sábado, 4 de abril de 2009

(2009/138) Estar disposto a ceder


1. Democracia. Um dia, talvez, a História não tem um único rumo possível, conquanto, dentre os possíveis e, às vezes, insuspeitáveis, é sempre um e um único caminho que ela toma, um dia, eu ia dizendo, talvez se volte para o tempo em que a vida de milhares, milhões de pessoas se decidia por uma única autoridade política. Aliás, há, ainda, no planeta, nações assim. Enquanto, contudo, caminhamos - ao menos no "Ocidente" - na estrada aberta pelas lufadas democráticas modernas, é por aqui que temos de pensar, é por aqui que devemos aprender a pensar.

2. A democracia está longe, muito longe, de consolidar-se, e, mais do que isso, de tornar-se "justa". Talvez ela esteja próxima da "perfeição" teórica naqueles países escandinavos. No coração da Europa e nos Estados Unidos da América, talvez ela esteja em relativo processo de aperfeiçoamento - com gravíssimas restrições, ora sistêmicas, ora localizadas. Em outros locais do "Ocidente", o Brasil, por exemplo, ela é, ainda, uma quimera - existe, apenas, no "papel" (democracia sem justiça social é cinismo de direita, é aviltamento). Todavia, é necessário pensar a democracia, em termos teóricos, antes mesmo de sua consolidação, em termos concretos, porque a democracia não é, como nada que histórico seja, um sistema determinista. Ela será aquilo em que ela vier a se tornar. E é preciso pensar aquilo que queremos venha a ser a futura democracia.

3. A princípio, trata-se de um sistema que postula a decisão pela maioria - o "povo", mas, ao mesmo tempo, cada um do povo. É o governo do ímpar, onde, então, o par impõe o "voto de Minerva". Na prática, a democracia inspira a organização na defesa dos interesses coletivos. O lado de cá quer ganhar do lado de lá - ninguém quer perder, ninguém quer ceder. Da organização coletiva das forças de interesse, passa-se, às vezes sem que se perceba, às vezes, programaticamente, para o jogo menos decente - como a combinação de votos antes de reuniões, como estratégia de minar as forças do oponente (já vi isso, e essa prática é muito comum entre "religiosos democráticos" - no meio onde se pratica tal estratégia, considera-se isso uma demonstração de inteligência: para mim, astúcia e subversão do espírito democrático).

4. Nesse sentido, a democracia, para ser equilibrada e saudável, exige que estejamos sempre dispostos a ceder. Se não, a democracia está, apenas, sobre a mesa, mas, não, sob nossos pés - o jogo que jogamos, no íntimo, é outro. Quanto a isso, gosto imensamente de um "princípio" filosoficamente democrático, constante de Princípios Batistas. Ei-lo: "A democracia, o governo pela congregação, é forma certa somente à medida que, orientada pelo Espírito Santo, providencia e exige a participação consciente de cada um dos membros nas deliberações do trabalho da igreja. Nem a maioria, nem a minoria, tampouco a unanimidade, reflete necessariamente a vontade divina". Se, por um lado, a primeira parte contém uma expressão doutrinária cuja validação não se pode alcançar senão por meios políticos "teocráticos", a segunda parte do princípio, contudo, tira de sob os pés batistas toda e qualquer possibilidade de instrumentalização da fé ou da vontade pessoal sobre os demais, porque impede, automaticamente, qualquer partidarismo "divinatório", como se a "minha" opinião e vontade fosse a mesa que a "divinas" - "nem a maioria, nem a minoria, tampouco a unanimidade, reflete necessariamente a vontade divina". Ora, se nada, nem a minoria, nem a maioria, nem mesmo a unanimidade, reflete necessariamente a vontade divina, posso eu, "democrático", arrimar-me na idéia de que a minha idéia é a única que pode apresentar-se de direito? Não devo, antes de tudo, conceder-me o direito ao equívoco?, e, ao outro, o da razão?

