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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

(2010/124) Considerações hermenêuticas sobre cavernas e crânios de ursos


1. Seja lida a oração: "como esses depósitos (de crânios e ossos largos de ursos em carvenas dos Alpes, datados do período interglaciário) pareciam intencionais, os cientistas se dedicaram a desvendar-lhes o significado" (Mircea Eliade, História das Crenças e das Idéias Religiosas, Zahar, 2010, p. 26). Quero chamar a sua atenção para a relação entre os termos "intencionais" e "significado" - os cientistas decidiram desvendar o significado dos depósitos de crânios e ossos largos de ursos em cavernas dos Alpes, datadas do último período interglaciário, porque tais depósitos pareciam intencionais.

2. No início do século XX, inúmeros achados de crânios de ursos, acomodados em nichos naturais de cavernas alpinas, tudo indica, intencionalmente, acompanhados de ossos largos posicionados na direção leste-oeste, suscitaram a pergunta pelo significado de tais depósitos. Ora, nada mais natural, porque, se os ossos estivessem simplesmente espalhados, dando a impressão de tratar-se de restos de mortes naturais ou acidentais de ursos, deixados ali, ao sabor da sorte e do tempo, ninguém precisaria incomodar-se em perguntar pelo "sigificado" da posição desses ossos, porque não haveria significado algum. Só há significado na intencionalidade.

3. Claro que ossos "naturalmente dispostos" também representam "informações" arqueológico-paleontlógicas, mas são informações mais ou menos do mesmo tipo que as camadas distintas em uma pedra pomes: nem o vulcão "decidiu" unir diferentes tipos de magma numa única pedra, nem os ursos "planejaram" deixar os ossos, próprios ou de terceiros, desse ou daquele jeito - simlesmente, aconteceu. Não há intencionalidade nas coisas naturais. Somente nas humanas (deixando aqui de lado a questão complexa de certos comportamentos animais que, contudo, representariam desvio no conceito de "natural" que eu aqui manejo). Logo, para os limites aqui impostos, só há significado nas ações intencionais humanas.

4. Eu quero saltar entre disciplinas. Deixo as ossadas de Eliade em suas cavernas primitivas. Quero pinçar daí o tema da intencionalidade como condição de sentido/significado. Quero, então, trazer essa questão para o campo de pesquisa dos textos antigos. Não há texto que não tenha sido produzido por um ato intencional humano. Todos, do mais simples, da óstraca mais banal, ao mais complexo, do mito cosmogônico mais sofisticado, todos, foram produzidos intencionalmente. E - atenção! - o significado está preso àquela intenção original. O sigfiicado da óstraca ou do mito cosogônico são - única e exclusivamente - aquele pretendido por quem os produziu.

5. Alternativamente, alguém pode descolar intenção e significado. Que seja. O que faz? Ele toma o texto, mas joga fora a intenção original. O que ele tem? Bem, agora, ele tem u'a massa de modelar nas mãos, um punhado de argila maleável. O que ele faz? Modela a massa, emprega as mãos e dá, à massa, a forma que ele quer - em outras palavras: aplica sua própria intenção à massa, ou, para sair da metáfora, emprega sua própria intenção ao texto, e faz o texto dizer o que ele quer. O nome disso é alegoria.

6. A alegoria tem servido à religião e à política. É, contudo, um desastre, um transtorno, uma desgraça, para a ciência. No campo religioso, a alegoria - atenção! - importa no seguinte: o oráculo passa a ser o intérprete, porque é ele que dá sentido ao texto. Todo leitor que se sirva da alegoria para produzir sentido reigioso faz-se de "demiurgo". Em termos históricos, a alegoria é fraudulenta. Em termos éticos, é uma farsa. A alegoria só me parece justificável no campo da estética - e em mais lugar nenhum...

7. A leitura histórico-crítica é como a paleontologia, como a arqueologia, como a história. Às favas as abordagens pós-modernas e metafóricas: aplicadas ao texto, é como se pudéssemos, por exemplo, dizer que foi a Cachinhos de Ouro quem organizou os ossinhos dos seus amigos ursos nas cavernas alpinas... Não? A alegoria é minha, o achado é meu, faço com eles o que eu quiser... Parece arrogância?, petulâcia? Mas é a isso que se resumem interpretações político-teológicas das Escrituras: para além do risível, manda quem pode, obedece quem é desinformado... E disso já sabia o moleiro de Ginzburg há quinhentos anos...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

sábado, 23 de janeiro de 2010

(2010/073) Mircea Eliade - Zahar relança clássico!


