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sábado, 24 de abril de 2010

(2010/343) Mergulho na auto-identidade


1. Deus do céu! Ler Losurdo está me fazendo mergulhar tão profundamente em minha identidade, como jamais pensei em fazê-lo - e olha que não posso recusar a constatação de que sou alguém que passa praticamente o dia inteiro atrás de si mesmo, em busca de seu núcleo pessoal. Mas Losurdo, meu Deus, ele está me pondo sobre a mesa, e me desenhando a cada citação do século XIX, de Feuerbach, de Marx, de Strauss, de Hegel, de Heine, e, também... de Nietzsche. Mas, nesse primeiro momento da juventude universitária do filósofo que me encantado tem todos esses anos, é surpreendente vê-lo do outro lado do rio...

2. Esse Nietzsche e eu somos quase antípodas! Esse Nietzsche universitário, contra-moderno, ferrenhamente contra-moderno, é-o tanto que produz arroubos de defesa da tradição cristã! Sim, ainda que programática a atitude, Nietzsche é um jovem filólogo-filósofo a fazer contas alemãs, a ponto de ver num cristianismo-ponte a validade para o "povo alemão".

3. Há momentos em que uma fresta se insinua, e eu quase chego a ver nele um pouco de mim, mas, subitamente, Nietzsche volta a ser aquele decidido defensor da Tradição, da Elite superior, das castas, do "povo-corpo" uno, indistinto, em cuja expressão o sofrimento dos fracos se justifica pela glória da arte, a perspectiva de uma unidade, um corpo, em que muitos defecam, para que uma cabeça sorria... Oh, sim, não há sorriso sem fezes, se me entendem, mas não se pode dizer que qualquer que defenda uma tal perspectiva da sociedade entenda-se exatamente por fezes... É-se - sempre! - cabeça, nessas estruturantes utopias metafísicas determinstas. Os deterministas, elitistas, castistas, calvinistas, são sempre a "nata", nunca o esterco que aduba a glória dos eleitos!

4. Alguma coisa vai acontecer, eu sei, e Nietzsche passará a desancar também o cristianismo. Chegarei lá - ainda me faltam centenas de páginas. Mas essas primeiras me fazem perceber que eu sou um homem fora do (seu) tempo, fora do (seu) lugar, fora do (seu) mundo - um inatual. Ao contrário do que o jovem Nietzsche considerava para si, a modernidade é exatamente meu mundo, mas ela teima em não se desenhar no meu páis. Não sou - mais - "ovelha". Como cristão, estou imprestável: não me falam nada as doutrinas, as tradições, as verdades. E, no entanto, mas também por isso, estou imprestável igualmente para o "sacerdócio", porque não posso nem quere mentir nem para mim nem para ninguém. Não tenho nada a dizer a ningém que me queira ouvir como guru. Não vejo ninguém abaixo de mim - nem sobre mim. O espírito de igualdade me tornou imprestável para as fórmulas religiosas que mantemos em vigor...

5. Altar, púlpito, nada disso faz sentido - para mim. Diálogo, réplica, tréplica... Ah, isso, sim, me inspira. Mas nem mesmo os mais "avançados" dentre os teólogos gostam disso. O jogo está viciado, jogo de pregações monocórdias e sermões unilaterais, o vício cristão de dizer, sem cuidar ter sido realmente ouvido, o jogo cristão de dizer, mas não escutar, o jogo cristão de dizer, sem ouvir o que se está dizendo.

6. Ah, Losurdo, menino mau. Se já não havia esperanças para o grisalho de meus cabelos, agora é que me afundas ainda mais profundamente na terra... E o curioso, meu amigo, é que ao mesmo tepo que isso me angustia, isso me dá prazer. E isso também quer-me parecer uma atitude bastante moderna... Chega a ser mística minha sensação de liberdade...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

segunda-feira, 13 de abril de 2009

(2009/161) Entre Marx e Feuerbach, Morin


1. As idéias me voltam sempre, malgrado já as ter tratado. Elas recusam-se a ficar na gaveta. Antes, como fantasmas e assombrações, voltam a pousar em meu ombro, a sussurrar no meu ouvido, às vezes, o direito, às vezes, o esquerdo, porque, às vezes, sou alguma coisa entre tradicional e revolucionário - um tradicional de ficar em casa e um revolucionário de não sair às ruas...

