A. Epígrafe a posteriori - I - "Agora não há desculpas. Um bando de desavisados assumiu a direção de instituições financeiras e transformaram propriedades imobiliárias em meros registros contábeis. Multiplicaram garantias reais ao infinito e no infinito encontraram o nada (...) Dilapidou-se a confiança, base fundamental do capitalismo" (Cláudio Lembo, E as lições do John Bunyan?).
B. Epígrafe a posteriori - II - "A crise não está na economia real" (Profª Drª Maria Conceição Tavares [Reuters/Nassif]).
C. Epígrafe a posteriori - III - "uma economia que se revela agora fantasma" (Boaventura de Sousa Santos, na CARTA MAIOR [link no Azenha])
1. Não quero, aqui, levantar nenhuma "tese". Trata-se apenas de uma percepção. Nos últimos dias, vimos acentuar-se o risco ou o princípio do fenômeno de dissolvição da "bolha" financeira internacional, cujo epicentro encontra-se, naturalmente, nos EUA. No olho do furacão, encontra-se o fato de que a economia, tal como se desenvolve há algumas décadas, baseia-se numa meta-realidade. A "riqueza", contada em trilhões de dólares, não encontra "lastro" no mundo "real", mas apenas em derivativos, de derivativos, de derivativos. Riqueza metafísica, que, na ponta, converte-se em riqueza econômica. Enquanto se crer.
2. Trata-se de um gigantesco, descomunal castelo de cartas - se a primeira cai, caem todas as que se sustentam nela, logo, cai todo o castelo. Porque grande parte dessa "riqueza" simplesmente não existe na "realidade" - ela consiste numa sucessão de sustentações "metafísicas", geradas pelo jogo de valor que se aplica a garantias que, a rigor, não garantem nada. Apenas valem enquanto se crer.
3. No caso estadunidense, por exemplo, garantias hipotecárias super-avaliadas sustentavam uma "ciranda" de derivativos que, dissolvida a base, dissolve-se cadeia a cadeia, elo a elo, chegando aos grandes - Merrill Lynch, Lehman, AIG e os próximos da fila. Toda a cadeia financeira baseada na metafísica do valor financeiro, encontra-se, agora, sob severo risco.
4. O que me chamou a atenção é que esse é o país, os EUA, de Richard Rorty, pai do "pragmatismo", para quem o "real" não existe, e, se existe, é desprezível, uma vez que as relações humanas dão-se por "consensos lingüísticos descolados". A vida, diz Rorty, não passa de jogo de palavras - o conhecimento não é uma questão de saber lidar com a realidade, mas de saber jogar com as palavras. No fundo, um cinismo disfarçado em teoria filosófica. Quase um deboche, eu diria.
5. E contudo, é exatamente assim que a metafísica financeira se construiu. Do lastro baseado em ouro, saltou-se para o dólar, e, daí, para valores e garantias cada vez mais etéras e ectoplasmáticas. No momento, assistimos à crise econômico-financeira internacional, que, a rigor, é, de um lado, uma crise de fé - já que as garantias são metafísicas, e não existem no mundo real, de modo que, dando-se conta da imaterialidade da "riqueza", a teologia se esgarça -, bem como, de outro, uma crise material: a absoluta falta de lastro ponderável para o sopesamento dos valores empenhados no jogo. Não diria que os jogadores blefavam o tempo todo, esse tempo todo em que vendiam derivativos, compravam derivativos. Jogavam um jogo "real", cuja regra, contudo, era jogar com coisas irreais, imateriais. Jogar com a fé.
6. O bolso dói. Talvez a comunidade internacional aprenda a lição e re-organize as bases da economia. Como, no entanto, a "fé" religiosa não passa de um véu hermenêutico sobre o real, que tolera, inclusive, a esquizofrenia de viver em mundos irreconciliáveis, malgrado o século XIX ter-nos ensinado, a nós, teólogos, que nossas doutrinas "não passam de" coisas imaterais e sem substância, a nós tanto faz - damos de ombro, tomamos o irreal pelo real, e vamos em frente.
