1. Trata-se de um tema que a ele me dirijo por meio do conjunto de conhecimentos e métodos chamado Teologia Bíblica do Antigo Testamento (TBAT). Lecionando, gosto de introduzir os alunos às questões epistemológicas de fundo, aquelas que realmente importam, porque as questões menores, de partido, um é Vasco, outro, Flamento, não nos ajudam a dar dois passos para frente. Todavia, eu sei, nem sempre todos os alunos conseguem acompanhar o ritmo da caminhada. É a vida...
2. A questão que me parece de entrada da TBAT é essa: qual a sua materialidade objetiva? Quando eu vou fazer TBAT, o que é que eu tenho que ter na mão?
3. A resposta tradicional, mais conservadora, que gosta de aparentar "modernidade", é capitaneada por B. S. Childs - "canonical approach". Penso dessa defesa da abordagem canônica o seguinte: é um modo pseudo-educado e cripto-teológico de mandar a gente ler a Bíblia de acordo com as máximas institucionais-tradicionais. O resto é perfumaria.
4. Pois bem, pensemos a proposta. Um protestante, e com o termo não quero designar o segundo Lutero, mas o primeiro, não o da noite, aquele que se descobriu "pastor" ("papa menor") e findou por reproduzir em sua prática as mesmas práticas que dominara - era o que sabia fazer! -, aquele que tornou-se, a seu modo, também um "(pequeno") papa, mas daquele que defendeu valores aristotélicos, críticos, autônomos, como livre-exame das Escrituras, sacerdócio universal do crente, valores contra-platônicos, o que, na prática, equivale a dizer contra-agostinianos, e, sob certo aspecto, contra-cristãos. O primeiro Lutero, o de antes de ser expulso da Igreja Cristã, mas já aquele que a criticava ferozmente, influenciado pela Renascença, pelo Humanismo, pelos árabes - porque eles introduziram Aristóteles na Europa. Como um protestante desse meio-dia pode "ligar-se" ideologicamente a um cânon?
5. Um católico, sim. É perfeito. Porque cânôn é nada mais do que Instituição - e para que eu acate o cânon, primeiro devo acatar a Instituição. Mas a que instituição aquele primeiro Lutero, eu, protestante, estou ligado normativamente? Nicéia? Faz-me rir... Está bem, que seja: como posso, protestante, ligar-me a uma decisão de Nicéia, mas não a todas? Se tenho autoridade para negar uma e outra decisão daquele Concílio, porque me submeto a outra e mais outra? Não faz sentido epistemológico algum. Trata-se, apenas, de manter a roda girando conforme me mandaram girar, como aquele sujeito lá de Lost, que tem que digitar números, e dá-lhe digitar números...
6. Lutero abriu a caixa diabólica da desarticulação da Norma Institucional - o primeiro, porque o segundo voltou a estabelecê-la, mas, a esse, não me filio. Assim, não encontro argumento que me convença de que eu "deva", "tenha que", "seja obrigado a" submeter-me a um cânon que seja, e sempre é, norma e regra hermenêutica, porque cânon nunca é, apenas, um conjunto de livros, mas um conjunto de livros que são aquilo que a decisão conciliar faz deles e dele, sendo que são cânon porque são aquilo que se fez serem. Não me justifico não apenas quando o acato, como protestante, ao mesmo tempo em que não reconheço autoridade nenhuma na instância que o promulgou, muito menos, ainda, aí já se trata de uma absoluta perda de critério, quando o acato, mas leio-o do jeito que eu quero...
7. Não encontro, nem nos momentos de boa vontade, argumento que me convença que faz sentido unir, uma mesma teoria, cânon e protestantismo. Não é à toa que Lutero, na prática, inventou o seu próprio... que, contudo, legou normativamente aos demais.
8. Além disso, de que cânon estamos falando? A que instância normativa vou recorrer para balançar a cabeça como uma vaquinha de presépio, ou um desses cãezinhos de carro, que, postos no painel, vão, por todo o trajeto, balançando a cabeça canina?
9. Vou a Alexandria e pergunto aos judeus de lá, aqueles que, em séculos, três antes de Jesus, traduziram, re-interpretaram e formataram uma Septuaginta (LXX)? Ou vou aos judeus do suposto Concílio de Jâmnia? Ora, mas são judeus, todos, cristãos, nunca... Pega bem um protestante consultar-se em terra estranha...? Vou, então, à Nicéia? E o quê?, pergunto ao imperador? Bem, parece até óbvio, vou ao fundador do protestantismo, Lutero, e tomo dele seu cânon solipsista? Vejo-me perdido... Nao vejo chão, base, fundamento - apenas uma força tradicional que nos empurra, e, nós, lá vamos deixando-nos empurrar, como que por Deus.
