1. Seja lida a oração: "como esses depósitos (de crânios e ossos largos de ursos em carvenas dos Alpes, datados do período interglaciário) pareciam intencionais, os cientistas se dedicaram a desvendar-lhes o significado" (Mircea Eliade, História das Crenças e das Idéias Religiosas, Zahar, 2010, p. 26). Quero chamar a sua atenção para a relação entre os termos "intencionais" e "significado" - os cientistas decidiram desvendar o significado dos depósitos de crânios e ossos largos de ursos em cavernas dos Alpes, datadas do último período interglaciário, porque tais depósitos pareciam intencionais.
2. No início do século XX, inúmeros achados de crânios de ursos, acomodados em nichos naturais de cavernas alpinas, tudo indica, intencionalmente, acompanhados de ossos largos posicionados na direção leste-oeste, suscitaram a pergunta pelo significado de tais depósitos. Ora, nada mais natural, porque, se os ossos estivessem simplesmente espalhados, dando a impressão de tratar-se de restos de mortes naturais ou acidentais de ursos, deixados ali, ao sabor da sorte e do tempo, ninguém precisaria incomodar-se em perguntar pelo "sigificado" da posição desses ossos, porque não haveria significado algum. Só há significado na intencionalidade.
3. Claro que ossos "naturalmente dispostos" também representam "informações" arqueológico-paleontlógicas, mas são informações mais ou menos do mesmo tipo que as camadas distintas em uma pedra pomes: nem o vulcão "decidiu" unir diferentes tipos de magma numa única pedra, nem os ursos "planejaram" deixar os ossos, próprios ou de terceiros, desse ou daquele jeito - simlesmente, aconteceu. Não há intencionalidade nas coisas naturais. Somente nas humanas (deixando aqui de lado a questão complexa de certos comportamentos animais que, contudo, representariam desvio no conceito de "natural" que eu aqui manejo). Logo, para os limites aqui impostos, só há significado nas ações intencionais humanas.
4. Eu quero saltar entre disciplinas. Deixo as ossadas de Eliade em suas cavernas primitivas. Quero pinçar daí o tema da intencionalidade como condição de sentido/significado. Quero, então, trazer essa questão para o campo de pesquisa dos textos antigos. Não há texto que não tenha sido produzido por um ato intencional humano. Todos, do mais simples, da óstraca mais banal, ao mais complexo, do mito cosmogônico mais sofisticado, todos, foram produzidos intencionalmente. E - atenção! - o significado está preso àquela intenção original. O sigfiicado da óstraca ou do mito cosogônico são - única e exclusivamente - aquele pretendido por quem os produziu.
5. Alternativamente, alguém pode descolar intenção e significado. Que seja. O que faz? Ele toma o texto, mas joga fora a intenção original. O que ele tem? Bem, agora, ele tem u'a massa de modelar nas mãos, um punhado de argila maleável. O que ele faz? Modela a massa, emprega as mãos e dá, à massa, a forma que ele quer - em outras palavras: aplica sua própria intenção à massa, ou, para sair da metáfora, emprega sua própria intenção ao texto, e faz o texto dizer o que ele quer. O nome disso é alegoria.
6. A alegoria tem servido à religião e à política. É, contudo, um desastre, um transtorno, uma desgraça, para a ciência. No campo religioso, a alegoria - atenção! - importa no seguinte: o oráculo passa a ser o intérprete, porque é ele que dá sentido ao texto. Todo leitor que se sirva da alegoria para produzir sentido reigioso faz-se de "demiurgo". Em termos históricos, a alegoria é fraudulenta. Em termos éticos, é uma farsa. A alegoria só me parece justificável no campo da estética - e em mais lugar nenhum...
