1. Dos nomes que Paulo arrolou em sua lista, o de Marie-Louise Von Franz é o mais surpreendente, porque não se poderia dizer, sem mais nem menos, que Marie-Louise Von Franz tenha sido uma "teóloga". Pelo menos tanto quanto não o foi Carl Gustav Jung, com quem trabalhou por muitos anos no Instituto que leva o nome do seu antigo mentor. Van Franz tornou-me assim, uma psicóloga analítica, ligada à psicologia profunda, de Jung, pesquisadora da alquimia e da simbologia onírica, bem como, naturalmente, dos símbolos em geral. Escreveu muito, grande parte de suas obras constituindo a publicação de conferências. Aos oitenta e três anos, faleceu em 1998. Não conheço outra, de modo que deve ser a essa Marie-Louise von Franz que Paulo se refere. No mínimo, uma "teólogo" sui generis...
2. Não se há de querer que eu me julgue competente para falar sobre a obra de Marie-Louise Von Franz. Não o sou. Posso, quando muito, traçar um muito abreviado paralelo entre sua abordagem (junguiana) e a Fenomenologia da Religião, de Eliade, com quem me identifico.
3. Desde os séculos XVIII e XIX, processo cujo ápice se dá no XX, resultado do "encontro" entre a Europa e os "antigos" mundos - América, Ásia, África, Oceania -, uma quantidade incomensurável de tradições, imagens, contos, costumes, ritos, mitos, símbolos de povos antigos e contemporâneos invadiu a cultura ocidental. Logo, esse material foi sistematizado e reunido em verbetes classificatórios. Por trás de uma multiplicidade inimaginável de elementos, revelava-se um padrão, a que podiam ser alocadas inúmeras atualizações culturais específicas: na superfície, multiplicidade, sob a superfície, unidade.
4. Conheço duas formas de lidar com esse material, explicando-o. Jung aproximou-se do fenômeno, postulando a existência de um inconsciente coletivo, uma "grande alma da humanidade" operando por debaixo da aparente manifestação concreta das consciências individuais. Os homens e as mulheres, por mais que se julgassem ímpares, sujeitos de si, individualidades invioláveis, constituíam, quando muito, emergências pontuais da mesma dimensão imaterial e inconsciente. Sendo assim, não era difícil explicar, sob um único regime hermenêutico, a "unidade" por trás da "variedade". A "variedade" é da condição da história, dimensão própria das individualidades aparentes humanas. Por sua vez, a "unidade" constitui a verdadeira natureza da alma inconsciente humana, dessa grande superfície submersa, à qual estão ligados, indissociavelmente, todos os seres humanos. Não será por mera coincidência que os modernos sistemas esotéricos postularão essa dimensão unitária e espitirual como base mesmo do Universo. As cosmogonias egípcias, há três, quatro mil anos, já haviam chegado à mesma formulação.
5. De posse do mesmo material, Mircea Eliade há de construir um outro modelo explicativo, que me "encanta" mais. Segundo a fenomenologia religiosa eliadiana, durante sua longa história, de milênios, os homens depararam-se com situações sempre inicialmente inexplicáveis, mas que, dada a condição da consciência hermenêutica de que são dotados, demandavam-lhes "explicações". Tais explicações são, sempre, da ordem do mito e da cosmovisão, porque demandam antecipações hermenêuticas de outro modo inexequíveis. O processo antropológico da interpretação, segundo Eliade, obedeceria a dois princípios fundamentais - um, psicológico, e, outro, ecológico. Ou seja, as interpretações humanas - que Eliade circunscreveu programaticamente àquelas relacionadas à dimensão religiosa ou dita "do sagrado" - prendem-se a uma confluência de variáveis finitas próprias a) da cultura humana e b) do nicho ecológico em que vive o ser humano.
6. Por exemplo, quando Eliade detalhará o modo como os homens antigos formularam os inúmeros conceitos de divindade, é descrito como sendo elaborados sempre a partir das características peculiares dos objetos naturais a que a intuição dessa divindade se havia ligado - assim, em todo o planeta, não importam o tempo, o lugar e a cultura, sempre houve deuses telúricos, uranianos, oceânicos, líticos, agrícolas, botânicos, zoológicos, fluviais, pluviais, ctônicos etc. Uma vez que os objetos-matriz, catalizadores das hierofanias ("manifestação do 'sagrado'") são limitados, em milênios e milênios, o conjunto dessas operações hermenêuticas tende a uma variedade uniforme. Além disso, dentro de cada variação limitada, as características dessa "divindade" eram sempre as mesmas, fosse ela uma divindade tupi-guarani, fosse ela uma divindade maori, desde que relacionada à mesma materializade ecológica - a abóbada celeste, por exemplo. Esse fenômeno explicaria a semelhança impressionante, por exemplo, entre determinadas representações de Ogun, na África, e algumas das mais representações de Yahweh, na Bíblia Hebraica. Não é que uma "alma" subliminar manifeste-se aí - é que a história da construção de ambas representações respondem pelos mesmos critérios ecológicos: a montanha, a tempestade.
