1. No ano de 1984, Croatto publicava Hermeneutica Biblica. Entre nós, latino-americanos, o livrinho foi tão famoso quanto o monumento de Norman K. Gottwald, As Tribos de Yahweh. Porém, enquanto Gottwald defendia uma interpretação histórico-social da Bíblia Hebraica, Croatto afirmava, sem dó, que, "en el texto desaparece el emisor original" (p. 23), e, assim como Nietzsche anunciara a morte de "Deus", Croatto testifica a morte do "homem" - "el autor (...) 'muere' en el acto mismo de codificar su mensaje". Schleiermacher - certamente! - não teria ficado muito contente com a proposição: nem eu fiquei, ainda que ela se encontre, por exemplo, também em outro "monstro sagrado" da semiótica - Umberto Eco, em Interpretação e Superinterpretação.
2. Croatto "matara" escritor e receptor/receptores originais - "tampoco el interlocutor primeiro está presente" (p. 23). O "evento" original "desvanece-se" (o termo "ouviroevento", de minha página, é, naturalmente, uma contra-proposição à luz dessa assertiva "hermenêutica"). O coupe fatale de Croatto guarda-se para o último capítulo - "Exégesis y eiségesis". Aí, a pesquisa heurística converte-se inescapavelmente em ideologia - em "práxis": "la exégesis es eiségesis al mismo tiempo" (p. 74). Na seqüência, defende-se a "lectura política" feita pela "teología de la liberación" de críticas no campo "hermenêutico": "se quiere 'clausurar' una lectura porque su lugar es ocupado por otra lectura del mismo signo pero con contenidos distintos" (p. 74-75). Bem se vê - todo o livrinho constitui um libelo político. Uma defesa/apologia da "produção de sentido - entenda-se bem: da produção "programática" de sentido.
3. Nunca me senti à vontade com "esse" Croatto. Sempre "cri" na possibilidade da "exegese", o que me valeu, e, eventualmente, ainda vale, classificações freudianas de "positivista". Equívoco: positivista, não, ginzburguiano, losurdoniano, detienneiano. Seja como for, "outro" é o Croatto dos comentários a Isaías. Ora, ali, ele tenta recuperar - e x e g e t i c a m e n t e - o processo de "releitura" que as comunidades judaicas teriam aplicado à memória/recepção dos oráculos de Isaías. Ora, para que Croatto apontasse a "releitura", ele teria de, primeiro, crer que ressuscitava tanto o "Isaías" relido, quanto as comunidades que o reliam. E, de fato, pretendeu tê-lo feito. É, mesmo, uma excelente coleção - que recomendo: ao contrário do Hermentica Biblica, exceto para fins de pesquisa da história política da hermenêutica latino-americana.
4. O Croatto de Isaías não é - mais - o Croatto do Hermeneutica Biblica. O que terá acontecido entre um e outro? Eis uma pista: "a polissemia é uma característica do símbolo (...) e esta polissemia é encerrada no mito. De que maneira? A estrutura lingüística narrativa do mito faz com que ele seja um 'dizer algo sobre alguma coisa a alguém' (...). Portanto, a intenção da linguagem não pode ser difusa e ambígua, mas unívoca" (CROATTO, As Linguagens da Experiência Religiosa, p. 236). Ora, ora, ora - Croatto me surpreende aqui. Ele trata - acertadamente! - o mito como narrativa: "o mito é um texto. Ele pertence, portanto, à ordem literária e deve ser interpretado como discurso. Como texto, o mito pretende 'dizer algo para alguém a respeito de alguma coisa', ou seja, existem quatro elementos em uma súbita interrelação: um emissor e seu destinatário, uma realidade e o que se diz sobre ela, isto é, sua interpretação. O 'algo a respeito de alguma coisa', que é a vivência inicial do emissor, é transferido a outros ('para alguém'). Isso manifesta a função social do discurso, bem como de toda palara humana" (p. 210). Ora, ora, ora. Em 1984, Croatto matara o(s) autor(es) e o(s) destinatário(s) - agora, em 1994, ele os ressuscita! Mais do que isso - e, em termos "hermenêuticos", isso equivale a uma transposição teórico-metodológica hiperbólica: Croatto transforma - a meu ver, acertadamente - "texto" em "discurso", em "fala" humana.
