sábado, 28 de março de 2020

(2020/041) Ler é igual a ouvir - você sabe ouvir?

Leia esse diálogo:


_ Pai, posso pegar a bicicleta?
_ Filho, já falei que sou eu que vou à padaria.


Qual é a relação entre as duas partes do diálogo? O que tem a ver o filho pedir para pegar a bicicleta e o pai falar a ele que é ele, o pai, que vai à padaria?

Entender a relação entre essas duas partes do diálogo é uma questão de saber que ler é uma questão de saber ouvir. Se você ler em voz alta e tentar pronunciar o tom de voz que o diálogo sugere, fica bem mais fácil entender.

A primeira parte é um pedido. Leia em voz alta como se você mesmo fizesse o pedido. Já a segunda parte é a resposta obviamente negativa ao pedido, de sorte que, ao ler também em voz alta, procure emular o tom.

Se fez o exercício, conseguiu entender a relação? A resposta não se dá no mesmo nível do pedido. Se a resposta fosse no nível do pedido, o pai teria dito:

- Filho, você não pode pegar a bicicleta.

Mas o que ele disse foi que ele, o pai, é quem iria à padaria, como se o filho tivesse pedido isso. Veja:

- Pai, posso ir à padaria?
_ Filho, já lhe disse que eu é que vou à padaria.

Será se o pai entendeu errado o filho? Não. O que ocorre é que no diálogo, o filho apenas faz um pedido, mas sem dizer para que ele queria o que estava pedindo. Por sua vez, o pai percebe a verdadeira intenção do pedido, e responde não ao pedido aparente, mas à intenção do pedido. Veja:

 _ Pai, posso pegar a bicicleta, (para eu ir à padaria)?
_ Filho, (você não pode pegar a bicicleta para ir à padaria, porque) já falei que sou eu que vou à padaria.

Na resposta, está implícito que o pai não autorizou o filho a pegar a bicicleta, mas ele passou sua resposta para outro nível: o nível da razão do pedido, da intenção do pedido. Uma vez que o pai disse que quem vai na padaria é o próprio pai, e não o filho, então está implícito que o que realmente o filho queria era ir à padaria. Mas então porque ele pediu a bicicleta? Ora, porque ele queria a bicicleta para ir à padaria.

Esse tipo di diálogo ocorre muitas vezes no nosso dia a dia. É preciso ler textos tendo sempre isso em mente.

Agora, interprete esse trecho de Êxodo 33,18b-19a:

- Mostra-me por favor a tua glória.
- Eu é que farei passar a minha bondade diante de ti.

Se conseguiu interpretar bem a frase anterior, conseguirá interpretar essa.  Se desejar, diga-me o que entendeu nos comentários que eu respondo.








OSVALDO LUIZ RIBEIRO

8 comentários:

Debbie Seravat disse...

Na tentativa de que você esclareça é que me aventuro.
A súplica de Moisés vista sob a resposta divina, analogicamente à frase anterior proposta, quer significar, na verdade, que o desejo mosaico não é necessariamente a manifestação da glória de Deus, seja isso o que for, todavia, ser aquele a quem se imputará todas as ações. É como se Deus estivesse a dizer: Toda e qualquer ação humana é fruto de minha atuação, e não preciso ser glorificado naquilo que julgas me engrandecer.
"Eu é que farei..." Pressupõe-se que a intenção mosaica era subornar a Deus. "... passar a minha bondade diante de ti." Tu, Moisés, a despeito do que faças, nunca tornar-te-ás bom.
O raciocínio que a isso me leva é o de que a toda glória antecede um feito julgado bom.
Estaria Deus reafirmando de que nada bom procede do homem?
Estaria Moisés dizendo: Os feitos, eu os realizo, a Ti cabe reconhecê-los?
Ainda que me fazendo redundante, continuo a viagem...
Deus não atende à real intenção de Moisés que era a de poder ser ele próprio o autor de suas ações, contudo, desvia o curso do aparente pedido, e se revela enquanto Causa de todas as coisas.

Peroratio disse...