7. A leitura histórico-crítica é como a paleontologia, como a arqueologia, como a história. Às favas as abordagens pós-modernas e metafóricas: aplicadas ao texto, é como se pudéssemos, por exemplo, dizer que foi a Cachinhos de Ouro quem organizou os ossinhos dos seus amigos ursos nas cavernas alpinas... Não? A alegoria é minha, o achado é meu, faço com eles o que eu quiser... Parece arrogância?, petulâcia? Mas é a isso que se resumem interpretações político-teológicas das Escrituras: para além do risível, manda quem pode, obedece quem é desinformado... E disso já sabia o moleiro de Ginzburg há quinhentos anos...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. No início do século XX, inúmeros achados de crânios de ursos, acomodados em nichos naturais de cavernas alpinas, tudo indica, intencionalmente, acompanhados de ossos largos posicionados na direção leste-oeste, suscitaram a pergunta pelo significado de tais depósitos. Ora, nada mais natural, porque, se os ossos estivessem simplesmente espalhados, dando a impressão de tratar-se de restos de mortes naturais ou acidentais de ursos, deixados ali, ao sabor da sorte e do tempo, ninguém precisaria incomodar-se em perguntar pelo "sigificado" da posição desses ossos, porque não haveria significado algum. Só há significado na intencionalidade.
3. Claro que ossos "naturalmente dispostos" também representam "informações" arqueológico-paleontlógicas, mas são informações mais ou menos do mesmo tipo que as camadas distintas em uma pedra pomes: nem o vulcão "decidiu" unir diferentes tipos de magma numa única pedra, nem os ursos "planejaram" deixar os ossos, próprios ou de terceiros, desse ou daquele jeito - simlesmente, aconteceu. Não há intencionalidade nas coisas naturais. Somente nas humanas (deixando aqui de lado a questão complexa de certos comportamentos animais que, contudo, representariam desvio no conceito de "natural" que eu aqui manejo). Logo, para os limites aqui impostos, só há significado nas ações intencionais humanas.
4. Eu quero saltar entre disciplinas. Deixo as ossadas de Eliade em suas cavernas primitivas. Quero pinçar daí o tema da intencionalidade como condição de sentido/significado. Quero, então, trazer essa questão para o campo de pesquisa dos textos antigos. Não há texto que não tenha sido produzido por um ato intencional humano. Todos, do mais simples, da óstraca mais banal, ao mais complexo, do mito cosmogônico mais sofisticado, todos, foram produzidos intencionalmente. E - atenção! - o significado está preso àquela intenção original. O sigfiicado da óstraca ou do mito cosogônico são - única e exclusivamente - aquele pretendido por quem os produziu.
5. Alternativamente, alguém pode descolar intenção e significado. Que seja. O que faz? Ele toma o texto, mas joga fora a intenção original. O que ele tem? Bem, agora, ele tem u'a massa de modelar nas mãos, um punhado de argila maleável. O que ele faz? Modela a massa, emprega as mãos e dá, à massa, a forma que ele quer - em outras palavras: aplica sua própria intenção à massa, ou, para sair da metáfora, emprega sua própria intenção ao texto, e faz o texto dizer o que ele quer. O nome disso é alegoria.
6. A alegoria tem servido à religião e à política. É, contudo, um desastre, um transtorno, uma desgraça, para a ciência. No campo religioso, a alegoria - atenção! - importa no seguinte: o oráculo passa a ser o intérprete, porque é ele que dá sentido ao texto. Todo leitor que se sirva da alegoria para produzir sentido reigioso faz-se de "demiurgo". Em termos históricos, a alegoria é fraudulenta. Em termos éticos, é uma farsa. A alegoria só me parece justificável no campo da estética - e em mais lugar nenhum...
7. A leitura histórico-crítica é como a paleontologia, como a arqueologia, como a história. Às favas as abordagens pós-modernas e metafóricas: aplicadas ao texto, é como se pudéssemos, por exemplo, dizer que foi a Cachinhos de Ouro quem organizou os ossinhos dos seus amigos ursos nas cavernas alpinas... Não? A alegoria é minha, o achado é meu, faço com eles o que eu quiser... Parece arrogância?, petulâcia? Mas é a isso que se resumem interpretações político-teológicas das Escrituras: para além do risível, manda quem pode, obedece quem é desinformado... E disso já sabia o moleiro de Ginzburg há quinhentos anos...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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