5. E esse discurso, essa fala, enquanto fala e discurso ainda consubstanciados no "texto", são necessariamente unívocos. Querer aproximar-se deles - texto, fala, discurso - sem levar isso em conta - constitui, logo, improcedência teórico-metodológica. Ora, ora, ora, a Fenomenologia da Religião - permitam-me dizê-lo - devolveu a "sanidade" a Croatto: há que se distinguir entre projetos políticos e heurísticos. A exegese, eventualmente, pode deixar-se contratar, a certo preço, por projetos ideológicos - seja de esquerda (o risco da TdL), seja de direita (o das teologias ainda medievais, posto que metafísico-ontológicas, tanto quanto o das pós-modernas, de estilo "metafórico"). A Exegese, contudo, sabe-se filha da História. O ponto onde Exegese e História se encontram é aquele em que se concentram as necessidades de, arqueologicamente, desenterrar o passado, e isso por meios dos indícios (Ginzburg, Sinais - raízes de um paradigma indiciário) desde lá sobrevindos a nós. Sempre de forma teórico-metodológica, por meio da "fabricação" de hipóteses de trabalho" e da sua verificação por meio da retórica e da plausibilidade (Ginzburg, Relações de Força).
6. No campo "bíblico" (a rigor, no que diz respeito a qualquer literatura "sagrada"), o ponto onde História e Exegese se encontram traduz-se pela Fenomenologia da Religião. Aquele que eu considero o maior tratado de Fenomenologia da Religião (que eu tenha lido, claro) não se chama Tratado de História das Religiões à toa, e não é à toa que esse tratado apresenta como fundamental para a disciplina o conceito de "documento" - os testemunhos histórico-traditivos recolhidos pela História. Ora, o conceito de "documento" (FR), o de "indícios" (História) e o de "texto" (Exegese) são o mesmo conceito, porque cada uma dessas especialidades traduz uma face do mesmo olhar - o olhar da "investigação", que, não sem razão, Ginzburg associa, analogicamente, à figura de Sherlock Holmes: o paradigma indiciário.
7. O Croatto da Fenomenologia da Religião, quando decidiu-se a enveredar-se pela FR, pela pesquisa do "mito", teve de abrir mão do discurso "político", e investiu na construção de uma plataforma teórico-metodológica "heurística". Pura? Livre - absolutamente - de ideologia? Não. Nada o é. Mas toda e qualquer práxis heurística deve ter por alvo o máximo de imparcialidade, o máximo de honestidade. A comunidade de interpretação deve servir de agente crítico - exatamente aquilo em que me constituo diante do "projeto" do Hermenutica Biblica, e aquilo que, sem o confessar, também Croatto empunhou, contra si mesmo, quando enamorou-se da pesquisa. A esse Croatto, meus mais sinceros reconhecimentos, minha mais sincera gratidão. É na seqüência de seus passos que desejo eu mesmo dar os meus.
Osvaldo Luiz Ribeiro
2. Croatto "matara" escritor e receptor/receptores originais - "tampoco el interlocutor primeiro está presente" (p. 23). O "evento" original "desvanece-se" (o termo "ouviroevento", de minha página, é, naturalmente, uma contra-proposição à luz dessa assertiva "hermenêutica"). O coupe fatale de Croatto guarda-se para o último capítulo - "Exégesis y eiségesis". Aí, a pesquisa heurística converte-se inescapavelmente em ideologia - em "práxis": "la exégesis es eiségesis al mismo tiempo" (p. 74). Na seqüência, defende-se a "lectura política" feita pela "teología de la liberación" de críticas no campo "hermenêutico": "se quiere 'clausurar' una lectura porque su lugar es ocupado por otra lectura del mismo signo pero con contenidos distintos" (p. 74-75). Bem se vê - todo o livrinho constitui um libelo político. Uma defesa/apologia da "produção de sentido - entenda-se bem: da produção "programática" de sentido.
3. Nunca me senti à vontade com "esse" Croatto. Sempre "cri" na possibilidade da "exegese", o que me valeu, e, eventualmente, ainda vale, classificações freudianas de "positivista". Equívoco: positivista, não, ginzburguiano, losurdoniano, detienneiano. Seja como for, "outro" é o Croatto dos comentários a Isaías. Ora, ali, ele tenta recuperar - e x e g e t i c a m e n t e - o processo de "releitura" que as comunidades judaicas teriam aplicado à memória/recepção dos oráculos de Isaías. Ora, para que Croatto apontasse a "releitura", ele teria de, primeiro, crer que ressuscitava tanto o "Isaías" relido, quanto as comunidades que o reliam. E, de fato, pretendeu tê-lo feito. É, mesmo, uma excelente coleção - que recomendo: ao contrário do Hermentica Biblica, exceto para fins de pesquisa da história política da hermenêutica latino-americana.
