quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

(2009/022) Crônica do capital de aço e escárnio


1. A plataforma é longa. Do cimento, nascem estalagmites de carbono móvel. Pela aparência, aposta-se, é o natural, que algumas ostentam, ocultas, vaginas. Outras, pênis. São sexuados os estalagmites. E esperam. Absortas, olham, todas, para o mesmo ponto - uma espera com minuto marcado, ali, adiante, na curva à frente.

2. E ela vem. É uma serpente. Vem chiando. Vem-se rindo. É escárnio, eu sei. Ela sabe que eu sei. E vem rindo. Escárnio ao quadrado, então.

3. Ela pára. Os estalagmites, como certas raríssimas árvores, movem-se, quer dizem, andam. Pontos determinados na lateral do dragão são atratores, e, como fragmentos anímicos de metal, os postes inertes concentram-se ali, qual que atraídos por um íma. Eis um termo, um neologismo: zumbiaticamente. Parecem vivos, mas estão, mesmo, mortos. E eu, entre eles.

4. Coisa estranha, um chiado se faz ouvir, como aquele com que as fábricas avisam o entra! e o sai! de todos os dias. Tudo mecanicamente. E, então, depois de instantes de excitação, concentração, preparo, tensão, abrem-se buracos no corpo da serpe, que, contudo, nem precisa engolir a gente, porque estamos, ali, desesperados para a carnificina... Alea jacta est!

5. A cena é abjeta. Cada um corre, em desespero. Empurram-se, atropelam-se, acotovelam-se - se necessário, esmurram-se. É um estouro de boiada - literalmente, se, com Zé Ramalho, falamos dessa vida de gado, desse Admirável Gado Novo.

6. O atropelo é para disputar, como crocodilos aos peixes lançados às goelas pelos tratadores escravagistas (amanhã te comemos as carnes, croco, e te pisamos o couro nas ruas da moda...), assentos desejáveis. Todo o pensamento - suspenso. Toda a reflexão - suspensa. Toda a crítica - suspensa. Corre! Já o disse - cena abjeta. Resta a quem chega primeiro, lei da selva, não, Darwin?, o sorriso da vitória, o canto da boca, o esgar, o "he! he! he!" que compensará toda a desgraça da vida de um salário-mínimo que não manteria um africano nas canas (também a alforria foi calculada). Para os derrotados, os "em pé", o destino DNÁdico dos macacos que, não sendo o macho dominante do bando, não terão vaginas em que ejacular, e se afastam das fêmeas, com aquelas caras parvas do sem sentido singular da Natureza (por isso dói ser gente, porque, sendo gente, não passamos, também aí, de parte dela - e saber, ah, saber dói). Mas o macaco, não, ele volta amanhã - as vaginas o chamam, excitam-lhes com cheiros de hormônios: a Natureza quer os pênis mais fortes, mais duros, mas potentes! Também, nós, que perdemos, voltaremos amanhã, quem sabe?, dois minutos mais cedo, quem sabe?, para pegar aquela posição estratégica, calculada na véspera, pela observação das tentativas frustradas, ali, no rigoroso lugar onde a porta abre e, diante do vazio, você é o primeiro a correr em desabalada carreira e a largar a bunda, o corpo, a alma, a dignidade naquele assento que, agora, ad hoc, é o símbolo da miséria humana. Uma viagem de menos cansaço à custa do auto-estupro da dignidade pessoal. Ao preço de R$ 2,60, num cartão de plástico.

7. Entrementes, numa sala onde o único ruído é o ronronar suave de um extraordinariamente silencioso e potente ar-condicionado, gestores calculam, pesam, medem, fazem conta, cercados de calculadoras, contadores e assessores. Calculam custos, lucros e "time". Sua missão é muito simples, a despeito de toda a pompa dos títulos de MBA que detêm - como tirar de nós, o máximo, dando o mínimo - não dando nada é o ideal. A melhor solução é aquela que alguém insuspeito já denunciara:

7.1 "Essas são as desvantagens de um espírito comercial. As mentes dos homens ficam limitadas, tornam-se incapazes de se elevar. A educação é desprezada, ou no mínimo negligenciada, e o espírito heróico é quase totalmente extinto. Corrigir esses defeitos deveria ser assunto digno de uma séria atenção".

