sábado, 4 de abril de 2009

(2009/137) Fenomenologia da Religião e Teologia "acadêmica"


1. Quando Mircea Eliade escreveu que "o 'sagrado' é um elemento da estrutura da consciência" (Origens, Lisboa: 70, 1989, p. 10), penso que o que ele quis dizer equivale-se ao que Croatto escreveu: "o lugar da hierofania é, na realidade, o próprio ser humano" (CROATTO, As Linguagens da Experiência Religiosa, São Paulo: Paulinas, 2001, p. 60). A meu ver, uma Fenomenologia da Religião (FR) que se pense a si mesma como uma das Ciências Humanas (uma das Ciências da Religião, ou, como prefiro pensar, uma câmara transdisciplinar de acesso ao fenômeno religioso), das duas, uma: ou assume, definitivamente, que o fenômeno da manifestação do sagrado é, para todos os efeitos, um fenômeno da consciência humana, um fenômeno sem conteúdo, ou, se não, assume-se, logo, como Teologia disfarçada, alguma coisa entre envergonhada e estrategicamente posicionada em sua campanha de cooptação dos saberes, racionalização apologética da intuição fideísta.

2. Pois bem: é, para mim, cada vez mais definitivamente claro que, em Croatto, os capítulos que tratam especificamente do "sagrado" estão inapelavelmente contaminados pela Teologia. Ontem, durante a aula FR, no campus avançado do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil (Nova Iguaçu - onde me formei [1987-1992] e onde, desde 1993, leciono), foi um dos alunos, Robson, a observar a estrutura metafísca da seguinte declaração de Croatto: "o ser humano é quem vivencia o transcendente, mas ele não tem a iniciativa de tal experiência. Ele de fato - o Mistério, ou qualquer que seja o seu nome - é inobjetivável" (CROATTO, op.cit., p. 63-64).

3. Robson observou que, nos termos da declaração, "transcendente", "Mistério" e "qualquer que seja o seu nome" são não apenas "inobjetiváveis", mas, a rigor, a mesma coisa. Isso implica em dizer que, nesse caso, a FR apontaria, ela mesma, enquanto FR, para duas realidades - a própria transcendência em si e a realidade hermenêutica estabelecida pelo ser humano. De fato, na seqüência, Croatto acrescenta: "está além do limite humano, dentro do qual pode operar o jogos, o discurso racional" (p. 64). Ou seja, cá, o ser humano, estabelecido em seu limite, articulável por meio do discurso racional. Lá, o Mistério - com eme maiúsculo!

4. Bem, a meu ver, isso deixou de ser FR e passou a ser Teologia. A FR não tem nenhuma possibilidade de assumir (nem por hipótese) que haja, de fato, outra realidade que não a hermenêutica humana ecologicamente situada e provocada. A FR não pode, não tem condições, enquanto FR, ou seja, enquanto Ciência Humana, de afirmar - nem de negar - a existência de uma suposta, eventual, realidade metafísica, sobrenatural, "divina". O que a FR tem nas mãos é a interpretação de um sujeito (realidade hermenêutica, noológica, ecologicamente situada), da qual se faz constar, como conteúdo hermeneuticamente produzido, a existência, somente assim presumível, de uma realidade metafísica. Ora, mas é o sujeito quem o diz! Que a Teologia se constitua justamente sobre esse dizer - "a fé vem pelo ouvir" -, vá lá (quando ela, a Teologia, deixar de ser fideísta e confessional, dar-se-á conta do despropósito em que isso se constitui). Mas a FR não pode, é-lhe vedado, saltar, fideisticamente, da interpretação do sujeito para o conteúdo da interpretação - a interpretação é objetiva, é um dado, é um mito, é um texto, é um hino - o conteúdo que ela, a interpretação propõe, é imaginação, é invenção, é arte, é política, é delírio, é abstração, é racionalização. Elas, as Ciências Humanas, todas, o sabem. A Teologia, também - mas nem liga, porque a fé é essa loucura, mesmo (quando Paulo o diz é "chique", quando é Freud, é despeito...).

