1. Trata-se de um livro que registra uma longa conversa/entrevista entre Mircea Eliade e Claude-Henri Rocquet, publicado, em Paris, em 79, e, em Madri, em 1980: Mircea Eliade e Claude-Henri Rocquet, La prueba del laberinto: conversaciones con Claude-Henri Rocquet. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1980. Como tudo quanto Eliade disse e escreveu, a leitura dessa obra há de proporcionar, além de agradáveis, instrutivos momentos. Nele, por exemlo, fico sabendo que Eliade e Jung foram amigos, o que deve exercer a força de alguma precaução quanto ao que escrevi anteriormente, que, contudo, penso ainda ser procedente.
2. O que me traz a Peroratio é a seção "Desmitificar la desmitificación" (p. 128-134). A questão que Claude-Henri Rocquet propõe a Eliade é aquela própria das abordagens de Marx, Freud e do "estruturalismo", por exemplo, de um Lévi-Strauss, em face das culturas antigas, principalmente em relação ao seu espectro fenomenológico-religioso. Eliade tecerá algumas críticas às rotinas "desmitificadoras" das abordagens das Ciências Humanas. Dirá, por exemplo, que se trata de uma tarefa "fácil" reduzir as formas "primitivas" de compreensão aos seus elementos sociais, políticos, econômicos, dissolvendo suas criações culturais nos termos da crítica moderna.
3. Quanto a isso, Eliade afirma que a tarefa desse tipo de abordagem não deveria ser a simples desmitificação, uma desmitificação por simples desmitificação, o que não levaria a nada, mas, sim, a pergunta pela razão intrínseca de os povos - primitivos e contemporâneos - elaborarem teologias, cosmogonias, ritos, sistemas simbólicos de referência, para situarem-se no mundo. Nada mais adequado, eu diria.
4. No desenvolvimento da conversa, contudo, Eliade ensaia um diálogo imaginário entre os herdeiros futuros dos homens primitivos e "nós", no qual os herdeiros nos recriminariam o fato de termos reduzido a elementos não-míticos as expressões criativas de sua cultura, ao passo que íamos recusando fazê-lo em relação a nossa própria, denúncia de um preconceito civilizatório, que, se procedente, seria legitimamente reprovável.
5. No entanto, em que sentido as Ciências Humanas operam segundo o regime de tratar as culturas antigas como inferiores, e, a nossa, como superior? Quando, por exemplo, Freud tratou a religião como "ilusão", e a "idéia" de "Deus", como neurose, disse-o com relação apenas aos antigos - ou a fúria teológica contra-freudiana não é justamente porque ele pôs sob seu dignóstico inclusive "nós", cristãos ocidentais? Ora, se, de posse do material metodológico das "ciências", pesquisadores carregados de preconceito cultural e civilizatório pronunciam-se exatamente segundo o modelo da denúncia - "eles", os primitivos, eram inferiores, e "nós", os "homens modernos", superiores, de modo que a religião deles é mitológica, e a nossa, não -, isso nada tem a ver com a própria "ciência", mas com atitudes e ideologias, eventualmente teológicas, da parte do "pesquisador".
6. O regime de desmitificação que as Ciências Humanas empregam, e devem empregar, e segundo o qual operam, e devem operar, deve ser aplicado a tudo - seja à cultura antiga, primitiva, seja às culturas clássicas, seja às culturas medievais, bem como as modernas e contemporâneas - os Hinos Nacionais não são, em todos os sentidos, pura mitologia? Além disso, devem estar atentas, ainda, as Ciências Humanas, a aplicarem a si mesmas o princípio que a tudo aplicam, porque aquela pergunta que se deve fazer - por que os homens criam para si sistemas simbólicos de auto-referência - contnua operando, silenciosamente, inclusive por trás das operações mais modernas das ciências de ponta, seja o Hubble, seja o LHC.
7. Não se trata de não aplicar às culturas primitivas o princípio teórico-metodológico da desmitificação científico-humanista, já que e porque não o aplicaríamos a nós mesmos - trata-se de aplicá-lo, sem dó, também a nós.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. O que me traz a Peroratio é a seção "Desmitificar la desmitificación" (p. 128-134). A questão que Claude-Henri Rocquet propõe a Eliade é aquela própria das abordagens de Marx, Freud e do "estruturalismo", por exemplo, de um Lévi-Strauss, em face das culturas antigas, principalmente em relação ao seu espectro fenomenológico-religioso. Eliade tecerá algumas críticas às rotinas "desmitificadoras" das abordagens das Ciências Humanas. Dirá, por exemplo, que se trata de uma tarefa "fácil" reduzir as formas "primitivas" de compreensão aos seus elementos sociais, políticos, econômicos, dissolvendo suas criações culturais nos termos da crítica moderna.
3. Quanto a isso, Eliade afirma que a tarefa desse tipo de abordagem não deveria ser a simples desmitificação, uma desmitificação por simples desmitificação, o que não levaria a nada, mas, sim, a pergunta pela razão intrínseca de os povos - primitivos e contemporâneos - elaborarem teologias, cosmogonias, ritos, sistemas simbólicos de referência, para situarem-se no mundo. Nada mais adequado, eu diria.
4. No desenvolvimento da conversa, contudo, Eliade ensaia um diálogo imaginário entre os herdeiros futuros dos homens primitivos e "nós", no qual os herdeiros nos recriminariam o fato de termos reduzido a elementos não-míticos as expressões criativas de sua cultura, ao passo que íamos recusando fazê-lo em relação a nossa própria, denúncia de um preconceito civilizatório, que, se procedente, seria legitimamente reprovável.
5. No entanto, em que sentido as Ciências Humanas operam segundo o regime de tratar as culturas antigas como inferiores, e, a nossa, como superior? Quando, por exemplo, Freud tratou a religião como "ilusão", e a "idéia" de "Deus", como neurose, disse-o com relação apenas aos antigos - ou a fúria teológica contra-freudiana não é justamente porque ele pôs sob seu dignóstico inclusive "nós", cristãos ocidentais? Ora, se, de posse do material metodológico das "ciências", pesquisadores carregados de preconceito cultural e civilizatório pronunciam-se exatamente segundo o modelo da denúncia - "eles", os primitivos, eram inferiores, e "nós", os "homens modernos", superiores, de modo que a religião deles é mitológica, e a nossa, não -, isso nada tem a ver com a própria "ciência", mas com atitudes e ideologias, eventualmente teológicas, da parte do "pesquisador".
6. O regime de desmitificação que as Ciências Humanas empregam, e devem empregar, e segundo o qual operam, e devem operar, deve ser aplicado a tudo - seja à cultura antiga, primitiva, seja às culturas clássicas, seja às culturas medievais, bem como as modernas e contemporâneas - os Hinos Nacionais não são, em todos os sentidos, pura mitologia? Além disso, devem estar atentas, ainda, as Ciências Humanas, a aplicarem a si mesmas o princípio que a tudo aplicam, porque aquela pergunta que se deve fazer - por que os homens criam para si sistemas simbólicos de auto-referência - contnua operando, silenciosamente, inclusive por trás das operações mais modernas das ciências de ponta, seja o Hubble, seja o LHC.
7. Não se trata de não aplicar às culturas primitivas o princípio teórico-metodológico da desmitificação científico-humanista, já que e porque não o aplicaríamos a nós mesmos - trata-se de aplicá-lo, sem dó, também a nós.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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