7. Não vejo, à frente, sinais de que, nós teólogos, nos emendaremos, de que levaremos a sério as transformações culturais que nós mesmos, protestantes, engendramos, desde a Reforma. Nós, pais das Ciências Humanas, da Secularização, da Modernidade, detestamos a idéia de levar a sério o que nós mesmos criamos. E, como saída, enfiamo-nos no quarto escuro da teologia medieval, esperando que passe o furacão, e voltemos a contar nossos derivativos teológicos. Nossa segurança, cremos, não está em sustentarmo-nos com os pés no chão - está em que todos entrem na ciranda da fé, que todos comprem nossos títulos, que todos aceitem a nossa loucura.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
B. Epígrafe a posteriori - II - "A crise não está na economia real" (Profª Drª Maria Conceição Tavares [Reuters/Nassif]).
C. Epígrafe a posteriori - III - "uma economia que se revela agora fantasma" (Boaventura de Sousa Santos, na CARTA MAIOR [link no Azenha])
1. Não quero, aqui, levantar nenhuma "tese". Trata-se apenas de uma percepção. Nos últimos dias, vimos acentuar-se o risco ou o princípio do fenômeno de dissolvição da "bolha" financeira internacional, cujo epicentro encontra-se, naturalmente, nos EUA. No olho do furacão, encontra-se o fato de que a economia, tal como se desenvolve há algumas décadas, baseia-se numa meta-realidade. A "riqueza", contada em trilhões de dólares, não encontra "lastro" no mundo "real", mas apenas em derivativos, de derivativos, de derivativos. Riqueza metafísica, que, na ponta, converte-se em riqueza econômica. Enquanto se crer.
2. Trata-se de um gigantesco, descomunal castelo de cartas - se a primeira cai, caem todas as que se sustentam nela, logo, cai todo o castelo. Porque grande parte dessa "riqueza" simplesmente não existe na "realidade" - ela consiste numa sucessão de sustentações "metafísicas", geradas pelo jogo de valor que se aplica a garantias que, a rigor, não garantem nada. Apenas valem enquanto se crer.
3. No caso estadunidense, por exemplo, garantias hipotecárias super-avaliadas sustentavam uma "ciranda" de derivativos que, dissolvida a base, dissolve-se cadeia a cadeia, elo a elo, chegando aos grandes - Merrill Lynch, Lehman, AIG e os próximos da fila. Toda a cadeia financeira baseada na metafísica do valor financeiro, encontra-se, agora, sob severo risco.
4. O que me chamou a atenção é que esse é o país, os EUA, de Richard Rorty, pai do "pragmatismo", para quem o "real" não existe, e, se existe, é desprezível, uma vez que as relações humanas dão-se por "consensos lingüísticos descolados". A vida, diz Rorty, não passa de jogo de palavras - o conhecimento não é uma questão de saber lidar com a realidade, mas de saber jogar com as palavras. No fundo, um cinismo disfarçado em teoria filosófica. Quase um deboche, eu diria.
5. E contudo, é exatamente assim que a metafísica financeira se construiu. Do lastro baseado em ouro, saltou-se para o dólar, e, daí, para valores e garantias cada vez mais etéras e ectoplasmáticas. No momento, assistimos à crise econômico-financeira internacional, que, a rigor, é, de um lado, uma crise de fé - já que as garantias são metafísicas, e não existem no mundo real, de modo que, dando-se conta da imaterialidade da "riqueza", a teologia se esgarça -, bem como, de outro, uma crise material: a absoluta falta de lastro ponderável para o sopesamento dos valores empenhados no jogo. Não diria que os jogadores blefavam o tempo todo, esse tempo todo em que vendiam derivativos, compravam derivativos. Jogavam um jogo "real", cuja regra, contudo, era jogar com coisas irreais, imateriais. Jogar com a fé.
6. O bolso dói. Talvez a comunidade internacional aprenda a lição e re-organize as bases da economia. Como, no entanto, a "fé" religiosa não passa de um véu hermenêutico sobre o real, que tolera, inclusive, a esquizofrenia de viver em mundos irreconciliáveis, malgrado o século XIX ter-nos ensinado, a nós, teólogos, que nossas doutrinas "não passam de" coisas imaterais e sem substância, a nós tanto faz - damos de ombro, tomamos o irreal pelo real, e vamos em frente.