1. Estou emocionado! A Zahar relança o clássico - e dificílimo de encontrar - História das Crenças e das Idéias Religiosas, de Mircea Eliade. Trata-se de uma "coleção", e a Zahar acaba de relançar o primero volume. Aqui você pode ler o Prefácio, em pdf.

2. Eu tenho tentado há anos adquirir os volumes, dos quais tenho apenas dois. Há sebos virtuais, onde você pode adquirir um volume por 200 reais... Há uns doze anos, na Bienal, quase comprei a coleção toda, editada em Portugal. Não era barata. Fiquei com medo, na hora. Não comprei. Arrependo0-me até hoje.

3. Mas, agora, podemos adquirir pelo preço normal de uma livraria. Acabo de encomendar pela Travessa, a R$ 38,71 - em três vezes.

4. Morcea Eliade é um "monstro". Um dos maiores pesquisadores do fenômeno religioso do século XX. Dele, tenho vários livros, dentre os quais destaco o absolutamnte imperdível Tratado de História das Religiões, em minha experiência, uma verdadeira iniciação, e o deliciosamente fascinante Ferreiros e Alquimistas. Mas há muitos, muitos outros. Antes de eu ter conhecido Edgar Morin, Mircea Eliade era meu autor predileto.

5. Se você gosta de ler sobre religião e fenômeno religioso, mas sob um enfoque acadêmico, fenomenológico, então esse é um livro para você ler. Recomendo - veementemente!


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

sábado, 23 de maio de 2009

(2009/288) Livros que mudaram minha vida - I


1. Até hoje, e lá se vão dezesseis anos de magistério teológico, tenho resistido bravamente às - é verdade que - poucas ameaças de um ou dois alunos me tirarem por guru. Minha consciência crítica é tão severamente austera consigo mesma que não suportaria a idéia de apresentar-se em sala de aula como guru - Deus me livre! Sequer a idéia de "discipulado" me encanta. De uma transferência de autonomia, de uma introdução aos métodos, de uma insuflação de coragem, aí, sim, me agrada a idéia.

2. Alguns alunos do primeiro período de Teologia, da FABAT, me pedem, num canto, que liste o nome de livros que recomendaria para serem lidos com seriedade. Ah, isso não posso fazer, porque eu não tenho receitas mágicas. O que posso fazer é ir dando, a pouco e pouco, o nome dos livros que me fizeram, pelos quais me fiz, que correm em minha veia, que transbordam de cada afirmação minha.

3. Se você lê alguma coisa, e isso entra na sua corrente sangüínea, e isso passa a compor seu DNA, e cada espermatozóide seu passa no almoxarifado para pegar o embrulho, então você aprendeu isso. O resto foi perda de tempo. Lemos muito pouca coisa realmente significativa em toda nossa vida, conquanto tenhamos lido, eventualmente, muita coisa.

4. A primeira indicação que faço, algo como quase sagrado em minha iniciação crítico-epistemológica, é o magistral Tratado de História das Religiões, de Mircea Eliade. Li-o de cabo a rabo, sem parar, no chão da sala de casa, tendo a Lua por companheira, ainda na Matias Braga, em Belford Roxo. Havia um cortina bordô nas janelas - eu me lembro delas. O chão, era de tacos envernizados, como tiveram sido os chãos da casa de vovó. Havia um sofá creme. Dois cães, agora já mortos, na varanda. Bel (sempre ela) e as crianças, pequenas... Nasci, ali, no chão, parindo-me página a página. Quando acabei, exausto, levantei-me, e percebi que pele, ossos, sangue, urina, fezes, carne, músculos, um exo-homúnculo ficara ali, no chão. Recolhi, reverentemente, os restos mortais, engoli-os, e segui em frente. O velho e o novo dormem na minha carne... Eu era uma serpente que trocara a pele.

5. Nesse dia - e até hoje - condenei a educação religiosa que me praticaram. Não tinham o direito de fazerem o que fizeram comigo - peior, de me ensinarem a fazer a mesma coisa, de cometer o mesmo crime. Mentiram para mim, desavergonhadamente, em nome de suas verdades de umbigo, quando sabiam que havia quem lhes denunciava a mentira. Chorei naqueles dias. E segui em frente.

