sábado, 23 de maio de 2009

(2009/288) Livros que mudaram minha vida - I


1. Até hoje, e lá se vão dezesseis anos de magistério teológico, tenho resistido bravamente às - é verdade que - poucas ameaças de um ou dois alunos me tirarem por guru. Minha consciência crítica é tão severamente austera consigo mesma que não suportaria a idéia de apresentar-se em sala de aula como guru - Deus me livre! Sequer a idéia de "discipulado" me encanta. De uma transferência de autonomia, de uma introdução aos métodos, de uma insuflação de coragem, aí, sim, me agrada a idéia.

2. Alguns alunos do primeiro período de Teologia, da FABAT, me pedem, num canto, que liste o nome de livros que recomendaria para serem lidos com seriedade. Ah, isso não posso fazer, porque eu não tenho receitas mágicas. O que posso fazer é ir dando, a pouco e pouco, o nome dos livros que me fizeram, pelos quais me fiz, que correm em minha veia, que transbordam de cada afirmação minha.

3. Se você lê alguma coisa, e isso entra na sua corrente sangüínea, e isso passa a compor seu DNA, e cada espermatozóide seu passa no almoxarifado para pegar o embrulho, então você aprendeu isso. O resto foi perda de tempo. Lemos muito pouca coisa realmente significativa em toda nossa vida, conquanto tenhamos lido, eventualmente, muita coisa.

4. A primeira indicação que faço, algo como quase sagrado em minha iniciação crítico-epistemológica, é o magistral Tratado de História das Religiões, de Mircea Eliade. Li-o de cabo a rabo, sem parar, no chão da sala de casa, tendo a Lua por companheira, ainda na Matias Braga, em Belford Roxo. Havia um cortina bordô nas janelas - eu me lembro delas. O chão, era de tacos envernizados, como tiveram sido os chãos da casa de vovó. Havia um sofá creme. Dois cães, agora já mortos, na varanda. Bel (sempre ela) e as crianças, pequenas... Nasci, ali, no chão, parindo-me página a página. Quando acabei, exausto, levantei-me, e percebi que pele, ossos, sangue, urina, fezes, carne, músculos, um exo-homúnculo ficara ali, no chão. Recolhi, reverentemente, os restos mortais, engoli-os, e segui em frente. O velho e o novo dormem na minha carne... Eu era uma serpente que trocara a pele.

5. Nesse dia - e até hoje - condenei a educação religiosa que me praticaram. Não tinham o direito de fazerem o que fizeram comigo - peior, de me ensinarem a fazer a mesma coisa, de cometer o mesmo crime. Mentiram para mim, desavergonhadamente, em nome de suas verdades de umbigo, quando sabiam que havia quem lhes denunciava a mentira. Chorei naqueles dias. E segui em frente.

6. Não, não é um livro "religioso". É um livro técnico. Mas conhecer-se e conhecer o mundo, é pura liturgia. Meter a mão nas próprias carnes, é culto. Sofrer a dor do próprio parto, é adoração...

7. E recomendo entusiasticamente essa iniciação. Se bem que se trata de um portal muito peculiar. Ninguém que não à altura de espremer-se entre os próprios ossos entrará nele. A alma pequena demais, ou grande demais, por alguma razão, não agüentará a travessia, porque deve-se cruzar o rio pisando as próprias verdades, e elas estilhaçam-se, sob o peso dos pés, que, sangrando e doendo, devem, contudo, insistir, e não sobra nada do outro lado. É uma dor em festa, todavia, um sofrer de gozo, um doer gostoso...

8. Por isso, não temo recomendá-lo. Só há de atravessar o vale negro da Fenomenologia da Religião aquele que, em pleno estado de "verdade", encontra-se ardendo como que em ácido - e de tal modo que, à gota que se lhe oferece, abre a garganta, ávida. Eliade é uma gota de água fria, a anunciar a chuva, depois da seca...

9. Não é um livro para os satisfeitos. É um livro para quem tem dor. Um livro para Jó - para aumentar ainda mais a sua tragédia. Mas, depois, acabam-se todas.

10. O segredo que ele trás, ao menos o que eu descobri, é que ele vai apagar o nome dos deuses da rocha, escrevê-los na fumaça, e construir uma varanda. Balançar-se, ali, ou não, é a opção do leitor. Se sobreviver, claro.

11. Pediram-mo. Agora não me venham com choramingações, que tá doendo...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS. Para adquirir, na Livraria da Travessa.

2 comentários:

Anônimo disse...

A editora divulgada na Livraria Travessa é Martins Fontes, está correto para este livro?
Se trata do mesmo conteúdo?

Peroratio disse...

Sim, se trata. A Matins Fontes é a editora brasileira da obra.
Osvaldo.

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