sábado, 11 de abril de 2009

(2009/154) De Hans Küng e de uma "teologia científica"


1. Modo de dizer: eu "conheço" dois Hans Küngs - o de Teologia a Caminho e o de Por que ainda ser cristão hoje? O primeiro me agrada (mais). No que diz respeito a uma "teologia científica", e isso no momento em que, ciência, ela se deixa aplicar sobre as Escrituras (judaico-cristãs), Teologia a Caminho traça as linhas fundamentais do trato científico da tradição escriturística judaico-cristã - metodologia histórico-crítica (e seus desdobramentos) e pronto. Irrepreensível. Todavia, o Hans Küng de Por que ainda ser cristão hoje? afasta-se dessa abordagem científica, e dedica-se, engaja-se, na defesa de uma "atitude". O que é de direito, naturalmente, que minha defesa intransigente de uma "teologia científica" não deve ser interpretada como a restrição e a redução da vida humana à perspectiva científica. Contra o que me bato, e me baterei sempre, é uma teologia que se diz, sem o ser, científica, que dissimula sua condição epistemológica, e, por conseguinte, a forma como fala de si mesma, com argumentos tão rasteiros que causam constrangimento a quem domina um mínimo imprescindível das noções epistemológicas a respeito dos critérios de cientificidade. Não é necessário fazer-se cientista, mas aquilo que se faz cientificamente, deve-se fazer segundo as regras das ciências.

2. Para ilustrar uma indisposição minha contra o Hans Küng do Por que ainda ser cristão hoje?, indisposição que me parece plenamente justificada, seja-me permitido transcrever-lhe um trecho particularmente infeliz:

2.1 "Está claro que o nome de Pai atribuído a este Deus não é apenas um reflexo da experiência de paternidade, masculinidade, força e poder deste mundo. Não é nenhuma projeção que sirva somente para glorificar situações de pais e dominadores terrenos. Portanto, não como viu o antigo teólogo e mais tarde ateu, Feuerbach: um Deus do além às custas do aquém, às custas do homem e de sua verdadeira grandeza. Nem é um Deus, como o criticou Karl Marx, dos dominadores, das relações sociais injustas, da consciência deformada e da falsa compensação. Também não corresponde ao Deus rejeitado por Friedrich Nietzsche: um Deus fruto de ressentimentos, chefe supremo de uma moral do bem e do mal para miseráveis e marginalizados. Por fim também não é o Deus rejeitado por Freud e por muitos psicanalistas: um superego tirânico, falsa imagem de ilusórias necessidades infantis, um Deus de um ritual compulsivo oriundo de um comlexo de culpa (...).

2.2 Não, este Deus é um Deus diferente: um Deus que se coloca acima da justiça formalista, casuísta e impiedosa da lei e que manda proclamar uma justiça 'melhor', ou que chega mesmo a justificar os transgressores da lei. Um Deus para quem os mandamentos existem por causa do homem, e não o homem por causa dos mandamentos" (p. 40-41).

3. O leitor deve sabê-lo - Hans Küng está falando do "Deus anunciado por Jesus" (p. 39). É com esse "Deus anunciado por Jesus" que Hans Küng pretende interditar o "Deus" denunciado por Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud. Mais ainda: é por causa desse Deus, que Jesus anuncia, que Hans Küng ainda crê na possibilidade de ser cristão, e de isso fazer sentido.

4. Convenhamos, Hans Küng comete um equívoco retórico-epistemológco imperdoável. O "Deus" de Jesus não se encontra situado na mesma placa epistemológica que o "Deus" de Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud. Confrontar este com aquele é absolutamente improcedente e impertinente. O registro discursivo de Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud é não-metafísico. Eles não estão "olhando" para um Ser metafísico, ontológico, "divino", como se denunciassem a malvadeza de um ser "real", em oposição ao qual Hans Küng pudesse apelar para um outro Ser "real". Os românticos citados por Hans Küng dirigem-se à "representação" cristã, ao "personagem" do discurso cristão. Eles fazem crítica das idéias, não denúncia positiva de uma divindade eventualmente má. Em nenhuma hipótese clássica eles são "teólogos" - se bem que o seriam perfeita e pertinentemente bem na condição de uma "teologica (verdadeiramente) científica, porque, se não passar positivamente por eles, nernhuma teologia será científica. O método histórico-crítico, operado por uma atitude teológica clássica de fundo, é uma ironia.