2. Há aquela interminável discussão entre Marx e Feuerbach. É que Feuerbach defendeu a tese, irreprovável sob sua própria perspectiva, de que os discursos humanos sobre Deus, a saber, as doutrinas, as místicas, as ritualizações, ou seja, tudo quanto orbite em torno do tema "sagrado", constitua uma projeção que a mente humana faz de sua própria existência em um mundo extra-humano - metafísico -, passando a lidar com essa projeção como se com uma realidade ainda mais forte que aquela de onde ela provém. Essa tese encontra-se em seu clássico, A Essência do Cristianismo. Sem exceção, todas as Ciências Humanas, quando aplicadas sobre o mesmo tema, partem daí.

3. Marx respondeu-lhe. Não é que vá tomar o partido teológico, absolutamente. Mas é que Marx acha que Feuerbach não foi suficientemente longe, porque Feuerbach não tratou das causas dessa projeção, que, para Marx, eram as condições materiais da existência concreta - política - humana. Ou seja, para Marx, a humanidade não acordou um dia e decidiu, porque quis, projetar-se numa hipóstase divina. Foram as condições materiais - sócio-econômicas, históricas, culturais, geopolíticas - que pressionaram a mente humana, de modo que ela "vazou" imaginários metafísicos para seu consolo e ópio. A meu ver, também dentro de suas próprias perspectivas, Marx não pode ser contraditado.

4. Das 11 teses de Marx contra Feuerbach, eis a sétima e a oitava: "7 - é por isso que Feuerbach não vê que o 'sentimento religioso' é ele próprio um produto social e que o indivíduo abstrato que ele analisa pertence à mesma forma social determinada. 8 - Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que orientam a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão destra prática" (Georges LABICA, As 'Teses sobre Feuerbach', de Karl Marx. Rio de Janeiro: Zahar, 1990, p. 34).

5. Marx não discorda de Feuerbach quanto ao conteúdo, mas quanto ao fundamento de sua tese. Para Marx, a tudo quanto Feuerbach disse se precisaria acrescentar o fato de que as coisas se dão como dão por conta da prática - práxis - humana. Mesmo o "sentimento religioso", ele assevera, nasce aí.

6. Penso que ambos estejam certos. Ao mesmo tempo. Para isso, recorreria a Edgar Morin e a sua teoria da recursividade. Um exemplo seria a relação entre cérebro e mente. Quem determina quem? Ora, o cérebro (biológico) nasce mais ou menos pronto. Os neurônios estão lá, mas não, as sinapses. As sinapses, as relações entre os neurônios, são elas as responsáveis pelo funcionamento "noológico" da máquina cerebral. E elas se formam, de forma comparativamente significativa em relação à fase uterina, a partir do parto e da história dessa criança. Serão as relações existenciais - cuidado, carinho, experiências, locomoção, linguagem, idéiais, imagens, sons, cores -, os encontros e os acontecimentos da vida, que formatarão as sinapses. Isso demonstra que há uma recursividade entre a dimensão noológica, psicológica e subjetiva, humana e a dimensão cerebral, biológica e maquinária. Sem o cérebro biológico, não há ser humano, mas, sem o desenvolvimento cultural/existencial desse cérebro, ele é pouco mais do que uma potencialidade.

7. Talvez devêssemos olhar também assim para a relação entre prática e "sentimento religioso". Talvez seja unilateral conceber-se que é apenas a prática social que determina a expressão religiosa - desde a cosmovisão até a esperança. A rigor, uma prática social já decorre de uma cosmovisão, que, por sua vez, desde que o homem é homem, há de ter sua constituinte "religiosa". Talvez seja simplicidade equivocada querer-se separar, agora, depois de milênios, essas duas dimensões. Do modo como se deu a história da espécie humana, é tanto a prática social - sócio-econômica, inclusive - que determina a configuração noológica da cultura - desde a cosmovisão até a estética - quanto é a concepção "mitológica" da vida que determina essa mesma estrutura práxica. Ambas formam, agora, uma unidade inextricável.