6. Não, não é um livro "religioso". É um livro técnico. Mas conhecer-se e conhecer o mundo, é pura liturgia. Meter a mão nas próprias carnes, é culto. Sofrer a dor do próprio parto, é adoração...

7. E recomendo entusiasticamente essa iniciação. Se bem que se trata de um portal muito peculiar. Ninguém que não à altura de espremer-se entre os próprios ossos entrará nele. A alma pequena demais, ou grande demais, por alguma razão, não agüentará a travessia, porque deve-se cruzar o rio pisando as próprias verdades, e elas estilhaçam-se, sob o peso dos pés, que, sangrando e doendo, devem, contudo, insistir, e não sobra nada do outro lado. É uma dor em festa, todavia, um sofrer de gozo, um doer gostoso...

8. Por isso, não temo recomendá-lo. Só há de atravessar o vale negro da Fenomenologia da Religião aquele que, em pleno estado de "verdade", encontra-se ardendo como que em ácido - e de tal modo que, à gota que se lhe oferece, abre a garganta, ávida. Eliade é uma gota de água fria, a anunciar a chuva, depois da seca...

9. Não é um livro para os satisfeitos. É um livro para quem tem dor. Um livro para Jó - para aumentar ainda mais a sua tragédia. Mas, depois, acabam-se todas.

10. O segredo que ele trás, ao menos o que eu descobri, é que ele vai apagar o nome dos deuses da rocha, escrevê-los na fumaça, e construir uma varanda. Balançar-se, ali, ou não, é a opção do leitor. Se sobreviver, claro.

11. Pediram-mo. Agora não me venham com choramingações, que tá doendo...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS. Para adquirir, na Livraria da Travessa.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

(2009/205) De uma velha entrevista de Mircea Eliade

1. Trata-se de um livro que registra uma longa conversa/entrevista entre Mircea Eliade e Claude-Henri Rocquet, publicado, em Paris, em 79, e, em Madri, em 1980: Mircea Eliade e Claude-Henri Rocquet, La prueba del laberinto: conversaciones con Claude-Henri Rocquet. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1980. Como tudo quanto Eliade disse e escreveu, a leitura dessa obra há de proporcionar, além de agradáveis, instrutivos momentos. Nele, por exemlo, fico sabendo que Eliade e Jung foram amigos, o que deve exercer a força de alguma precaução quanto ao que escrevi anteriormente, que, contudo, penso ainda ser procedente.

2. O que me traz a Peroratio é a seção "Desmitificar la desmitificación" (p. 128-134). A questão que Claude-Henri Rocquet propõe a Eliade é aquela própria das abordagens de Marx, Freud e do "estruturalismo", por exemplo, de um Lévi-Strauss, em face das culturas antigas, principalmente em relação ao seu espectro fenomenológico-religioso. Eliade tecerá algumas críticas às rotinas "desmitificadoras" das abordagens das Ciências Humanas. Dirá, por exemplo, que se trata de uma tarefa "fácil" reduzir as formas "primitivas" de compreensão aos seus elementos sociais, políticos, econômicos, dissolvendo suas criações culturais nos termos da crítica moderna.

3. Quanto a isso, Eliade afirma que a tarefa desse tipo de abordagem não deveria ser a simples desmitificação, uma desmitificação por simples desmitificação, o que não levaria a nada, mas, sim, a pergunta pela razão intrínseca de os povos - primitivos e contemporâneos - elaborarem teologias, cosmogonias, ritos, sistemas simbólicos de referência, para situarem-se no mundo. Nada mais adequado, eu diria.

4. No desenvolvimento da conversa, contudo, Eliade ensaia um diálogo imaginário entre os herdeiros futuros dos homens primitivos e "nós", no qual os herdeiros nos recriminariam o fato de termos reduzido a elementos não-míticos as expressões criativas de sua cultura, ao passo que íamos recusando fazê-lo em relação a nossa própria, denúncia de um preconceito civilizatório, que, se procedente, seria legitimamente reprovável.