10. Minha saída? Em termos pragmáticos, ficar com o cânon que me puseram na mão e não "esquentar a mufa" com isso. No fundo, há em mim, já, uma mística que lida com esses livros, e não com outros, de forma "revererente". Pura tradição, que a Psicologia da Religião explica bem explicadinho, e, no que me diz respeito, está resolvido (pena que não me ensinaram isso na catequese, mas tive que esperar anos para aprender isso no Seminário, onde, de fato, nasci como pessoa). Há, confesso, sem constrangimento, um sentimento místico que perpassa meus olhos, meus dedos, meu coração, quando tomo esses livros, e não outros, nas mãos. Mas, independentemente disso, a marreta bate forte, pesada, dura, duríssima, sobre cada pedra que o constitui. Não, a minha mística não tem escrúpulos de reverência sacerdotal, de pruridos de "ai, Deus vai castigar", "ai, que isso é falta de respeito". Não. Pelo contrário. É como se uma força me obrigasse a bater, com força, como aquela voz que, pelo corpo partido da mulher do padre, a este diz a enigmática frase, que no final se revela: "diz que é para bater com toda a força...". Ah, e eu bato, bato com força, com toda a força...
11. Isso faz com que, intelectualmente, politicamente, o cânon, para mim, se desintegre. Não significa, mais, para mim, nada de teológico, nada de político, nada de normativo. Nem existe, para mim, enquanto conceito. E penso que isso se deva a uma patologia minha, grave, aguda, crônica, a que descobri por nome "protestante". No entanto, enquanto biblioteca, seleção, tradição que me chega às mãos, é com esse conjunto, a Bíblia Hebraica e a coleção cristã de Nicéia (não leio mais, não posso, a Bíblia Hebraica como livro cristão, posto que historicamnete, não é, conquanto possa ler o Novo Testamento como biblioteca de cristãos, cada cabeça, uma teologia), que lido. Com prazer.
12. Prazer? Sim, muito. Um prazer pessoal em destruir uma crosta política de tradições nada ingênuas e inocentes, mas politicamente programáticas, armadas, como arco, para controlar a minha vida, a minha cabeça, a minha alma, isto é, meu corpo-eu, porque é isso que sacerdotes sabem fazer - e bem -, e que um iconoclasta combate por força de consciência. A solidão do exegeta faz-se acompanhar de pedaços do passado, lavrados em papiro. Chamam a esse conjunto de pedaços Antigo Testamento. Uns querem-no como bloco, uno. Eu, não mais. Quero-o como Lutero quis a Igreja - fragmento. Se com os homens pode, quanto mais com papel e tinta...
ALDO LUIZ RIBEIRO
2. A questão que me parece de entrada da TBAT é essa: qual a sua materialidade objetiva? Quando eu vou fazer TBAT, o que é que eu tenho que ter na mão?
3. A resposta tradicional, mais conservadora, que gosta de aparentar "modernidade", é capitaneada por B. S. Childs - "canonical approach". Penso dessa defesa da abordagem canônica o seguinte: é um modo pseudo-educado e cripto-teológico de mandar a gente ler a Bíblia de acordo com as máximas institucionais-tradicionais. O resto é perfumaria.
4. Pois bem, pensemos a proposta. Um protestante, e com o termo não quero designar o segundo Lutero, mas o primeiro, não o da noite, aquele que se descobriu "pastor" ("papa menor") e findou por reproduzir em sua prática as mesmas práticas que dominara - era o que sabia fazer! -, aquele que tornou-se, a seu modo, também um "(pequeno") papa, mas daquele que defendeu valores aristotélicos, críticos, autônomos, como livre-exame das Escrituras, sacerdócio universal do crente, valores contra-platônicos, o que, na prática, equivale a dizer contra-agostinianos, e, sob certo aspecto, contra-cristãos. O primeiro Lutero, o de antes de ser expulso da Igreja Cristã, mas já aquele que a criticava ferozmente, influenciado pela Renascença, pelo Humanismo, pelos árabes - porque eles introduziram Aristóteles na Europa. Como um protestante desse meio-dia pode "ligar-se" ideologicamente a um cânon?
5. Um católico, sim. É perfeito. Porque cânôn é nada mais do que Instituição - e para que eu acate o cânon, primeiro devo acatar a Instituição. Mas a que instituição aquele primeiro Lutero, eu, protestante, estou ligado normativamente? Nicéia? Faz-me rir... Está bem, que seja: como posso, protestante, ligar-me a uma decisão de Nicéia, mas não a todas? Se tenho autoridade para negar uma e outra decisão daquele Concílio, porque me submeto a outra e mais outra? Não faz sentido epistemológico algum. Trata-se, apenas, de manter a roda girando conforme me mandaram girar, como aquele sujeito lá de Lost, que tem que digitar números, e dá-lhe digitar números...