8. Talvez só didaticamente se possam separar essas duas dimensões da realidade - o corpo e a mente, a cultura geopolítica e a cosmovisão mítica. Na prática, as duas estão misturadas, cada qual, recursivamente, sobredeterminando a outra, de modo que não é mais uma que sustenta a outra, ou vice-versa - as duas sustentam-se indissosiavelmente.

9. A virtude de Marx é trazer a atenção para a dimensão práxica das relações religiosas, porque nos alerta de que não se pode querer curar as dores no além, mas aqui e agora. Conquanto o além seja uma dimensão do aqui e do agora, pode-se projetar para lá as soluções concretas que se precisam aqui e agora, o que é muito politicamnte útil para políticas cínicas e manipuladoras. No entanto, também a esperança messiânica pode converter-se em revolução práxica - como o teria querido um Jesus histórico amiúde reconstruído na literara contemporânea, tanto quanto como o quereria a Teologia da Libertação.

10. É bom poder contar com um amigo, Morin, que me permite apaziguar os ânimos entre outros dois caros companheiros de minha solitária caminhada. Afinal, quem ganha com a suposta ruptura entre Feuerbach e Marx? Certamente que não eu...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

sábado, 11 de abril de 2009

(2009/154) De Hans Küng e de uma "teologia científica"


1. Modo de dizer: eu "conheço" dois Hans Küngs - o de Teologia a Caminho e o de Por que ainda ser cristão hoje? O primeiro me agrada (mais). No que diz respeito a uma "teologia científica", e isso no momento em que, ciência, ela se deixa aplicar sobre as Escrituras (judaico-cristãs), Teologia a Caminho traça as linhas fundamentais do trato científico da tradição escriturística judaico-cristã - metodologia histórico-crítica (e seus desdobramentos) e pronto. Irrepreensível. Todavia, o Hans Küng de Por que ainda ser cristão hoje? afasta-se dessa abordagem científica, e dedica-se, engaja-se, na defesa de uma "atitude". O que é de direito, naturalmente, que minha defesa intransigente de uma "teologia científica" não deve ser interpretada como a restrição e a redução da vida humana à perspectiva científica. Contra o que me bato, e me baterei sempre, é uma teologia que se diz, sem o ser, científica, que dissimula sua condição epistemológica, e, por conseguinte, a forma como fala de si mesma, com argumentos tão rasteiros que causam constrangimento a quem domina um mínimo imprescindível das noções epistemológicas a respeito dos critérios de cientificidade. Não é necessário fazer-se cientista, mas aquilo que se faz cientificamente, deve-se fazer segundo as regras das ciências.

2. Para ilustrar uma indisposição minha contra o Hans Küng do Por que ainda ser cristão hoje?, indisposição que me parece plenamente justificada, seja-me permitido transcrever-lhe um trecho particularmente infeliz:

2.1 "Está claro que o nome de Pai atribuído a este Deus não é apenas um reflexo da experiência de paternidade, masculinidade, força e poder deste mundo. Não é nenhuma projeção que sirva somente para glorificar situações de pais e dominadores terrenos. Portanto, não como viu o antigo teólogo e mais tarde ateu, Feuerbach: um Deus do além às custas do aquém, às custas do homem e de sua verdadeira grandeza. Nem é um Deus, como o criticou Karl Marx, dos dominadores, das relações sociais injustas, da consciência deformada e da falsa compensação. Também não corresponde ao Deus rejeitado por Friedrich Nietzsche: um Deus fruto de ressentimentos, chefe supremo de uma moral do bem e do mal para miseráveis e marginalizados. Por fim também não é o Deus rejeitado por Freud e por muitos psicanalistas: um superego tirânico, falsa imagem de ilusórias necessidades infantis, um Deus de um ritual compulsivo oriundo de um comlexo de culpa (...).

2.2 Não, este Deus é um Deus diferente: um Deus que se coloca acima da justiça formalista, casuísta e impiedosa da lei e que manda proclamar uma justiça 'melhor', ou que chega mesmo a justificar os transgressores da lei. Um Deus para quem os mandamentos existem por causa do homem, e não o homem por causa dos mandamentos" (p. 40-41).