7. O modelo de Eliade não tende a um estruturalismo desindividualizante, como o modelo junguiano. Segundo o modelo junguiano - por extensão, de Marie-Louise Von Franz -, os homens e as mulheres não são os verdadeiros operadores dos processos cognitivos. A "verdadeira" história humana é "outra" história... A superfície da consciência humana é, apenas, uma espécie de "capa", dispensável, sob a qual corre a lava da "alma" subliminar da espécie. Segundo o modelo eliadiano, ao contrário: ainda que sob regimes biológicos-psicológicos limitados e específicos, inclusive estruturalmente paderonizados, nesse sentido, determinantes da potencialidade aberta do sistema, enquanto potência, é cada homem e cada mulher que, ecologicamente, enquanto agentes atualizadores daquelas potências biológico-psicológicas, operam os sitemas hermenêuticos fundamentais para sua inserção no cosmos. Sem o sistema, homens e mulheres são inoperantes - mas o sistema não é, por si mesmo, operativo. Ele sequer sabe de si.
8. Não diria que não gosto de Jung. Diria que me sinto desconfortável diante dele, porque sua metodologia não me parece refutável - logo, ela incorre naquele problema geral das não-ciências. Já o modelo eliadiano é perfeitamente "histórico", ecológico, não-metafísico, além do que é sobejamente confirmado pela epistemologia complexa de Edgar Morin, que estabelece um papel fundamental para a "situação" ecológica das rotinas hermenêuticas dos sujeitos vivos, mormente os humanos. O que não significa que não haja aspectos relevantes na psicologia junguiana - o desbravamento do continente da insconsciência humana, por exemplo. Mesmo Morin recorre a Jung, nesse aspecto.
9. Para terminar, uma ilustração do risco que percebo nas abordagens da psicologia profunda. A Paulus publicou recentemente Mitos de Criação, de Marie-Louise Von Franz. Do mito, aí, se diz: "todos os povos têm seus próprios mitos a respeito de suas origens e da estrutura fundamental de sua existência. É claro que nenhum deles presenciou o que relatam nesses mitos. O sentido fundamental não é externo, mas interno: um retrato metafórico que relata a origem e a estrutura fundamental da consciência daquele povo dentro da situação geográfica, climática, histórica e moral (ethos, ou costumes sancionados coletivamente pelo grupo). Assim, os mitos não apresentam realidades exteriores. Ao contrário, apresentam simbolicamente a alma do povo" (Marie-Louise Von Franz, Mitos de Criação. São Paulo: Paulus, 2003).
10. Chamo a atenção para a seguinte fórmula: "os mitos (...) apresentam simbolicamente a alma do povo". Esse é o tipo de risco que vejo correrem as metodologias "psicológico-analíticas" de modo geral, em particular as junguianas. Talvez elas se esqueçam que não há intencionalidade senão na consciência humana individual. Um "povo" não tem alma. Um povo sequer existe. Um povo constitui uma abstração cognitiva, uma representação noológica de uma grandeza ecológica. Todavia, isso que o conceito noológico chama de "povo" só o é em particularíssimas dimensões - geopolíticas, por exemplo. Mas não há, aí, nada que se possa comparar a um "organismo" com uma única alma, um único sentimento, uma única atitude, uma única percepção. Não existe um povo brasileiro, mas vários, assim como não existe povo algum no planeta. O "pecado" das psicologias analíticas de modo geral é político - eles são programaticamente a-políticos. Não há conflitos entre homens, apenas conflitos internos a cada ser humano. É o "pecado" gravíssimo das abordagens do real por meio de chaves simbólicas.
11. Quando rotinas explicativas - psicológico-analíticas, filosóficas, teológicas - tomam a abstração conceitural (o conceito "povo") no lugar da grandeza histórica sob análise (o conjunto de seres humanos ecologicamente e culturalmente situados), cai-se num idealismo mais ou menos próximo-platônico que leva à perdição toda e qualquer objetividade. Não é muito diferente, por exemplo, da tentativa de Gerhard von Rad de levantar as "tradições de Israel" - mas, von Rad, alto lá!: de que Israel você fala? Só há um modo, e apenas um, de reduzirmos um povo a uma singularidade expressiva - fenômenos políticos, como Nicéia, por exemplo, ou Ml 2,7. Além da política de submeter todos a uma só expressão, o que resta, concretamente, é um inúmerável conjunto de pessoas que, a despeito dos limites materiais e históricos de expressão, formulam-se e expressam-se a partir de sua individualidade - seja, inclusive, porque assim o fazem, heteronomamente. Daí provém, inclusive, as potencialidades revlucionárias da espécie e da história humanas.
12. Que cada ser humano tenha lá a sua "alma", isso lá é provável, conquanto não-refutável, e, de qualquer modo, nenhuma diferença faz, se a aproximação antropológica não se constituir por meio de um dualisto platônico, mas formular-se por meio de um conceito monista e orgânico da "vida". Agora, que a humanidade, toda, tenha, ela, uma "alma" - seja essa alma em que sentido for, isso me parece muito, muito mitológico. E mitológico de um jeito que faz de mim uma ilusão daquela mesma alma. Isso, Marie-Louise Von Franz, isso eu não posso aceitar. Tome-se, que seja, essa atitude minha como pirraça de criança rebelde...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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