5. No entanto, em que sentido as Ciências Humanas operam segundo o regime de tratar as culturas antigas como inferiores, e, a nossa, como superior? Quando, por exemplo, Freud tratou a religião como "ilusão", e a "idéia" de "Deus", como neurose, disse-o com relação apenas aos antigos - ou a fúria teológica contra-freudiana não é justamente porque ele pôs sob seu dignóstico inclusive "nós", cristãos ocidentais? Ora, se, de posse do material metodológico das "ciências", pesquisadores carregados de preconceito cultural e civilizatório pronunciam-se exatamente segundo o modelo da denúncia - "eles", os primitivos, eram inferiores, e "nós", os "homens modernos", superiores, de modo que a religião deles é mitológica, e a nossa, não -, isso nada tem a ver com a própria "ciência", mas com atitudes e ideologias, eventualmente teológicas, da parte do "pesquisador".

6. O regime de desmitificação que as Ciências Humanas empregam, e devem empregar, e segundo o qual operam, e devem operar, deve ser aplicado a tudo - seja à cultura antiga, primitiva, seja às culturas clássicas, seja às culturas medievais, bem como as modernas e contemporâneas - os Hinos Nacionais não são, em todos os sentidos, pura mitologia? Além disso, devem estar atentas, ainda, as Ciências Humanas, a aplicarem a si mesmas o princípio que a tudo aplicam, porque aquela pergunta que se deve fazer - por que os homens criam para si sistemas simbólicos de auto-referência - contnua operando, silenciosamente, inclusive por trás das operações mais modernas das ciências de ponta, seja o Hubble, seja o LHC.

7. Não se trata de não aplicar às culturas primitivas o princípio teórico-metodológico da desmitificação científico-humanista, já que e porque não o aplicaríamos a nós mesmos - trata-se de aplicá-lo, sem dó, também a nós.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

segunda-feira, 20 de abril de 2009

(2009/188) Marie-Louise Von Franz


1. Dos nomes que Paulo arrolou em sua lista, o de Marie-Louise Von Franz é o mais surpreendente, porque não se poderia dizer, sem mais nem menos, que Marie-Louise Von Franz tenha sido uma "teóloga". Pelo menos tanto quanto não o foi Carl Gustav Jung, com quem trabalhou por muitos anos no Instituto que leva o nome do seu antigo mentor. Van Franz tornou-me assim, uma psicóloga analítica, ligada à psicologia profunda, de Jung, pesquisadora da alquimia e da simbologia onírica, bem como, naturalmente, dos símbolos em geral. Escreveu muito, grande parte de suas obras constituindo a publicação de conferências. Aos oitenta e três anos, faleceu em 1998. Não conheço outra, de modo que deve ser a essa Marie-Louise von Franz que Paulo se refere. No mínimo, uma "teólogo" sui generis...

2. Não se há de querer que eu me julgue competente para falar sobre a obra de Marie-Louise Von Franz. Não o sou. Posso, quando muito, traçar um muito abreviado paralelo entre sua abordagem (junguiana) e a Fenomenologia da Religião, de Eliade, com quem me identifico.

3. Desde os séculos XVIII e XIX, processo cujo ápice se dá no XX, resultado do "encontro" entre a Europa e os "antigos" mundos - América, Ásia, África, Oceania -, uma quantidade incomensurável de tradições, imagens, contos, costumes, ritos, mitos, símbolos de povos antigos e contemporâneos invadiu a cultura ocidental. Logo, esse material foi sistematizado e reunido em verbetes classificatórios. Por trás de uma multiplicidade inimaginável de elementos, revelava-se um padrão, a que podiam ser alocadas inúmeras atualizações culturais específicas: na superfície, multiplicidade, sob a superfície, unidade.

4. Conheço duas formas de lidar com esse material, explicando-o. Jung aproximou-se do fenômeno, postulando a existência de um inconsciente coletivo, uma "grande alma da humanidade" operando por debaixo da aparente manifestação concreta das consciências individuais. Os homens e as mulheres, por mais que se julgassem ímpares, sujeitos de si, individualidades invioláveis, constituíam, quando muito, emergências pontuais da mesma dimensão imaterial e inconsciente. Sendo assim, não era difícil explicar, sob um único regime hermenêutico, a "unidade" por trás da "variedade". A "variedade" é da condição da história, dimensão própria das individualidades aparentes humanas. Por sua vez, a "unidade" constitui a verdadeira natureza da alma inconsciente humana, dessa grande superfície submersa, à qual estão ligados, indissociavelmente, todos os seres humanos. Não será por mera coincidência que os modernos sistemas esotéricos postularão essa dimensão unitária e espitirual como base mesmo do Universo. As cosmogonias egípcias, há três, quatro mil anos, já haviam chegado à mesma formulação.

