldo, perdoe-me pela minha beatice acima, mas, por formalidade exterior, a cristandade exotérica me tomaria por ateu.
Sinceramente, um profundo abraço a quem admiro por ousar caminhos próprios.
Flávio Santos
Flavius, o amor paulino pára à porta do céu. A Verdade há de dizer quem entra, e quem não, e mesmo o amor de Deus pára quando a verdade está em jogo. É isso que quis dizer, e repito. O Cristianismo compôs-se a partir de doutrinas, e ele se reduz a isso. Se você aceitar que a doutrina, qualquer que seja, é irrelevante para o céu, que o puro amor de Deus basta, então não precisamos discutir. Mas se há aquele senão, há verdades verdadeiras que são as palavras da salvação, então nao há jeito, o Cistianismo é a religião da doutrina, disfarçada de religião de amor.
Além disso, não adianta citar as palavras do Novo Testamento, porque elas pressupõem a epistemologia da época. Eu não posso usar, hoje, a epistemologia da época. Não sou platônico, nem posso ser. Paulo não pode me dizer mais muita coisa, porque o compromisso de Paulo é platônico, uma gnose ortodoxa.
Assim, ser cristão a partir do século XIX é uma coisa que se tem de inventar. Mas certamente não é mais o que era o que Agostinho dizia, nem Lutero, e, cá entre nós, Barth quer-me na Idade Média.
Não é fácil. Mas uma coisa é certa: é fácil ver com que olhos e mente as doutrinas foram criadas. O efeito delas depende de você aceitar viver naquela época.
Sim, ouso caminhos própios. Quando Lutero fez o que fez, não imaginava que criaria uma nova forma de ser cristão, que ele mesmo negou-se, é certo. Mas eu não posso.
Mais uma vez, obrigado pela visita. E pelo bate-papo.
Osvaldo.
Osvaldo, encerrando minha participação, só queria acrescentar que Paulo é místico, stricto sensu. E todo verdadeiro místico tem a experiência "metanóica". Há um antes e um depois distinguíveis. Por isso, ele, ao interpretar passagem do Pentateuco, expressamente declara que a escritura interpretada destinava-se a ele e outros que foram atingidos pelo "fim dos tempos". E então, boi deuteronômico não é mais boi, não é gado para Paulo! Há um mundo a transcender, ingressar nos "novos céus e nova terra".
Essa dicotomia é universal em todas as escrituras do mundo, pois retratam experiência mística. Há uma nova dimensão consciencial do saber, a do "Cristo crucificado". Equivale ao "Para Vidya" do Mundaka Upanishad. Sem essa ruptura, não há fronteira consciencial para estabelecer já "o fim dos tempos". Nem a "Jerusalém celeste", que emerge com "novos céus e nova terra", pode ser estabelecida como "mãe", como faz Paulo em Gálatas. Por isso, também, ele distingue diferentes estágios de consciência entre destinatários de sua carta.
Nas poucas partes em que reconheci se referirem ao mundo secular, estabeleceu igual estatuto entre a mulher "cristã" e homem "cristão", como aquela de dissolver ou não o casamento. Os malandros me acossarão que se tratava de consorte "gentio". Existe espaço para discussão de casamentos indissolúveis, aquele que o "homem" (não "homo sapiens") não pode separar, e há casamentos dissolúveis, estes concernentes ao mundo secular. O termo cristão acima é stricto sensu, equivale ao o que é "judeu no interior".
Osvaldo, sobre teologia cristã não conheço quase nada. Grande herança dos meus pais, pelo menos para mim, que assim me permitiram exercer um olhar crítico mais desapaixonado. Sou mais próximo àqueles “gentios” do Romanos, capítulo 2, que não tendo a lei, erigiram a si mesmos a lei no coração.
Do pouco que conheço da chamada teologia “cristã”, Barth e Lutero, por exemplo, ainda que palidamente conhecidos, são claros exemplos daquilo que Paulo encerrava sob conhecedores de Cristo "segundo a carne", mas não segundo o espírito. Por isso, esses senhores não podem estabelecer nenhum conhecimento concernente a "graça", a "fé", nem poderiam. Porque permaneciam na primeira vida, conservaram a primeira vida e não transpuseram para a do “Segue-me”. A primeira vida, a dele, a egóica. Quão difícil é transcender o ego! Em razão disso, suas penas aperfeiçoam-se na "carne" e não no "Espírito". A maioria dos "doutores" cristãos jamais se empobreceram do velho mundo, nem conheceram a mansidão interna. Permaneciam no estágio mítico de consciência. Inácio de Antioquia é outro exemplo, se não erro o nome. Parece-me que boa parte dos "doutores" é dessa estirpe. Eckhart é anátema para a ortodoxia, no entanto frequenta as salas de Heidegger, dos zen-budistas. Rumi, al-Hallaj são da casa de Eckhart.
Hans Kung, ainda preciso conhecer sua obra, parece-me que é do estágio pluralista de consciência. Se for isso, é acima de Bento XVI, que é mítico ("inferno existe"). Os dois subsistem em diferentes planos de consciência. A sensibilidade dos pluralistas é exercida também por Leonardo Boff. Natural que estes se choquem com o Bento XVI. Mas os pluralistas também ainda não atingem a Cristo, stricto sensu, que é mais acima.