5. A FR de Croatto, contudo, salta pra lá e pra cá, insistentemente, entre a Realidade invisível, como ele usa falar, e o mundo fenomênico. Isso, insisto, não é FR. Há um equívoco grosseiro na linguagem com que o livro de Croatto trata a hierofania - no fundo, é o discurso do ser humano religioso que aparece nas páginas de As Linguagens da Experiência Religiosa, antes que o tratamento fenomenológico-religioso que ele deveria receber pelo fenomenólogo da religião. O equívoco é o mesmo, sem tirar nem pôr, que se vê no discurso confessional sobre a Bíblia, por exemplo, quando trata as palavras atribuídas a Jesus, nos Evangelhos, como palavras de Jesus, quando, a rigor, essa é a mais remota das possibilidades, uma vez que se trata, primeiro, de declaradas palavras de evangelistas, narrando palavras que Jesus teria pronunciado, e a isso tendo-me chegado muitas vezes, algumas, até, confessadas, por meio de entrevistas - ou seja, o evangelista sequer as ouvira ele mesmo, mas terceiros é que alegam tê-las ouvido. Ainda que seja verdadeiro o testemunho, está-se, ainda, afiançando crédito à memória de terceiros. No caso da "FR" de Croatto, a questão é muitíssimo mais gravemente agravada pelo fato de que, se no caso dos Evangelhos, há uma possibilidade histórica, ainda que remota, mas, ainda assim, científico-humanista, de ter sido Jesus a ter dito uma ou outra coisa - tudo, impossível! -, no caso da FR, contudo, não se pode, nunca, não científico-humanisticamente, afirmar que tudo, parte, um décimo, um milionésimo da interpretação humana seja, de fato, "metafísica". Nada, absolutamente nada, aí, pode ser assumido como metafísico - ainda que eventualmente o seja! A FR é absolutamente, metodologicamente, incontornavelmente - cética.

6. Não, contudo, a de Croatto, que é crente. Ela sabe que está lá o Mistério. Mas não poderia nem deveria saber. Seja o Mistério, o Transcendente, o Inéfável, o Inobjetívável, o "Sagrado", seja Deus, Xangô, Buda, Quetzalcóatl, Manitu, Tupã, a Pomba-Gira ou o duende da cama da Xuxa, tudo isso são construções hermenêuticas do ser humano, seja a materialização concreta mais grosseira (gesso, barro, madeira, cobre, bronze, jade, pedra) de "entidades" e "seres" sobrenaturais, seja a respectiva criação noológica intermediária (os nomes dessas entidades e desses seres), seja o conceito noológico mais "refinado" (a abstração filosófica hiperônima - "sagrado" [como referência hiperônima ao conjunto dos seres noológicos]) - tudo isso é invenção humana, que a FR leva a sério na (sua) tarefa de compreender o fenômeno religioso, para o que não pode, não deve, nem precisa, "crer" nessas interpretações. Aliás, "crer" nelas é tornar-se, por isso, imprestável para analisá-las.

7. Não, a FR não é atéia - não se trata de ateísmo metodológico. Muito menos é ela teísta (ou algo que o valha: deísta, animista, panteísta etc.). A FR é cética - metafisicamente, miticamente, mitologicamente cética. Emancipada, retrucaria Jimmy. Sim, Jimmy, nesse sentido, sim. O que quer que os homens e as mulheres digam, não se trata de crer e de descrer, mas de, ceticamente, tomar tais dizeres dados, informações, com os quais se há - função da FR - de construir um quadro teórico-metodológico, a partir do qual se pode encetar ensaios de interpretação científico-humanista do fenômeno-religioso.

8. Há que se escrever um Manual de Fenomenologia da Religião vacinado contra a Teologia. É urgente a demanda.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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