5. De posse do mesmo material, Mircea Eliade há de construir um outro modelo explicativo, que me "encanta" mais. Segundo a fenomenologia religiosa eliadiana, durante sua longa história, de milênios, os homens depararam-se com situações sempre inicialmente inexplicáveis, mas que, dada a condição da consciência hermenêutica de que são dotados, demandavam-lhes "explicações". Tais explicações são, sempre, da ordem do mito e da cosmovisão, porque demandam antecipações hermenêuticas de outro modo inexequíveis. O processo antropológico da interpretação, segundo Eliade, obedeceria a dois princípios fundamentais - um, psicológico, e, outro, ecológico. Ou seja, as interpretações humanas - que Eliade circunscreveu programaticamente àquelas relacionadas à dimensão religiosa ou dita "do sagrado" - prendem-se a uma confluência de variáveis finitas próprias a) da cultura humana e b) do nicho ecológico em que vive o ser humano.

6. Por exemplo, quando Eliade detalhará o modo como os homens antigos formularam os inúmeros conceitos de divindade, é descrito como sendo elaborados sempre a partir das características peculiares dos objetos naturais a que a intuição dessa divindade se havia ligado - assim, em todo o planeta, não importam o tempo, o lugar e a cultura, sempre houve deuses telúricos, uranianos, oceânicos, líticos, agrícolas, botânicos, zoológicos, fluviais, pluviais, ctônicos etc. Uma vez que os objetos-matriz, catalizadores das hierofanias ("manifestação do 'sagrado'") são limitados, em milênios e milênios, o conjunto dessas operações hermenêuticas tende a uma variedade uniforme. Além disso, dentro de cada variação limitada, as características dessa "divindade" eram sempre as mesmas, fosse ela uma divindade tupi-guarani, fosse ela uma divindade maori, desde que relacionada à mesma materializade ecológica - a abóbada celeste, por exemplo. Esse fenômeno explicaria a semelhança impressionante, por exemplo, entre determinadas representações de Ogun, na África, e algumas das mais representações de Yahweh, na Bíblia Hebraica. Não é que uma "alma" subliminar manifeste-se aí - é que a história da construção de ambas representações respondem pelos mesmos critérios ecológicos: a montanha, a tempestade.

7. O modelo de Eliade não tende a um estruturalismo desindividualizante, como o modelo junguiano. Segundo o modelo junguiano - por extensão, de Marie-Louise Von Franz -, os homens e as mulheres não são os verdadeiros operadores dos processos cognitivos. A "verdadeira" história humana é "outra" história... A superfície da consciência humana é, apenas, uma espécie de "capa", dispensável, sob a qual corre a lava da "alma" subliminar da espécie. Segundo o modelo eliadiano, ao contrário: ainda que sob regimes biológicos-psicológicos limitados e específicos, inclusive estruturalmente paderonizados, nesse sentido, determinantes da potencialidade aberta do sistema, enquanto potência, é cada homem e cada mulher que, ecologicamente, enquanto agentes atualizadores daquelas potências biológico-psicológicas, operam os sitemas hermenêuticos fundamentais para sua inserção no cosmos. Sem o sistema, homens e mulheres são inoperantes - mas o sistema não é, por si mesmo, operativo. Ele sequer sabe de si.

8. Não diria que não gosto de Jung. Diria que me sinto desconfortável diante dele, porque sua metodologia não me parece refutável - logo, ela incorre naquele problema geral das não-ciências. Já o modelo eliadiano é perfeitamente "histórico", ecológico, não-metafísico, além do que é sobejamente confirmado pela epistemologia complexa de Edgar Morin, que estabelece um papel fundamental para a "situação" ecológica das rotinas hermenêuticas dos sujeitos vivos, mormente os humanos. O que não significa que não haja aspectos relevantes na psicologia junguiana - o desbravamento do continente da insconsciência humana, por exemplo. Mesmo Morin recorre a Jung, nesse aspecto.