5. Trata-se, aí, isto é, com Feuerbach e os demais críticos do discurso teológico, de uma interpretação fenomenológica e proto-científico-humanista do discurso cristão, da política cristã, da moral cristã, da psiquê cristã. Trata-se de dizer o que acontece, do que se trata, quando um cristão fala, age, julga ou sente sua "fé". Pensemos em Feuerbach, por exemplo: segundo os seus termos, o "Deus" que Jesus anuncia não passa de uma projeção de sua própria "teologia", em nada diferente, em termos de "processo", do Deus de Anás e Caifás, por exemplo, nem do de Herodes ou de César. O modo como Jesus pensa Deus, nos termos em que o concebe e denuncia Feuerbach - e espera-se ainda pela contestação! (pirraças de religiosos ofendidos não suspendem a validade epistemológica da afirmação de Feuerbach) - não é em absolutamente nada diferente do modo como, por exemplo, o próprio Hans Küng pensa. Se um é bom e o outro é mau, isso nada significa - em termos científico-humanistas, ambos são "hipóstases" antropológicas.

6. Assim, não faz nenhum sentido que Hans Küng confronte um Deus pensado como eventualmente boníssimo, gentilíssimo, pleno de misericórdia, com o "Deus" denunciado pelos autores que ele cita. Talvez Hans Küng pudesse contrastar esse Deus de Jesus com o Deus de Ratzinger, por exemplo, porque Jesus e Ratzinger encontram-se no mesmo topos epistemológico, ambos falam de uma entidade metafísica. Já Feuerbach e os demais denunciam que, seja esse Deus boníssimo, de Jesus, seja aquele crudelíssimo da Tradição inquisitorial da Igreja, seja o Deus católico, seja o Deus protestante, todos eles são, ao fim e ao cabo, "projeções" ideológicas da consciência humana. Eles fazem o que uma teologia científica deve fazer.

7. Se há diferença entre a bondade e a maldade?, entre a misericórdia e a legalidade?, entre o perdão e a condenação? Sim, há. Não há é diferença alguma entre o modo como se pensa um Deus de um tipo e o modo como se pensa um Deus do outro tipo. Uma atitude científica e crítica não pode cair na armadilha de confrontar diferentes modelos de Deus e, então, assumir e/ou propor um modelo bom, justo, libertário. Que diferença há entre, por exemplo, o catolicismo da Inquisição e o catolicismo da TdL? Apenas o plano ético. No plano epistemológico, nenhuma diferença - trata-se, em ambos casos, de projetos ético-políticos, legitimados por meio do mito de "Deus". Não penso que uma atitude científica condenaria o conflito político do confronto ideológico entre modelos de ética. Todavia, não me furtaria a denunciar, sob uma perspectiva científica, que ambos aqueles casos constituem exemplos de manipulação de consciência por meio do mito de "Deus", cada qual em face de seu respectivo programa ético, internamente legitimado, em face de cujo adversário, apenas, ele pareceria "imoral" (a Inquisição jamais se considerou imoral!).

8. Quando Hans Küng confronta o "Deus" de Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud com o "Deus" de Jesus, Hans Küng comete o equívoco de comparar grandezas epistemologicamente incomparáveis, porque situadas em plataformas pragmáticas diferentes. Este, é um Deus estético e político, uma verdade axiomática da fé, interposta a terceiros pela força persuasiva do carisma e da retórica mitológica. Aquele, a denúncia científico-humanista de uma rotina de projeção noológica de pulsões estético-políticas e sobredeterminação antropológica. Aqui, ciência, lá, política.

9. Uma política que se faça alijada de uma compreensão científica de sua própria ação, ainda que não se possa saltar, sem risco, da teoria para a prática, da ciência para a política, é, contudo, arbitrária. Hans Küng deveria confessar que se trata, também aí, também no caso do Deus de Jesus, exatamente do que o século XIX afirma quanto a todos os Deuses - invenção, imaginação, projeção humanas. Em vez disso, equivocadamente, transforma o Deus de Jesus numa espécie de exceção - a mesma exceção barthiana. É como se, à menção do Deus de Jesus, Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud fossem exorcizados, debandassem, atônitos, como diabos à visão da cruz, quando, a rigor, era o Deus de Jesus, conforme o concebe, ideologicamente, doutrinariamente, retoricamente, Hans Küng, que devia reconhecer-se na condição do que é - criatura humana.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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