6. Lutero abriu a caixa diabólica da desarticulação da Norma Institucional - o primeiro, porque o segundo voltou a estabelecê-la, mas, a esse, não me filio. Assim, não encontro argumento que me convença de que eu "deva", "tenha que", "seja obrigado a" submeter-me a um cânon que seja, e sempre é, norma e regra hermenêutica, porque cânon nunca é, apenas, um conjunto de livros, mas um conjunto de livros que são aquilo que a decisão conciliar faz deles e dele, sendo que são cânon porque são aquilo que se fez serem. Não me justifico não apenas quando o acato, como protestante, ao mesmo tempo em que não reconheço autoridade nenhuma na instância que o promulgou, muito menos, ainda, aí já se trata de uma absoluta perda de critério, quando o acato, mas leio-o do jeito que eu quero...
7. Não encontro, nem nos momentos de boa vontade, argumento que me convença que faz sentido unir, uma mesma teoria, cânon e protestantismo. Não é à toa que Lutero, na prática, inventou o seu próprio... que, contudo, legou normativamente aos demais.
8. Além disso, de que cânon estamos falando? A que instância normativa vou recorrer para balançar a cabeça como uma vaquinha de presépio, ou um desses cãezinhos de carro, que, postos no painel, vão, por todo o trajeto, balançando a cabeça canina?
9. Vou a Alexandria e pergunto aos judeus de lá, aqueles que, em séculos, três antes de Jesus, traduziram, re-interpretaram e formataram uma Septuaginta (LXX)? Ou vou aos judeus do suposto Concílio de Jâmnia? Ora, mas são judeus, todos, cristãos, nunca... Pega bem um protestante consultar-se em terra estranha...? Vou, então, à Nicéia? E o quê?, pergunto ao imperador? Bem, parece até óbvio, vou ao fundador do protestantismo, Lutero, e tomo dele seu cânon solipsista? Vejo-me perdido... Nao vejo chão, base, fundamento - apenas uma força tradicional que nos empurra, e, nós, lá vamos deixando-nos empurrar, como que por Deus.
10. Minha saída? Em termos pragmáticos, ficar com o cânon que me puseram na mão e não "esquentar a mufa" com isso. No fundo, há em mim, já, uma mística que lida com esses livros, e não com outros, de forma "revererente". Pura tradição, que a Psicologia da Religião explica bem explicadinho, e, no que me diz respeito, está resolvido (pena que não me ensinaram isso na catequese, mas tive que esperar anos para aprender isso no Seminário, onde, de fato, nasci como pessoa). Há, confesso, sem constrangimento, um sentimento místico que perpassa meus olhos, meus dedos, meu coração, quando tomo esses livros, e não outros, nas mãos. Mas, independentemente disso, a marreta bate forte, pesada, dura, duríssima, sobre cada pedra que o constitui. Não, a minha mística não tem escrúpulos de reverência sacerdotal, de pruridos de "ai, Deus vai castigar", "ai, que isso é falta de respeito". Não. Pelo contrário. É como se uma força me obrigasse a bater, com força, como aquela voz que, pelo corpo partido da mulher do padre, a este diz a enigmática frase, que no final se revela: "diz que é para bater com toda a força...". Ah, e eu bato, bato com força, com toda a força...
11. Isso faz com que, intelectualmente, politicamente, o cânon, para mim, se desintegre. Não significa, mais, para mim, nada de teológico, nada de político, nada de normativo. Nem existe, para mim, enquanto conceito. E penso que isso se deva a uma patologia minha, grave, aguda, crônica, a que descobri por nome "protestante". No entanto, enquanto biblioteca, seleção, tradição que me chega às mãos, é com esse conjunto, a Bíblia Hebraica e a coleção cristã de Nicéia (não leio mais, não posso, a Bíblia Hebraica como livro cristão, posto que historicamnete, não é, conquanto possa ler o Novo Testamento como biblioteca de cristãos, cada cabeça, uma teologia), que lido. Com prazer.
12. Prazer? Sim, muito. Um prazer pessoal em destruir uma crosta política de tradições nada ingênuas e inocentes, mas politicamente programáticas, armadas, como arco, para controlar a minha vida, a minha cabeça, a minha alma, isto é, meu corpo-eu, porque é isso que sacerdotes sabem fazer - e bem -, e que um iconoclasta combate por força de consciência. A solidão do exegeta faz-se acompanhar de pedaços do passado, lavrados em papiro. Chamam a esse conjunto de pedaços Antigo Testamento. Uns querem-no como bloco, uno. Eu, não mais. Quero-o como Lutero quis a Igreja - fragmento. Se com os homens pode, quanto mais com papel e tinta...
ALDO LUIZ RIBEIRO
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