9. Para terminar, uma ilustração do risco que percebo nas abordagens da psicologia profunda. A Paulus publicou recentemente Mitos de Criação, de Marie-Louise Von Franz. Do mito, aí, se diz: "todos os povos têm seus próprios mitos a respeito de suas origens e da estrutura fundamental de sua existência. É claro que nenhum deles presenciou o que relatam nesses mitos. O sentido fundamental não é externo, mas interno: um retrato metafórico que relata a origem e a estrutura fundamental da consciência daquele povo dentro da situação geográfica, climática, histórica e moral (ethos, ou costumes sancionados coletivamente pelo grupo). Assim, os mitos não apresentam realidades exteriores. Ao contrário, apresentam simbolicamente a alma do povo" (Marie-Louise Von Franz, Mitos de Criação. São Paulo: Paulus, 2003).

10. Chamo a atenção para a seguinte fórmula: "os mitos (...) apresentam simbolicamente a alma do povo". Esse é o tipo de risco que vejo correrem as metodologias "psicológico-analíticas" de modo geral, em particular as junguianas. Talvez elas se esqueçam que não há intencionalidade senão na consciência humana individual. Um "povo" não tem alma. Um povo sequer existe. Um povo constitui uma abstração cognitiva, uma representação noológica de uma grandeza ecológica. Todavia, isso que o conceito noológico chama de "povo" só o é em particularíssimas dimensões - geopolíticas, por exemplo. Mas não há, aí, nada que se possa comparar a um "organismo" com uma única alma, um único sentimento, uma única atitude, uma única percepção. Não existe um povo brasileiro, mas vários, assim como não existe povo algum no planeta. O "pecado" das psicologias analíticas de modo geral é político - eles são programaticamente a-políticos. Não há conflitos entre homens, apenas conflitos internos a cada ser humano. É o "pecado" gravíssimo das abordagens do real por meio de chaves simbólicas.

11. Quando rotinas explicativas - psicológico-analíticas, filosóficas, teológicas - tomam a abstração conceitural (o conceito "povo") no lugar da grandeza histórica sob análise (o conjunto de seres humanos ecologicamente e culturalmente situados), cai-se num idealismo mais ou menos próximo-platônico que leva à perdição toda e qualquer objetividade. Não é muito diferente, por exemplo, da tentativa de Gerhard von Rad de levantar as "tradições de Israel" - mas, von Rad, alto lá!: de que Israel você fala? Só há um modo, e apenas um, de reduzirmos um povo a uma singularidade expressiva - fenômenos políticos, como Nicéia, por exemplo, ou Ml 2,7. Além da política de submeter todos a uma só expressão, o que resta, concretamente, é um inúmerável conjunto de pessoas que, a despeito dos limites materiais e históricos de expressão, formulam-se e expressam-se a partir de sua individualidade - seja, inclusive, porque assim o fazem, heteronomamente. Daí provém, inclusive, as potencialidades revlucionárias da espécie e da história humanas.

12. Que cada ser humano tenha lá a sua "alma", isso lá é provável, conquanto não-refutável, e, de qualquer modo, nenhuma diferença faz, se a aproximação antropológica não se constituir por meio de um dualisto platônico, mas formular-se por meio de um conceito monista e orgânico da "vida". Agora, que a humanidade, toda, tenha, ela, uma "alma" - seja essa alma em que sentido for, isso me parece muito, muito mitológico. E mitológico de um jeito que faz de mim uma ilusão daquela mesma alma. Isso, Marie-Louise Von Franz, isso eu não posso aceitar. Tome-se, que seja, essa atitude minha como pirraça de criança rebelde...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

sábado, 4 de abril de 2009

(2009/137) Fenomenologia da Religião e Teologia "acadêmica"


1. Quando Mircea Eliade escreveu que "o 'sagrado' é um elemento da estrutura da consciência" (Origens, Lisboa: 70, 1989, p. 10), penso que o que ele quis dizer equivale-se ao que Croatto escreveu: "o lugar da hierofania é, na realidade, o próprio ser humano" (CROATTO, As Linguagens da Experiência Religiosa, São Paulo: Paulinas, 2001, p. 60). A meu ver, uma Fenomenologia da Religião (FR) que se pense a si mesma como uma das Ciências Humanas (uma das Ciências da Religião, ou, como prefiro pensar, uma câmara transdisciplinar de acesso ao fenômeno religioso), das duas, uma: ou assume, definitivamente, que o fenômeno da manifestação do sagrado é, para todos os efeitos, um fenômeno da consciência humana, um fenômeno sem conteúdo, ou, se não, assume-se, logo, como Teologia disfarçada, alguma coisa entre envergonhada e estrategicamente posicionada em sua campanha de cooptação dos saberes, racionalização apologética da intuição fideísta.