7. Não vejo, à frente, sinais de que, nós teólogos, nos emendaremos, de que levaremos a sério as transformações culturais que nós mesmos, protestantes, engendramos, desde a Reforma. Nós, pais das Ciências Humanas, da Secularização, da Modernidade, detestamos a idéia de levar a sério o que nós mesmos criamos. E, como saída, enfiamo-nos no quarto escuro da teologia medieval, esperando que passe o furacão, e voltemos a contar nossos derivativos teológicos. Nossa segurança, cremos, não está em sustentarmo-nos com os pés no chão - está em que todos entrem na ciranda da fé, que todos comprem nossos títulos, que todos aceitem a nossa loucura.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
6 comentários:
Grande mestre Osvaldo! É muito bom ler suas palavras novamente...
Agora, me diga uma coisa: pra que eu não fique aqui, perdido entre o deboche (estou mais para o deboche, mesmo) e os derivativos, ofereça-me uma saída!
Taí um problema que só se resolve vivendo! Um abração!
Oi, Pedro (não consegui identificar "qual" PEDRO).
Não entendi bem sua mensagem - nem a referência a "deboche", nem o pedido de "saída". e esclarecer-me, respondo.
Um abraço,
Osvaldo.
Então vamos lá...
O Pedro é o Veiga.
O deboche é o pragmatismo de Rorty.
A saída é a alternativa entre o subjetivismo que não quer apontar direções e o objetivismo que julga conhecer todas as respostas.
A ironia é a impossibilidade de se encontrar tal alternativa por meio da linguagem, que se presta mesmo é para o ceticismo e para fins políticos. A alternativa estaria, portanto, não no campo do discurso, mas sim da prática.
Mas isso já é dizer demais.
Outro abraço!
Graaande Pedro - soube que voltaste para os planos da carreira diplomática. É verdade?
Quanto à saída "prática" - ué? E ela se dá, essa "prática" da prática pela prática, sem articulação com a teoria? Quem decide o passo? O DNA? O "momento"? O "instinto"? Mas isso é Rorty!
Há um texto de Edgar Morin sobre isso. Eu o citei e comentei aqui (http://peroratio.blogspot.com/2008/09/200817-do-pndulo-e-da-prxis.html).
Concordo com Morin: não há "saída", apenas a articulação ininterrupta entre "teoria" e "prática", e aquele momento - o "risco da ação", o risco ecológico da ação...
Por outro lado, há como aprofundarmos, sim, a questão, por meio da reflexão sobre a PRAGMÁTICA (http://www.ouviroevento.pro.br/teologicofilosoficos/pragmatica.htm), retornando a Kant e a Peirce (contra o "pragmatismo" de Rorty) (http://www.ouviroevento.pro.br/teologicofilosoficos/Viver_hermeneuticamente.pdf).
Você precisará resolver essa "aporia", meu amigo diplomata! Aliás, como todos nós - porque, em termos políticos, essa é "a" aporia.
Um abraço fraterno,
Osvaldo.
Osvaldo,
Que texto incrível.
Esse paralelo das crises é bárbaro!
Já li umas 3 vezes, e a cada nova leitura novos mergulhos.
Sempre muito bom te ler!
A propósito, estou com um blog para reunir algumas coisas que escrevo.
Se um dia, ao invés do mergulho em águas profundas, quiseres beber com mão de uma fonte mais acessível,porém com água fresca, apareça por lá.
stellajunia.blogspot.com
grande e saudoso abraço
Stella
Obrigado, Stella. Nem eu sabia que dava pra dar tantos mergulhos nele!
Quanto à profundidade, nem me fale disso! Lembra-se dos "ribeiros rasos"? Você estava lá, menina :o) - e éramos dois os ribeiros...
Já leu o Sobre Ribeiros Rasos, na www.ouviroevento.pro.br?
Vou lá no seu blog dar uma passeada.
Um abraço, e obrigado pela visita...
Osvaldo Luiz Ribeiro
Postar um comentário