3. O leitor deve sabê-lo - Hans Küng está falando do "Deus anunciado por Jesus" (p. 39). É com esse "Deus anunciado por Jesus" que Hans Küng pretende interditar o "Deus" denunciado por Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud. Mais ainda: é por causa desse Deus, que Jesus anuncia, que Hans Küng ainda crê na possibilidade de ser cristão, e de isso fazer sentido.

4. Convenhamos, Hans Küng comete um equívoco retórico-epistemológco imperdoável. O "Deus" de Jesus não se encontra situado na mesma placa epistemológica que o "Deus" de Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud. Confrontar este com aquele é absolutamente improcedente e impertinente. O registro discursivo de Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud é não-metafísico. Eles não estão "olhando" para um Ser metafísico, ontológico, "divino", como se denunciassem a malvadeza de um ser "real", em oposição ao qual Hans Küng pudesse apelar para um outro Ser "real". Os românticos citados por Hans Küng dirigem-se à "representação" cristã, ao "personagem" do discurso cristão. Eles fazem crítica das idéias, não denúncia positiva de uma divindade eventualmente má. Em nenhuma hipótese clássica eles são "teólogos" - se bem que o seriam perfeita e pertinentemente bem na condição de uma "teologica (verdadeiramente) científica, porque, se não passar positivamente por eles, nernhuma teologia será científica. O método histórico-crítico, operado por uma atitude teológica clássica de fundo, é uma ironia.

5. Trata-se, aí, isto é, com Feuerbach e os demais críticos do discurso teológico, de uma interpretação fenomenológica e proto-científico-humanista do discurso cristão, da política cristã, da moral cristã, da psiquê cristã. Trata-se de dizer o que acontece, do que se trata, quando um cristão fala, age, julga ou sente sua "fé". Pensemos em Feuerbach, por exemplo: segundo os seus termos, o "Deus" que Jesus anuncia não passa de uma projeção de sua própria "teologia", em nada diferente, em termos de "processo", do Deus de Anás e Caifás, por exemplo, nem do de Herodes ou de César. O modo como Jesus pensa Deus, nos termos em que o concebe e denuncia Feuerbach - e espera-se ainda pela contestação! (pirraças de religiosos ofendidos não suspendem a validade epistemológica da afirmação de Feuerbach) - não é em absolutamente nada diferente do modo como, por exemplo, o próprio Hans Küng pensa. Se um é bom e o outro é mau, isso nada significa - em termos científico-humanistas, ambos são "hipóstases" antropológicas.

6. Assim, não faz nenhum sentido que Hans Küng confronte um Deus pensado como eventualmente boníssimo, gentilíssimo, pleno de misericórdia, com o "Deus" denunciado pelos autores que ele cita. Talvez Hans Küng pudesse contrastar esse Deus de Jesus com o Deus de Ratzinger, por exemplo, porque Jesus e Ratzinger encontram-se no mesmo topos epistemológico, ambos falam de uma entidade metafísica. Já Feuerbach e os demais denunciam que, seja esse Deus boníssimo, de Jesus, seja aquele crudelíssimo da Tradição inquisitorial da Igreja, seja o Deus católico, seja o Deus protestante, todos eles são, ao fim e ao cabo, "projeções" ideológicas da consciência humana. Eles fazem o que uma teologia científica deve fazer.

7. Se há diferença entre a bondade e a maldade?, entre a misericórdia e a legalidade?, entre o perdão e a condenação? Sim, há. Não há é diferença alguma entre o modo como se pensa um Deus de um tipo e o modo como se pensa um Deus do outro tipo. Uma atitude científica e crítica não pode cair na armadilha de confrontar diferentes modelos de Deus e, então, assumir e/ou propor um modelo bom, justo, libertário. Que diferença há entre, por exemplo, o catolicismo da Inquisição e o catolicismo da TdL? Apenas o plano ético. No plano epistemológico, nenhuma diferença - trata-se, em ambos casos, de projetos ético-políticos, legitimados por meio do mito de "Deus". Não penso que uma atitude científica condenaria o conflito político do confronto ideológico entre modelos de ética. Todavia, não me furtaria a denunciar, sob uma perspectiva científica, que ambos aqueles casos constituem exemplos de manipulação de consciência por meio do mito de "Deus", cada qual em face de seu respectivo programa ético, internamente legitimado, em face de cujo adversário, apenas, ele pareceria "imoral" (a Inquisição jamais se considerou imoral!).