2. Pois bem: é, para mim, cada vez mais definitivamente claro que, em Croatto, os capítulos que tratam especificamente do "sagrado" estão inapelavelmente contaminados pela Teologia. Ontem, durante a aula FR, no campus avançado do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil (Nova Iguaçu - onde me formei [1987-1992] e onde, desde 1993, leciono), foi um dos alunos, Robson, a observar a estrutura metafísca da seguinte declaração de Croatto: "o ser humano é quem vivencia o transcendente, mas ele não tem a iniciativa de tal experiência. Ele de fato - o Mistério, ou qualquer que seja o seu nome - é inobjetivável" (CROATTO, op.cit., p. 63-64).

3. Robson observou que, nos termos da declaração, "transcendente", "Mistério" e "qualquer que seja o seu nome" são não apenas "inobjetiváveis", mas, a rigor, a mesma coisa. Isso implica em dizer que, nesse caso, a FR apontaria, ela mesma, enquanto FR, para duas realidades - a própria transcendência em si e a realidade hermenêutica estabelecida pelo ser humano. De fato, na seqüência, Croatto acrescenta: "está além do limite humano, dentro do qual pode operar o jogos, o discurso racional" (p. 64). Ou seja, cá, o ser humano, estabelecido em seu limite, articulável por meio do discurso racional. Lá, o Mistério - com eme maiúsculo!

4. Bem, a meu ver, isso deixou de ser FR e passou a ser Teologia. A FR não tem nenhuma possibilidade de assumir (nem por hipótese) que haja, de fato, outra realidade que não a hermenêutica humana ecologicamente situada e provocada. A FR não pode, não tem condições, enquanto FR, ou seja, enquanto Ciência Humana, de afirmar - nem de negar - a existência de uma suposta, eventual, realidade metafísica, sobrenatural, "divina". O que a FR tem nas mãos é a interpretação de um sujeito (realidade hermenêutica, noológica, ecologicamente situada), da qual se faz constar, como conteúdo hermeneuticamente produzido, a existência, somente assim presumível, de uma realidade metafísica. Ora, mas é o sujeito quem o diz! Que a Teologia se constitua justamente sobre esse dizer - "a fé vem pelo ouvir" -, vá lá (quando ela, a Teologia, deixar de ser fideísta e confessional, dar-se-á conta do despropósito em que isso se constitui). Mas a FR não pode, é-lhe vedado, saltar, fideisticamente, da interpretação do sujeito para o conteúdo da interpretação - a interpretação é objetiva, é um dado, é um mito, é um texto, é um hino - o conteúdo que ela, a interpretação propõe, é imaginação, é invenção, é arte, é política, é delírio, é abstração, é racionalização. Elas, as Ciências Humanas, todas, o sabem. A Teologia, também - mas nem liga, porque a fé é essa loucura, mesmo (quando Paulo o diz é "chique", quando é Freud, é despeito...).

5. A FR de Croatto, contudo, salta pra lá e pra cá, insistentemente, entre a Realidade invisível, como ele usa falar, e o mundo fenomênico. Isso, insisto, não é FR. Há um equívoco grosseiro na linguagem com que o livro de Croatto trata a hierofania - no fundo, é o discurso do ser humano religioso que aparece nas páginas de As Linguagens da Experiência Religiosa, antes que o tratamento fenomenológico-religioso que ele deveria receber pelo fenomenólogo da religião. O equívoco é o mesmo, sem tirar nem pôr, que se vê no discurso confessional sobre a Bíblia, por exemplo, quando trata as palavras atribuídas a Jesus, nos Evangelhos, como palavras de Jesus, quando, a rigor, essa é a mais remota das possibilidades, uma vez que se trata, primeiro, de declaradas palavras de evangelistas, narrando palavras que Jesus teria pronunciado, e a isso tendo-me chegado muitas vezes, algumas, até, confessadas, por meio de entrevistas - ou seja, o evangelista sequer as ouvira ele mesmo, mas terceiros é que alegam tê-las ouvido. Ainda que seja verdadeiro o testemunho, está-se, ainda, afiançando crédito à memória de terceiros. No caso da "FR" de Croatto, a questão é muitíssimo mais gravemente agravada pelo fato de que, se no caso dos Evangelhos, há uma possibilidade histórica, ainda que remota, mas, ainda assim, científico-humanista, de ter sido Jesus a ter dito uma ou outra coisa - tudo, impossível! -, no caso da FR, contudo, não se pode, nunca, não científico-humanisticamente, afirmar que tudo, parte, um décimo, um milionésimo da interpretação humana seja, de fato, "metafísica". Nada, absolutamente nada, aí, pode ser assumido como metafísico - ainda que eventualmente o seja! A FR é absolutamente, metodologicamente, incontornavelmente - cética.