Debbie, você fala de Moisés porque em sua Bíblia aprece o nome de Moisés no v. 18? Se sim, você acaba de ser enganada pelo tradutor de sua Bíblia. O nome "Moisés" não aprece em nenhum lugar entre os v. 18 e 23. O tradutor de sua Bíblia interpreta que, apesar de o nome não aparecer, é de Moisés que se fala aí e, então, por sua própria conjunta, escreve o nome que não aparece. Ou seja, esse texto não tem nenhuma relação com Moisés, e só foi alocado aí pela proximidade temática com os v.1-17.

Quanto ao exercício, veja. Bicicleta está para padaria assim como glória está para passar a bondade. O filho quer a bicicleta para ir à padaria, e o sujeito anônimo do v. 8 quer a glória para passara bondade de Yahweh. Ou seja, ele quer ver a glória para poder dier às pessoas que é ele quem dispensa as bondades de Yahweh.

O autor do texto nega essa prerrogativa, e considera que ninguém pode dispensar as bondades de Yahweh, senão o próprio Yahweh. É uma polêmica e crítica contra o serviço sacerdotal.

Unknown disse...

Percebe-se claramente uma crítica à elite dominante da época, traduzida nos representantes do sacerdócio monárquico político.

Bem mais tarde, teve um personagem que narrou uma visitinha ao "terceiro céu", e lá bateu um papo com a divindade (conf. 2 Cor 12:1-6).

Ontem, hoje e sempre... mecanismos de manobra voltados para privilégios particulares.

Debbie Seravat disse...

Foi realmente mais para ouvir a sua resposta que, como disse, aventurar-me-ia. Sou bastante consciente do quanto estou impregnada de "pré-conceitos" e o quanto tenho a visão turva ainda pelos condicionamentos religiosos.
Que tradução da bíblia me indicaria? Nunca tive antes tal entendimento!
Relendo o texto, agora, a partir de sua interpretação, percebo a lógica bastante coerente que subjaz ao ofício sacerdotal: "quer a glória para passar a bondade de Deus (...) "para poder dizer às pessoas que é ele quem dispensa as bondades de Yahweh".
Verdadeiramente é isto um bem a minha alma!
Nunca estudei teologia bíblica, só sistemática e dispensasionalista.
Dói arrancar os olhos do corpo e permitir que eles tenham vida própria...
Gratidão!

Carlos Alves disse...

Em português...A Bíblia de Jerusalém...mais ou menos...mas que bom que você despertou do "malabarismo"..

Unknown disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Peroratio disse...

Desconhecido, depois de ler, sem querer delatei seu comentário. Por favor, queira postá-lo novamente.

Unknown disse...

Oi, Osvaldo!

Já faz muito tempo!

Bom, vamos lá!

Não li as postagens anteriores inteiras, mas o início da primeira e sua resposta a ela, então não vou dizer que Moisés disse nada.

A pessoa que conta a estória quer retratar um terceiro que, inicialmente, quer que se pense que ele, o terceiro, pode invocar a glória de Deus, e que, fazendo assim, Deus a manifesta a ele.

Esse terceiro quer que as demais pessoas o vejam como alguém que acessa Deus e que, de alguma forma, demonstra certo poder sobre Deus, já que ele pede (ou mesmo manda), e Deus faz.

O narrador, no entanto, ao contar a resposta de Deus ao terceiro, desmonta a intenção deste, desmascara-o, já que Deus, em vez de lhe dizer - ok, aqui está a minha glória! -, diz que não.

A resposta de Deus lida na intenção do narrador é - eu não vou fazer o que você quer, pra você sair por aí dizendo a todo mundo que eu lhe mostro a minha glória quando você pede, e, com isso, se sobrepondo aos outros, antes, eu, por minha própria vontade, vou lhe mostrar uma outra coisa, a minha bondade.

O narrador ainda dá essa última dica - se Deus tem algo pra revelar ao homem e que o faça realmente ser Deus, digno desse nome, é a sua bondade, e não a sua glória que, ao fim e ao cabo, esmaga o homem.

Penso que seja por aí.

Um abraço!

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