8. Quando Hans Küng confronta o "Deus" de Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud com o "Deus" de Jesus, Hans Küng comete o equívoco de comparar grandezas epistemologicamente incomparáveis, porque situadas em plataformas pragmáticas diferentes. Este, é um Deus estético e político, uma verdade axiomática da fé, interposta a terceiros pela força persuasiva do carisma e da retórica mitológica. Aquele, a denúncia científico-humanista de uma rotina de projeção noológica de pulsões estético-políticas e sobredeterminação antropológica. Aqui, ciência, lá, política.

9. Uma política que se faça alijada de uma compreensão científica de sua própria ação, ainda que não se possa saltar, sem risco, da teoria para a prática, da ciência para a política, é, contudo, arbitrária. Hans Küng deveria confessar que se trata, também aí, também no caso do Deus de Jesus, exatamente do que o século XIX afirma quanto a todos os Deuses - invenção, imaginação, projeção humanas. Em vez disso, equivocadamente, transforma o Deus de Jesus numa espécie de exceção - a mesma exceção barthiana. É como se, à menção do Deus de Jesus, Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud fossem exorcizados, debandassem, atônitos, como diabos à visão da cruz, quando, a rigor, era o Deus de Jesus, conforme o concebe, ideologicamente, doutrinariamente, retoricamente, Hans Küng, que devia reconhecer-se na condição do que é - criatura humana.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

quinta-feira, 5 de março de 2009

(2009/053) Ah, quanta saudade...


1. Mais uma vez, cito o artigo de Clodovis Boff, Teologia da Libertação e Volta ao Fundamento (1): "mas, com a mudança epocal que está se abrindo, após a "tese" da Cristandade e a "antítese" da Modernidade, abre-se também para Igreja e a teologia a chance histórica de uma "síntese": a harmonia entre fé e mundo e, em particular, entre fé cristã e política de libertação". Isso depois da citação de Feuerbach - faz-me rir...

2. Que bom, não?, retornar à Idade Média, de verdade, sem precisar driblar as regras da Modernidade, sem precisar dar satisfações à (verdadeiramente científica) Epistemologia - porque não passa disso a "síntese" dialética entre Igreja e Modernidade (uma versão light disso está disponível na discussão do estatuto epistemológica da Teologia, e na defesa irresponsável da manutenção dos vínculos confessionais dela em plena gestão do MEC - que o próprio MEC endossou).

3. Não me engano: os espíritos cristãos, teológicos, estão açodados, como cães às grades: a "saudade" do período em que as cartas eram dadas pela teologia inebria, enlouquece. A nostalgia contamina. Ah, Idade Média, ah, catedrais góticas, ah, barroco, os dedos se excitam no gatilho...

4. Deplorável.

5. Nietzsche, meu velho, não direi que erraste, mas, digamos, definitivamente, Deus resuscitou...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

(1). BOFF, Clodovis, Teologia da Libertação e Volta ao Fundamento, Revista Eclesiástica Brasileira, n. 268, v. 67, outubro 2007, p. 1001-1022, disponível em www.chiesa (aqui).

domingo, 16 de novembro de 2008

(2008/49) O que pode ser o fim da metafísica?


1. Por mais que se queira, pós-modernamente, afirmar que não haja chão, que não haja fundamento, toda e qualquer afirmação tem, sempre, chão e fundamento. Fenomenologicamente, cada sentença pronunciada por qualquer pessoa faz-se emergir a partir de uma determinada plataforma que lhe serve de alicerce. Mesmo as modernas teorias "hermenêuticas" auto-ditas não-fundacionais. Mesmo elas, sim, têm fundação.