A história "cristã" é praticamente pena do "velho homem", que jamais alcança o conhecimento do Espírito. "Cristão" no exterior, muitos "gentios" até a medula. São aqueles que Paulo declara de consciência psíquica/natural, contraposto ao espiritual. A história também é testemunho de exacerbação do que Paulo classifica de "obras da lei", que não aperfeiçoa a ninguém, antes, pelo contrário. Confundem a fé de Paulo com o fervor às "obras da lei", por ele condenado. Fala-se também de salvação mas não se sabe o que é perdição. Só no olhar do novo mundo perscruta-se o que o velho mundo (consciencial) é.
Paulo escrevia para público iniciado, que conheciam as fórmulas empregadas nas suas cartas e sabiam para o que se destinavam, embora ele mesmo revelasse quão difícil era para muitos penetrarem no sentido interno. Muitos não suportando alimento sólido, mas ainda assim assistidos por outros adultos, os espirituais, como em Gálatas. Como ele mesmo classificou os destinatários da Torá - aqueles atingidos pelo fim dos tempos, suas cartas também exigem o mesmo público.
Já disse muitas parolices. Achava interessante dar a Paulo um olhar diferente, ainda que eu mesmo seja neófito, necessitado do "novo mundo".
Obrigado pela paciência de me permitir extravasar umas sandices, Osvaldo. Na próxima, discutiremos outras coisas. Se isso for possível para mim, isto é, se estiver à altura. Quero adestrar o científico em mim. Preciso! Não voltarei mais a esse tema, me terão alguns por louco.
Atentamente,
Flávio.
Sim, Paulo é "místico" - e nisso não haveria nenhum probema. O problema de Paulo é polítco - ele acha que a mística dele, por ser a visão beatífica e ortodoxa de Deus e da vedade, tem de ser a mística de todo mundo. Até o Jesus correto é o dele, o dos outros, não.
Você dirá que esse é o caso de todo místio que contemple a visão beatífica da verdade. Então: abaixo todos esses tipo de místicos. Bons para aquela época? Tenho minhas dúvidas. Para a Idade Média? Ah, sob medida. Para hoje? Não para mim.
A mística que me parece saudável, hoje, é aquela da mística e do mito pessoais. Mística e mito, sempre pessoais, transforados em cosmovisão coletiva é heterodoxia. Há quem goste: eu sinto urticária.
Julgo Paulo pelos critérios atuais? Claro. E por qe não haveria de fazê-lo? Não o condeno, mas condenarei sua prática se ela pretender aproximar-se de mim - quero distância dela.
Meu modo de pensar hoje é seriamente epistemológico. Desde aí, posiciono-me. O restante é ir tateando no escuro.
Fique à vontade e sinta-se bem-vindo para os debates civilizados, como até aqui.
Osvaldo.
Osvaldo,
não sei se vc assistiu o filme Matrix, o primeiro da trilogia. Esqueçamos os demais e façamos de conta que só há o primeiro.
Pois bem, naquele filme nós assistimos o resgate do personagem Neo feito por Morpheus e equipe. Neo descobre que aquilo que ele imaginou como vida real na verdade era uma simulação virtual. Diante dessa constatação, há um choque tão grande que gera ânsia de vômito em Neo.
Pois bem, mudando o cenário desolador em que Neo acorda, no processo metanóico ocorre essa ruptura extraordinária de consciência. O ego é o condicionador da nossa mente que se crê autônomo, que age por livre vontade. A ruptura permite constatar que isso era uma ilusão. Ele começa a perceber que ele identificava o "eu" confundido com as várias capas socialmente definidas: "sou brasileiro", "sou cristão", "sou isso", "sou aquilo".
Diante da perspectiva do contraste, ele começa a perceber que o processo de inconsciência que ele vivia - "Matrix" - permeia todas as outras consciências individuais.
Não falo de religião. Existe procedimentos internos de consciência disciplinados que permitem a emergência desse processo metanóico.
Um ateu que faça as coisas com desprendimento, vigiando a consciência, não tendo segundas intenções, agradecendo internamente a todas as coisas, buscando coerência interior, cortando na carne o desejo de ter sempre razão, sem rebaixamento, desejando o bem e tratando igualmente a todos, perdoando aos outros, num processo que não se consegue de uma vez, mas paulatinamente, estará perdido: experimentará naturalmente essa ruptura metanóica.
Ninguém que experimente essa passagem do primeiro descobrimento, existem mais fases subsequentes de transformação, dirá de alguma forma que se pudesse, retornaria ao antigo estado.
O amor que está estampado no cap. 13 de 1Coríntios, pois bem, é o processo natural decorrente dessa transformação. A consciência, cada vez mais livre do condicionamento egóico, permite liberdade e escolha mais conscientes. Em vez de se ver como um alguém separado dos outros, a pessoa experimenta um impulso natural de engajamento pelo bem comum.
As capas sociais não exercem mais autoridade como anteriormente. A distinção entre o bem e mal e aposição dessa etiqueta em outros grupamentos ideológicos é também abandonada. A idéia de um Deus exterior é extinta. Decorre, claro, novas perspectivas de trabalho do intelecto e interpretação, já que se abre uma dimensão nova de consciência.
Bom, falei tudo num impulso, mas claro que o misticismo compreende fases e expansões muito mais complexas, mas que sendo um desenvolvimento sadio, a sociedade só tem a ganhar.
Osvaldo, achei interessante a sua leitura do que seja místico. É bom ter outras perspectivas em vista.
Um grande abraço,
Flávio.
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