6. Não, contudo, a de Croatto, que é crente. Ela sabe que está lá o Mistério. Mas não poderia nem deveria saber. Seja o Mistério, o Transcendente, o Inéfável, o Inobjetívável, o "Sagrado", seja Deus, Xangô, Buda, Quetzalcóatl, Manitu, Tupã, a Pomba-Gira ou o duende da cama da Xuxa, tudo isso são construções hermenêuticas do ser humano, seja a materialização concreta mais grosseira (gesso, barro, madeira, cobre, bronze, jade, pedra) de "entidades" e "seres" sobrenaturais, seja a respectiva criação noológica intermediária (os nomes dessas entidades e desses seres), seja o conceito noológico mais "refinado" (a abstração filosófica hiperônima - "sagrado" [como referência hiperônima ao conjunto dos seres noológicos]) - tudo isso é invenção humana, que a FR leva a sério na (sua) tarefa de compreender o fenômeno religioso, para o que não pode, não deve, nem precisa, "crer" nessas interpretações. Aliás, "crer" nelas é tornar-se, por isso, imprestável para analisá-las.

7. Não, a FR não é atéia - não se trata de ateísmo metodológico. Muito menos é ela teísta (ou algo que o valha: deísta, animista, panteísta etc.). A FR é cética - metafisicamente, miticamente, mitologicamente cética. Emancipada, retrucaria Jimmy. Sim, Jimmy, nesse sentido, sim. O que quer que os homens e as mulheres digam, não se trata de crer e de descrer, mas de, ceticamente, tomar tais dizeres dados, informações, com os quais se há - função da FR - de construir um quadro teórico-metodológico, a partir do qual se pode encetar ensaios de interpretação científico-humanista do fenômeno-religioso.

8. Há que se escrever um Manual de Fenomenologia da Religião vacinado contra a Teologia. É urgente a demanda.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

(2008/26) Homo faber e cosmogonia


1. Convido à imaginação da "teologia" como o teria sido antes das monarquias. Os deuses - desde onde sairá também o "cristão" - não eram, então, certamente, monarcas. Imaginar como seriam constitui uma das reflexões constituintes da tarefa da Fenomenologia da Religião - que tem instrumentos interessantes para isso (cf. o Tratado de História das Religiões, de Mircea Eliade).

2. Entretanto - a monarquia não é a única invenção humana que contaminou, e para sempre, a "teologia". Ora, os primeiros homens e mulheres, quando se deram conta de serem homens e mulheres, depararam-se com um mundo "dado" - pronto, acabado. Ambíguo, porque ora se comporta de modo bom (a caça!), ora, de modo péssimo (o predador!), esse "mundo", contudo, não demanda questões metafísicas dessa natureza, por si só.

3. Até que o primeiro homem, a primeira mulher, fabricaram seu mundo: seus instrumentos, suas "casas", suas cidades. Nesse momento, imediatamente, os "deuses" tornaram-se, também eles, como nunca o haviam sido, "criadores", construtores... O Homo faber inventou a cosmogonia. Também aqui Feuerbach tem toda a razão.

4. Apenas uma inquietação: o parto humano - terá ele influenciado, de algum modo, e antes do Homo faber, a "teologia"? Terão os deuses - as deusas - "sido" Mães, antes que os deuses, por sua vez, viessem a tornar-se "construtores", "criadores"? Haverá, nessa inquietação, alguma coisa de histórico, quero dizer, no fato de que a emergência do Homo faber teria feito submergir um continente inteiro de "hierofanias" ginecológicas? Sim, as "Mães", parturientes divinas, sobreviveram, porque, afinal, o parto é endemicamente humano - mas à sombra da força inexorável da onda civilizatória, cosmogônica, e, a essa altura, contra-ecológica.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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