2. O Ocidente, em tese, teve a oportunidade de sair da plataforma ontológico-metafísica platônica há duzentos anos. A "porta" - nunca cansarei de dizer (a Tese, achei-a pela primeira vez em Tilich, e está ilustrada bem em O Nome da Rosa) abriu-se bem antes, depois que os árabes introduziram Aristóteles, na Europa, através da Península Ibérica. Aristóteles fermentou, fermentou, e levedou toda a massa platônica ocidental, que lhe reagiu. Um lado, seguiu Platão - todos os cristianismos, as religiões de modo geral, determinadas escolas filosóficas e algumas utopias políticas. Outro, encabeçado pelas Repúblicas, pela secularização, pela emancipação cultural, pelas ciências, seguiu Aristóteles. Aí, por um acidente histórico, ao que tudo indica, a invasão franco-napoleônica à Alemanha, arrebentou o Romantismo - um ovo realmente novo, porque, ao passo que para Platão e Aristóteles, a verdade está lá fora, para o Romantismo, ela é construída aqui dentro. Não foi Aristóteles quem fez ruir a metafísica, mas o Romantismo, e a ele Platão reagiu furiosamente, seja em Roma, seja em Wittenberg, seja na "América".

3. É na estrada aberta pelo Romantismo - eles são os próprios batedores (Apolo, facão na mão, abrindo caminho através da hylé, para fundar uma cidade) - que caminham, novos homens, Kant, Schopenhauer, Feuerbach, Nietzsche. Dois mil e quinhentos anos de Platão! Quinhentos, mas muito mal pesados, muito esboroados, de Aristóteles! Duzentos, de Romantismo! Fim programático da metafísica, manutenção programática da metafísica. Platão ainda está de pé.

4. É muito curioso acompanhar os discursos epistemológicos das correntes que discutem o fim da metafísica. Pensam colocar-se do lado de cá, pensam estar além da metafísica, mas, no fundo, não conseguem livrar-se dela. Platão ensinou-nos (o Cristianismo inculcou-nos a idéia até ela fazer parte de nossas sinapses) a ontologia metafísica, a verdade "dura", divina, verdade verdadeira, deu-nos o olho de Deus, verdades de Deus, a certeza subjetiva da verdade ineludível - de Deus. Aristóteles não pensava diferente, conquanto, pelo menos, afirmava que cada um podia descobri-la por si mesmo, sem precisar de sacerdotes e filósofos mediadores - um grande passo.

5. É essa verdade divina que morre, se cai a metafísica. O defunto é o qualificativo "divina", não a palavra que ele, politicamnete, qualificava. Os "hermeneutas" não-fundacionais partem do pressuposto de que, se a metafísica caiu, não há mais fundamento, não há mais "verdade". É o mesmo fenômeno entre teísmo e ateísmo: ou existe ou não existe. A "geração" pós-moderna, a geração "hermenêutica", só sabe pensar assim: se não tem fundamento de Deus, então não tem fundamento nenhum (porque todo esse povo, no fundo, guarda a fé no fundo da alma). E tudo, então, vira um blá-blá-blá, para citar, parece-me, Pondé, comentando, favoravelmente, as teses de Karl-Otto Apel sobre a necessidade de um critério de verdade para a civilização pós-metafísica.

6. A lógica do pólo não demorou muito a emergir. Um Heidegger logo aproximou o conceito de "linguagem" ao do fundamento ontológico platônico. Idéia - Deus - Linguagem (Platão - Agostinho - Heidegger): "a compreensão não mais é vista como um ato do homem mas como um evento no homem" (R. Palmer, Hermenêutica, p. 217, grifos meus). Gadamer, mais do que depressa, ultrapassa (mantendo-a) a Linguagem com a Tradição: "no diálogo hermenêutico, o tema geral em que estamos inseridos - tanto o intérprete como o texto - é a tradição, a herança" (Idem, p. 202). Linguagem, Tradição, substitutos pálidos, mas de mesmo nível, para o Ser que se inventou (não é curioso que os livros ensinem sobre os filósofos atenienses como sendo, eles, filósofos? E o eram? Não - eram, antes de tudo, teólogos!). Caímos na armadilha - se não a armamos!: a) primeiro, assume-se que o fundamento necessário é (o) ontológico, b) em seguida, afirma-se que com o fim da metafísica, findam-se os fundamentos, c) terceiro, com o passo "a" trabalhando nos bastidores, propõe-se uma refundação "não-metafísica", quero dizer, não "religiosa", não "mitológica", mas, eis a surpresa, que mantenha o status quo exatamente como era antes do fim da metafísica (eis a que, a meu ver, se resume, por exemplo, a proposta de Vattimo): Linguagem e Tradição.

