terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

(2009/024) Da família


1. Daquilo que constitui o modelo familiar que conheço de perto, o ocidental, "em tese", monogâmico, o que lhe toca de propriamente biológico é a procriação. A vida - por meio de seus impulsos hormonais e DNÁdicos - leva homens e mulheres, naturalmente, ao sexo procriativo - o prazer é a isca. Sim, sim, tornou-se o melhor da pescaria, sem dúvida... Mas o que a vida quer, mesmo, são os peixes.

2. Todavia, o que passa da procriação, quero crer, não atende mais aos ditames biológico-calvinistas da Natureza. Obviamente, há possibilidades abertas, limitadas, e, historicamente, o Ocidente caminhou por essa estrada que me traz à monogamia. Que não é, em termos culturais, a única forma possível. Na Natureza, podem-se testemunhar, entre os animais vertebrados, e mesmo entre os mamíferos e primatas, modelos poligâmicos, que alguns povos humanos, ainda hoje, adotam. Há, ainda, modelos segundo os quais "todo mundo é de todo mundo", como entre os golfinhos. Ouvi falar de rituais indígenas, no Centro-Oeste, desse tipo, em que todas as mulheres da tribo copulam com os homens. Para o que diz respeito à procriação, todos esses são modelos.

3. Que contudo, eu já não poderia adotar. Se, biologicamente falando, tais modelos são compreensíveis, penso que, em termos "humanos", a monogamia constitui o mais próximo da "igualdade" de gênero (ainda que, deva confessar, a cerimônia do "todo mundo é de todo mundo" constitui o outro extremo do mesmo espectro). Seja como for, eu jamais poderia relacionar-me com outra mulher que não Bel, e, confesso, jamais admitira "dividi-la" com quem quer que seja - e, se por acaso, algum filósofo e/ou teólogo comentar que isso é egoísmo, e não amor, que seja. Conquanto eu me constitua de milhões de milhões de mitocôndrias, e, assim sendo, emerja como ser biológico, movido, também, por DNA e hormônios, sou, contudo, mais do que isso, e esse eu que sou, dentre as possibilidades, escolheu ser o que deseja ser. Minha relação com Bel é, primeiro biológica, naturalmente, mas, para além disso, é invenção nossa, disposição cultural, jogo nosso, que escolhemos jogar. Até demos à vida o que ela desejava, mais, também aí, éramos nós, jogando...

4. Isso traz à tona uma distinção fundamental entre a relação monogâmica homem/mulher e a conseqüência propriamente procriativa dela - os filhos. Ainda que, seria o certo, sejam programados, ainda que sejam queridos e amados, ainda que sejam parte fundamental do "ser conjugal", são, desde o parto, mais do que isso, desde a concepção, criaturas de si mesmas, que deverão aos pais tão somente o nascimento, a criação, mas, eles, os pais, sabem (devem saber!), é o preço que pagam pelo prazer de realizarem a sua missão biológica. Os filhos, contudo, não são seus, nem são prêmios - como vieram, irão. São deles mesmos. Eventualmente, se deixarem, se "fracassarem" como projeto humano, da vida...

5. No entanto, o casal, não. O casal fica. Para sempre. Até que a morte os separe, e, ai!, esse dia há de ser de tormento inominável, de dor ultrajante. Melhor deixá-lo nas sombras. O certo é que homem e mulher se unem num jogo de múltiplas facetas - erotismo lúdico e libidinoso, cumplicidade, bom-humor, projeto de vida, sustento, diálogo, força, colo. A fase em que o casal se deixa fazer mãe e pai não pode, sob nenhuma circunstância, sobrepujar-se à dimensão conjugal primária. Antes de serem pai e mãe, são, e sempre o serão, marido e esposa, homem e mulher. Quando a casa se fizer silêncio, os cômodos, vazio, quando todos se forem - e que seja de modo o mais feliz possível -, eles, ela e eu, ficaremos sós. De novo. Como deve ser. Como, desde o princípio, foi, como é em todo o dia e noite, como o será até que a luz se apague...

6. Nesse momento, há que se ter de construído uma relação mais do que funcional. Se o casamento teve, na procriação, seu "fim" (objetivo), também aí encontrará seu "fim" ("morte"). A mulher, o que ela verá de agradável no seu homem? Nada - um mulambo imprestável, como pano de pia, surrado e esgarçado. Ela? Aos olhos dele, um fardo, como caixas de sucrilhos vazias. Talvez consigam ser amigos - e estará de bom tamanho! -, mas, aquilo que um dia constituiu paixão e desejo, ah, isso se terá ido com a mala do último filho.

7. Trágédia. Há, portanto, que se prevenir tal situação. O centro nervoso da relação não pode ser funcional. Jamais! Deve ser desnecessária, sempre, a relação. Não há que haver uma razão para ela - senão ela mesma, o prazer que ela é e proporciona. Há que se manter a sensação de ter algo vivo e quente nas entranhas a cada toque dela/dele. Há que se manter olhos de desejo, olhos que ela, ou ele, deve reconhecer, e encabular, porque vai que alguém percebe... Há que se esperar pela noite, intensamente, não porque é aí que os segredos do corpo se revelam, apenas aí, na noite, mas porque é aí que o mundo cala, e estão sós. No entanto, não se vá perder a oportunidade de dizer ao sol quem manda, se me entendem... Há que se cativar, programaticamente, a cumplicidade, a atenção, o diálogo, coisas todas constituídas de perguntas simples, que, contudo, disparam diálogos necessários que, eventualmente, hão de ser concluídos com beijos e etc. Há que se morar dentro do corpo do outro. Há que se fazer do corpo do outro um ímã.

8. Os filhos se vão, cedo ou tarde. Nós, ficamos. É a qualidade dessa permanência que traduzirá a profundidade da relação construída. É aí, nesse momento, que descobrimos - sem sursis -, se fruímos a vida, ou se, ao contrário, ela nos fez de máquinas suas, para a produção mecânica de pedaços de si mesma. Deus me livre, dentre todos os males, "perder" essa batalha contra a vida. Que ao fm dessa etapa, idos para si mesmos, Jordão e Israel, eu olhe nos olhos dessa mulher que me tem e, pela segunda e mais profunda vez, não reprima as palavras mágicas: em fim, sós...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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