5. No enfrentamento das vontades políticas, há de chegar um momento em que se tem de decidir. O consenso avançou até onde é possível - daí em diante, alguém terá de abrir mão de alguma coisa. O "voto" resolve isso "por cima". É do sistema que o faça. Há, então, que se aprender não apenas a perder, mas a perder com "alegria", eu diria, reconhecer-se que é essencial para o espírito democrático não apenas a luta pela vitória, mas, sobretudo, a nobreza da derrota. Porque, quando se vai ao voto, vai-se ao voto para ganhar... ou perder.

6. O que me leva a pensar a situação em que o casamento moderno, dito "por amor", nos coloca. Aí, temos uma relação democrática de modelo "par". Ela, a mulher, eu, o homem, casados, temos de decidir. E se não há consenso? Não há "votos de Minerva" possíveis - o macho já era... Se eu não abro mão de alguma coisa, nem ela, como se resolve a questão? Pela força? Pelo dinheiro? Não se resolve? Penso que, nesse caso, na relação conjugal, exercita-se o espírito democrático, o jogo de ganhar e de perder - quando ganhar e perder, sempre, relacionam-se ao bem comum, o do casal. Naturalmente que haverá conflitos possíveis até de promoverem a absoluta ruptura do relacionamento - para isso constituiu-se a justiça. Ela decidirá, e pronto. Nesse ponto, contudo, a relação democrática tornou-se impossível, no micro, e será resolvida pela sociedade, ela mesma, ainda que nessa instância arbitrária, do direito, democrática. Mantida a relação conjugal democrática, contudo, o conflito se resolverá pela cessão de um dos dois parceiros - é do jogo.

7. O casamento, se exercitado como relação democrática de gênero - ela e eu em relação de iguais - é uma excelente forma de exercício do espírito democrático. É mesmo curiosa a relação entre o surgimento institucional/cultural do casamento por amor, nas sociedades democráticas modernas, e essas mesmas sociedades democráticas modernas. É como se uma sociedade politicamente autocrática devesse ser respaldada por micro-sociedades familiares igualmente autocráticas - historicamente, patriarcas, quiriarcais. Se essa intuição for válida, é como se as políticas institucionais democráticas modernas demandassem micro-estruturas familiares democráticas - daí, a "evolução" da relação familiar para o casamento por amor, que um aristocrata, como Nietzsche, não podia tolerar, fosse a democracia, fosse o casamento por amor.

8. Não diria que se aprende a viver numa sociedade democrática vivendo-se uma relação conjugal democrática, ou que, ao contrário, é casando por amor que se aprende a gostar do jogo democrático. O que quero dizer é que a relação democrática entre homem e mulher, no micro, está culturalmente e socialmente relacionada ao jogo maior da política nacional, da democracia institucional, de modo que o que se faz, por atacado, aqui, se faz, ali, no varejo. A questão que permanece latente é justamente essa: se a relação conjugal for honestamente democrática, ou o marido cede, ou a esposa cede, quando houver conflito, ou a relação trava, e corre o risco de romper. É necessário, inegociável, que os jogadores do jogo democrático sirvam à democracia, e não que se sirvam da democracia. É necessário que saibam - e, mais do que isso, que estejam dispostos a - perder aqui e ali, para ganharem, sempre, no bem maior- no bem de todos.

9. Pano rápido: Bel e eu "arengamos", de vez em quando. É mais raro do que comum, e, salvo uma ou duas vezes nesses vinte e dois anos, são sempre por questões absolutamente desprezíveis, o que, contudo, não faz desaparecer, automaticamente, o conflito. Bel há de concordar comigo que, estatisticamente, sou eu a ceder na maioria das vezes. No início, depois de dois ou três dias emburrado, de cara fechada. Digamos que os hormônios me resolviam a questão, e, fazendo então as contas do que, afinal, eu perdia, eu cedia. Hoje, não espero mais os hormônios reclamarem de saudade, e já aprendi as contas, antes mesmo de passado meio dia. O fígado fica emburrado, o coração, machucado, mas a cabeça lhes diz, em tom político-professoral: amigos, pensem no que estamos a perder com essa arengação tola... E, aí, então, o coração bombeia sangue, o fígado inflaciona, e o corpo inteiro grita: Bel, cadê você, amor?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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