4. O Croatto de Isaías não é - mais - o Croatto do Hermeneutica Biblica. O que terá acontecido entre um e outro? Eis uma pista: "a polissemia é uma característica do símbolo (...) e esta polissemia é encerrada no mito. De que maneira? A estrutura lingüística narrativa do mito faz com que ele seja um 'dizer algo sobre alguma coisa a alguém' (...). Portanto, a intenção da linguagem não pode ser difusa e ambígua, mas unívoca" (CROATTO, As Linguagens da Experiência Religiosa, p. 236). Ora, ora, ora - Croatto me surpreende aqui. Ele trata - acertadamente! - o mito como narrativa: "o mito é um texto. Ele pertence, portanto, à ordem literária e deve ser interpretado como discurso. Como texto, o mito pretende 'dizer algo para alguém a respeito de alguma coisa', ou seja, existem quatro elementos em uma súbita interrelação: um emissor e seu destinatário, uma realidade e o que se diz sobre ela, isto é, sua interpretação. O 'algo a respeito de alguma coisa', que é a vivência inicial do emissor, é transferido a outros ('para alguém'). Isso manifesta a função social do discurso, bem como de toda palara humana" (p. 210). Ora, ora, ora. Em 1984, Croatto matara o(s) autor(es) e o(s) destinatário(s) - agora, em 1994, ele os ressuscita! Mais do que isso - e, em termos "hermenêuticos", isso equivale a uma transposição teórico-metodológica hiperbólica: Croatto transforma - a meu ver, acertadamente - "texto" em "discurso", em "fala" humana.
5. E esse discurso, essa fala, enquanto fala e discurso ainda consubstanciados no "texto", são necessariamente unívocos. Querer aproximar-se deles - texto, fala, discurso - sem levar isso em conta - constitui, logo, improcedência teórico-metodológica. Ora, ora, ora, a Fenomenologia da Religião - permitam-me dizê-lo - devolveu a "sanidade" a Croatto: há que se distinguir entre projetos políticos e heurísticos. A exegese, eventualmente, pode deixar-se contratar, a certo preço, por projetos ideológicos - seja de esquerda (o risco da TdL), seja de direita (o das teologias ainda medievais, posto que metafísico-ontológicas, tanto quanto o das pós-modernas, de estilo "metafórico"). A Exegese, contudo, sabe-se filha da História. O ponto onde Exegese e História se encontram é aquele em que se concentram as necessidades de, arqueologicamente, desenterrar o passado, e isso por meios dos indícios (Ginzburg, Sinais - raízes de um paradigma indiciário) desde lá sobrevindos a nós. Sempre de forma teórico-metodológica, por meio da "fabricação" de hipóteses de trabalho" e da sua verificação por meio da retórica e da plausibilidade (Ginzburg, Relações de Força).
6. No campo "bíblico" (a rigor, no que diz respeito a qualquer literatura "sagrada"), o ponto onde História e Exegese se encontram traduz-se pela Fenomenologia da Religião. Aquele que eu considero o maior tratado de Fenomenologia da Religião (que eu tenha lido, claro) não se chama Tratado de História das Religiões à toa, e não é à toa que esse tratado apresenta como fundamental para a disciplina o conceito de "documento" - os testemunhos histórico-traditivos recolhidos pela História. Ora, o conceito de "documento" (FR), o de "indícios" (História) e o de "texto" (Exegese) são o mesmo conceito, porque cada uma dessas especialidades traduz uma face do mesmo olhar - o olhar da "investigação", que, não sem razão, Ginzburg associa, analogicamente, à figura de Sherlock Holmes: o paradigma indiciário.
7. O Croatto da Fenomenologia da Religião, quando decidiu-se a enveredar-se pela FR, pela pesquisa do "mito", teve de abrir mão do discurso "político", e investiu na construção de uma plataforma teórico-metodológica "heurística". Pura? Livre - absolutamente - de ideologia? Não. Nada o é. Mas toda e qualquer práxis heurística deve ter por alvo o máximo de imparcialidade, o máximo de honestidade. A comunidade de interpretação deve servir de agente crítico - exatamente aquilo em que me constituo diante do "projeto" do Hermenutica Biblica, e aquilo que, sem o confessar, também Croatto empunhou, contra si mesmo, quando enamorou-se da pesquisa. A esse Croatto, meus mais sinceros reconhecimentos, minha mais sincera gratidão. É na seqüência de seus passos que desejo eu mesmo dar os meus.
Osvaldo Luiz Ribeiro
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