8. Foi Adam Smith quem o disse. Sim, o velho "pai" do capitalismo moderno - o pai conhece seus filhos! Mas alto lá, certo é que nossa educação, quanto a nós, o/do povo, já há muito perdeu-se completamente. Isso é certo. Hoje, ainda, subindo a General Izidro, de manhã, para o trabalho, paro para tomar um caldo de cana e, então, ouço uma insistente buzina. Olho. É uma moradora do edifício ao lado, tentando sair, e tem um táxi parado, vazio, em frente ao seu portão. Condoí-me com a cena. O senhor é dono daquele táxi? Não. Saio, entro na padaria. O senhor é dono daquele táxi? Não. E o senhor? Ah? Sim, é seu aquele... Ih, prendi alguém? Tijuca - classe média "alta". Mas, quanto à educação... Mas, cá entre nós, para que é necessária a educação humanista num mundo onde você deve tirar dos outros tudo quanto pode, porque seu lucro é a carne de seu vizinho? É "produtiva" uma educação que faça de você "gente"? A educação do povo consta da planilha dos donos do capital - ou, antes, eles contam, exatamente, com nossa deseducação humanista, conquanto sejamos, como Adam Smith disse também, exímios fabricantes fordistas (mas antes de Ford!) de "uma dentre dezessete partes de um alfinete ou uma dentre oitenta partes de um botão, de tão dividida que está a fabricação de tais produtos"?

9. Meu rancor, ali, de pé, sentindo-me como um não-homem, espremido por todos os lados, observando, a centímetros de minha cara, as gotas de suor nesse senhor aqui ao lado, ela nasce, cresce e salta face abaixo, aquele ali chega a produzir bolhas, nunca vi suor desse tipo, aquele outro, que esse mais aqui interrompe minha visada, é um suor hologramático, onipresente, a cara dele é só suor, bem, meu rancor não é necessariamente contra esse simulacro de pessoas, essa gente que aqui, tornou-se não-gente. Meu ódio, sim, ódio, uma ira prostática que me nasce nos intestinos e me toma, transforma-se em indignação, é contra os donos do capital, dessa empresa, do capital de modo geral, e isso não porque eles sejam perversos, e o são, mas que se danem, mas pelo fato de transformarem cada um de nós em vermes de sua podridão incurável, porque fazem de cada um de nós menos do que bicho, porque um porco não tem dignidade, mas um homem que se fez porco por conta de um sistema que o transforma em porco, e, ele, pobre alma desgraçada, faz-se porco, é a vida, esse, coitado, que dignidade lhe sobra?

10. Malditos dono do capital - que tormentos não deveriam sofrer, em sendo verdade uma suposta lei da justa retribuição dos crimes ontológicos? Quantas pessoas, por composição, não suspendem sua humanidade, ali, para disputarem, como selvagens, um lugar sentado? Qual o nome desse crime? Não é de, no mínimo, lesa-humanidade?

11. Amanhã, viajarei, de novo, de pé. Não hei de correr. Não hei de entregar-me à disputa de bicho. Sobrou-me dignidade, ainda. Mas, eu e minha dignidade, lá na planilha dos donos do capital, contamos como um número, e é necessário que, consciente ou não, mais uns mil de mim viagem em pé para que uma conta no paraíso fiscal ainda não descoberto pela Sathiagrara engorde.

12. E, então, eu leio o cartaz, a cínica marca desse capitalismo diabólico: "ampliamos o espaço interno dos vagões para seu conforto" - o que, segundo as leis da Hermenêutica, de que a besta aqui é professor, significa: "tiramos bancos, porque, assim, cabem mais imbecis de pé, e mais dinheiro na Suíça".


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS1. o leitor certamente há de contar com o fato de que não me conto entre os donos do capital. Contar-me-ia e, eventualmente, estaria, agora, fazendo contas de quantos quilos de carne eu conseguiria transportar, maximizando lucros e dividendos de acionistas, por meio do cálculo algorítmico de quantos assentos a mais eu poderia tirar sem criar um quebra-quebra... Não duvidemos da capacidade de o homem "adaptar-se". Nem da minha.

PS2. Para a obra citada de Adam Smith, cf. Adam Smith, Lectures on Justice, Police, Renevue and Arms, em Herbert W. Schneider (org), A. Smith's Moral and Political Philosophy, New York: Hafner, 1948, p. 318-9.

PS3. Manda ver, Zé:

Vocês que fazem parte dessa massa
Que passa nos projetos do futuro
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais do que receber...
E ter que demonstrar sua coragem
À margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem
Já sente a ferrugem lhe comer...

Êeeeeh! Oh! Oh!
Vida de gado
Povo marcado
Êh!
Povo feliz!...

Lá fora faz um tempo confortável
A vigilância cuida do normal
Os automóveis ouvem a notícia
Os homens a publicam no jornal...
E correm através da madrugada
A única velhice que chegou
Demoram-se na beira da estrada
E passam a contar o que sobrou...

Êeeeeh! Oh! Oh!
Vida de gado
Povo marcado
Êh!
Povo feliz!...

O povo foge da ignorância
Apesar de viver tão perto dela
E sonham com melhores tempos idos
Contemplam essa vida numa cela...
Esperam nova possibilidade
De verem esse mundo se acabar
A Arca de Noé, o dirigível
Não voam nem se pode flutuar
Não voam nem se pode flutuar
Não voam nem se pode flutuar...

Êeeeeh! Oh! Oh!
Vida de gado
Povo marcado
Êh!
Povo feliz!...

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