7. Penso que o rumo dessa viagem foi corrompido. Era falsa a idéia de que é necessário um fundamento ontológico e metafísico para a existência humana, para a sociedade. Alguma coisa entre uma saudade patológica do medievo e um programa político de manutenção dos eixos de força atuantes na sociedade insistem na estratégia pendular. A saída Romântica, contudo, recusa o pólo. Recusa, por exemplo, que não haja fundamentos, ao mesmo tempo que recusa que haja um fundamento. Há fundamentos: locais, situados, históricos - válidos, diga-se, operacionais. Não há "revelação" que se faça "saber" e que, por meio de tal prestidigitação sacerdotal, proponha-se como "fundamento" ontológico. Isso foi a maior das invenções políticas da História - um quê de Pérsia (administração subjetiva, por meio do mito, das consciências conquistadas) e Grécia (ontologização da estratégia mitológica de administração das consciências conquistadas). Farsa.

8. Não é necessário, nunca foi, mentiram para nós, um fundamento ontológico. Nossos olhos são e serão, para sempre, humanos. Construiremos para nós, sempre, fundamentos situados, válidos intra-comunitariamente. À medida que a comunidade cresce - torna-se planetária, por exemplo -, ampliamos, dialogalmente, os fundamentos, jogando, no risco, com o "real", captado por nossos sentidos e tratado por nossas sinapses representacionais. Isso que construiremos não é ilusão, mas não é, tampouco, "verdade", isto é, verdade no sentido em que Platão e Aristóteles cuidavam ser possível - o homem ter a visão (por dom sacerdotal ou investigação autônoma) dos deuses, os homens verem como os deuses vêem.

9. Sugiro que esqueçamos definitivamente Platão. A metafísica dos deuses, do Ser, acabou (Linguagem e Tradição são ídolos de sofrível aparência). O que não significa que chegamos a um beco sem saída - não! Mil vezes não! Saímos foi do labirinto maldito da política ontológica e metafísica, do controle das consciências por meio de mitos. Podemos voltar ao ponto onde estávamos antes do canto de sereia, do "murmúrio" da Cidade Bela, e podemos voltar a construir os fundamentos com os quais continuaremos a edificar nossa História. Nem ontologia nem blá-blá-blá: lucidez histórica e epistemológica. Que me remete àquela velha citação (de memória) de Pascal - "o homem é um caniço que pensa, e o peso do Universo o esmaga. Mas ele sabe".


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

(2008/26) Homo faber e cosmogonia


1. Convido à imaginação da "teologia" como o teria sido antes das monarquias. Os deuses - desde onde sairá também o "cristão" - não eram, então, certamente, monarcas. Imaginar como seriam constitui uma das reflexões constituintes da tarefa da Fenomenologia da Religião - que tem instrumentos interessantes para isso (cf. o Tratado de História das Religiões, de Mircea Eliade).

2. Entretanto - a monarquia não é a única invenção humana que contaminou, e para sempre, a "teologia". Ora, os primeiros homens e mulheres, quando se deram conta de serem homens e mulheres, depararam-se com um mundo "dado" - pronto, acabado. Ambíguo, porque ora se comporta de modo bom (a caça!), ora, de modo péssimo (o predador!), esse "mundo", contudo, não demanda questões metafísicas dessa natureza, por si só.

3. Até que o primeiro homem, a primeira mulher, fabricaram seu mundo: seus instrumentos, suas "casas", suas cidades. Nesse momento, imediatamente, os "deuses" tornaram-se, também eles, como nunca o haviam sido, "criadores", construtores... O Homo faber inventou a cosmogonia. Também aqui Feuerbach tem toda a razão.

4. Apenas uma inquietação: o parto humano - terá ele influenciado, de algum modo, e antes do Homo faber, a "teologia"? Terão os deuses - as deusas - "sido" Mães, antes que os deuses, por sua vez, viessem a tornar-se "construtores", "criadores"? Haverá, nessa inquietação, alguma coisa de histórico, quero dizer, no fato de que a emergência do Homo faber teria feito submergir um continente inteiro de "hierofanias" ginecológicas? Sim, as "Mães", parturientes divinas, sobreviveram, porque, afinal, o parto é endemicamente humano - mas à sombra da força inexorável da onda civilizatória, cosmogônica, e, a essa altura, contra-ecológica.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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