sábado, 28 de março de 2020

(2020/042) Por que escravos se tornaram cristãos

Um dos livros mais poderosos que li foi Em torno a Galileu, de Ortega y Gasset. Simplificando sua tese poderosa: a história recomeça a cada três gerações. Na época em que ele escreveu o seu poderoso livro, isso correspondia, em média, a 45 anos. A tese quer dizer que, a cada três gerações, a história se altera, podendo tomar rumos completamente diferentes do rumo que até então estava em curso.

Isso tem a ver com a influência de avós sobre os netos. Bisavós não têm tanta influência, porque são mais raros. O pacote cultural vai de pai para filho e de avô para neto, e, então, pode simplesmente desaparecer.

Acho que essa tese de Ortega y Gasset explica uma das coisas mais surpreendentes na história americana. Cristãos, miseráveis e desgraçados cristãos, roubaram pessoas negras da África e as escravizaram. Torturaram-nas, estupraram-nas, prenderam-nas, perseguiram-nas, violentaram-nas, feriram-nas, e, acima de tudo, quebraram suas raízes. Ao mesmo tempo em que se faziam os desgraçados que eram, hipócritas como sempre, enfiavam Jesus goela abaixo dos escravos - como odeio a evangelização do mundo!

Quando você olha para os negros estadunidenses e brasileiros hoje, quase todos são religiosos e, sobretudo, cristãos. Tratam o deus que lhes estuprou como se fosse um bom deus. Vão aos seus cultos. Dão dinheiro aos seus agentes. Repetem a evangelização que lhes arrancou a alma do corpo e lhes roeu o corpo negro.

Por quê? Porque não existe memória. Nada mais falso do que falar em memória. Isso não há. O que h[a é uma roda que gira no curso de três gerações. O sofrimento dos negros está fresco no escravo original, em seu filho e em seu neto. Mas o filho de seu neto já começa a viver outro mundo, e a roda gira. A evangelização hipócrita (e toda evangelização é hipócrita) dos cristãos entra na mente do bisneto com muito mais facilidade do que nos ouvidos das primeiras gerações. O verme de Jesus se enfia nas curvas do cérebro da criança preta de quarta geração, e de quinta, e de sexta. 10 gerações depois, o pequeno negro, ainda escravo, ama Jesus. 

Fico pensando nos primeiros negros e no que as gerações de hoje lhes prestam de homenagem. Ei, dizem as gerações de hoje, sabe aquele deus cujos agentes lhes arrancaram as carnes dos ossos? Pois então, agora nós somos os agentes deles, e, em nome dele, fazemos as mesmas coisas. Convencemos o mundo de que fazemos diferente, mas, no fundo, fazemos as mesmas coisas. No fundo, no fundo, o estado cultural da negritude evangelizada é o resultado preciso, e de longo prazo, da verdadeira escravidão. Seus pais tiveram seus corpos em correntes amarrados. Seus filhos têm as almas... 

Depois de três gerações, o carrasco dos pais se torna o salvador dos bisnetos.





OSVALDO LUI RIBEIRO

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