segunda-feira, 13 de abril de 2009

(2009/161) Entre Marx e Feuerbach, Morin


1. As idéias me voltam sempre, malgrado já as ter tratado. Elas recusam-se a ficar na gaveta. Antes, como fantasmas e assombrações, voltam a pousar em meu ombro, a sussurrar no meu ouvido, às vezes, o direito, às vezes, o esquerdo, porque, às vezes, sou alguma coisa entre tradicional e revolucionário - um tradicional de ficar em casa e um revolucionário de não sair às ruas...

2. Há aquela interminável discussão entre Marx e Feuerbach. É que Feuerbach defendeu a tese, irreprovável sob sua própria perspectiva, de que os discursos humanos sobre Deus, a saber, as doutrinas, as místicas, as ritualizações, ou seja, tudo quanto orbite em torno do tema "sagrado", constitua uma projeção que a mente humana faz de sua própria existência em um mundo extra-humano - metafísico -, passando a lidar com essa projeção como se com uma realidade ainda mais forte que aquela de onde ela provém. Essa tese encontra-se em seu clássico, A Essência do Cristianismo. Sem exceção, todas as Ciências Humanas, quando aplicadas sobre o mesmo tema, partem daí.

3. Marx respondeu-lhe. Não é que vá tomar o partido teológico, absolutamente. Mas é que Marx acha que Feuerbach não foi suficientemente longe, porque Feuerbach não tratou das causas dessa projeção, que, para Marx, eram as condições materiais da existência concreta - política - humana. Ou seja, para Marx, a humanidade não acordou um dia e decidiu, porque quis, projetar-se numa hipóstase divina. Foram as condições materiais - sócio-econômicas, históricas, culturais, geopolíticas - que pressionaram a mente humana, de modo que ela "vazou" imaginários metafísicos para seu consolo e ópio. A meu ver, também dentro de suas próprias perspectivas, Marx não pode ser contraditado.

4. Das 11 teses de Marx contra Feuerbach, eis a sétima e a oitava: "7 - é por isso que Feuerbach não vê que o 'sentimento religioso' é ele próprio um produto social e que o indivíduo abstrato que ele analisa pertence à mesma forma social determinada. 8 - Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que orientam a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão destra prática" (Georges LABICA, As 'Teses sobre Feuerbach', de Karl Marx. Rio de Janeiro: Zahar, 1990, p. 34).

5. Marx não discorda de Feuerbach quanto ao conteúdo, mas quanto ao fundamento de sua tese. Para Marx, a tudo quanto Feuerbach disse se precisaria acrescentar o fato de que as coisas se dão como dão por conta da prática - práxis - humana. Mesmo o "sentimento religioso", ele assevera, nasce aí.

6. Penso que ambos estejam certos. Ao mesmo tempo. Para isso, recorreria a Edgar Morin e a sua teoria da recursividade. Um exemplo seria a relação entre cérebro e mente. Quem determina quem? Ora, o cérebro (biológico) nasce mais ou menos pronto. Os neurônios estão lá, mas não, as sinapses. As sinapses, as relações entre os neurônios, são elas as responsáveis pelo funcionamento "noológico" da máquina cerebral. E elas se formam, de forma comparativamente significativa em relação à fase uterina, a partir do parto e da história dessa criança. Serão as relações existenciais - cuidado, carinho, experiências, locomoção, linguagem, idéiais, imagens, sons, cores -, os encontros e os acontecimentos da vida, que formatarão as sinapses. Isso demonstra que há uma recursividade entre a dimensão noológica, psicológica e subjetiva, humana e a dimensão cerebral, biológica e maquinária. Sem o cérebro biológico, não há ser humano, mas, sem o desenvolvimento cultural/existencial desse cérebro, ele é pouco mais do que uma potencialidade.

7. Talvez devêssemos olhar também assim para a relação entre prática e "sentimento religioso". Talvez seja unilateral conceber-se que é apenas a prática social que determina a expressão religiosa - desde a cosmovisão até a esperança. A rigor, uma prática social já decorre de uma cosmovisão, que, por sua vez, desde que o homem é homem, há de ter sua constituinte "religiosa". Talvez seja simplicidade equivocada querer-se separar, agora, depois de milênios, essas duas dimensões. Do modo como se deu a história da espécie humana, é tanto a prática social - sócio-econômica, inclusive - que determina a configuração noológica da cultura - desde a cosmovisão até a estética - quanto é a concepção "mitológica" da vida que determina essa mesma estrutura práxica. Ambas formam, agora, uma unidade inextricável.

8. Talvez só didaticamente se possam separar essas duas dimensões da realidade - o corpo e a mente, a cultura geopolítica e a cosmovisão mítica. Na prática, as duas estão misturadas, cada qual, recursivamente, sobredeterminando a outra, de modo que não é mais uma que sustenta a outra, ou vice-versa - as duas sustentam-se indissosiavelmente.

9. A virtude de Marx é trazer a atenção para a dimensão práxica das relações religiosas, porque nos alerta de que não se pode querer curar as dores no além, mas aqui e agora. Conquanto o além seja uma dimensão do aqui e do agora, pode-se projetar para lá as soluções concretas que se precisam aqui e agora, o que é muito politicamnte útil para políticas cínicas e manipuladoras. No entanto, também a esperança messiânica pode converter-se em revolução práxica - como o teria querido um Jesus histórico amiúde reconstruído na literara contemporânea, tanto quanto como o quereria a Teologia da Libertação.

10. É bom poder contar com um amigo, Morin, que me permite apaziguar os ânimos entre outros dois caros companheiros de minha solitária caminhada. Afinal, quem ganha com a suposta ruptura entre Feuerbach e Marx? Certamente que não eu...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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