domingo, 16 de novembro de 2008

(2008/49) O que pode ser o fim da metafísica?


1. Por mais que se queira, pós-modernamente, afirmar que não haja chão, que não haja fundamento, toda e qualquer afirmação tem, sempre, chão e fundamento. Fenomenologicamente, cada sentença pronunciada por qualquer pessoa faz-se emergir a partir de uma determinada plataforma que lhe serve de alicerce. Mesmo as modernas teorias "hermenêuticas" auto-ditas não-fundacionais. Mesmo elas, sim, têm fundação.

2. O Ocidente, em tese, teve a oportunidade de sair da plataforma ontológico-metafísica platônica há duzentos anos. A "porta" - nunca cansarei de dizer (a Tese, achei-a pela primeira vez em Tilich, e está ilustrada bem em O Nome da Rosa) abriu-se bem antes, depois que os árabes introduziram Aristóteles, na Europa, através da Península Ibérica. Aristóteles fermentou, fermentou, e levedou toda a massa platônica ocidental, que lhe reagiu. Um lado, seguiu Platão - todos os cristianismos, as religiões de modo geral, determinadas escolas filosóficas e algumas utopias políticas. Outro, encabeçado pelas Repúblicas, pela secularização, pela emancipação cultural, pelas ciências, seguiu Aristóteles. Aí, por um acidente histórico, ao que tudo indica, a invasão franco-napoleônica à Alemanha, arrebentou o Romantismo - um ovo realmente novo, porque, ao passo que para Platão e Aristóteles, a verdade está lá fora, para o Romantismo, ela é construída aqui dentro. Não foi Aristóteles quem fez ruir a metafísica, mas o Romantismo, e a ele Platão reagiu furiosamente, seja em Roma, seja em Wittenberg, seja na "América".

3. É na estrada aberta pelo Romantismo - eles são os próprios batedores (Apolo, facão na mão, abrindo caminho através da hylé, para fundar uma cidade) - que caminham, novos homens, Kant, Schopenhauer, Feuerbach, Nietzsche. Dois mil e quinhentos anos de Platão! Quinhentos, mas muito mal pesados, muito esboroados, de Aristóteles! Duzentos, de Romantismo! Fim programático da metafísica, manutenção programática da metafísica. Platão ainda está de pé.

4. É muito curioso acompanhar os discursos epistemológicos das correntes que discutem o fim da metafísica. Pensam colocar-se do lado de cá, pensam estar além da metafísica, mas, no fundo, não conseguem livrar-se dela. Platão ensinou-nos (o Cristianismo inculcou-nos a idéia até ela fazer parte de nossas sinapses) a ontologia metafísica, a verdade "dura", divina, verdade verdadeira, deu-nos o olho de Deus, verdades de Deus, a certeza subjetiva da verdade ineludível - de Deus. Aristóteles não pensava diferente, conquanto, pelo menos, afirmava que cada um podia descobri-la por si mesmo, sem precisar de sacerdotes e filósofos mediadores - um grande passo.

5. É essa verdade divina que morre, se cai a metafísica. O defunto é o qualificativo "divina", não a palavra que ele, politicamnete, qualificava. Os "hermeneutas" não-fundacionais partem do pressuposto de que, se a metafísica caiu, não há mais fundamento, não há mais "verdade". É o mesmo fenômeno entre teísmo e ateísmo: ou existe ou não existe. A "geração" pós-moderna, a geração "hermenêutica", só sabe pensar assim: se não tem fundamento de Deus, então não tem fundamento nenhum (porque todo esse povo, no fundo, guarda a fé no fundo da alma). E tudo, então, vira um blá-blá-blá, para citar, parece-me, Pondé, comentando, favoravelmente, as teses de Karl-Otto Apel sobre a necessidade de um critério de verdade para a civilização pós-metafísica.

6. A lógica do pólo não demorou muito a emergir. Um Heidegger logo aproximou o conceito de "linguagem" ao do fundamento ontológico platônico. Idéia - Deus - Linguagem (Platão - Agostinho - Heidegger): "a compreensão não mais é vista como um ato do homem mas como um evento no homem" (R. Palmer, Hermenêutica, p. 217, grifos meus). Gadamer, mais do que depressa, ultrapassa (mantendo-a) a Linguagem com a Tradição: "no diálogo hermenêutico, o tema geral em que estamos inseridos - tanto o intérprete como o texto - é a tradição, a herança" (Idem, p. 202). Linguagem, Tradição, substitutos pálidos, mas de mesmo nível, para o Ser que se inventou (não é curioso que os livros ensinem sobre os filósofos atenienses como sendo, eles, filósofos? E o eram? Não - eram, antes de tudo, teólogos!). Caímos na armadilha - se não a armamos!: a) primeiro, assume-se que o fundamento necessário é (o) ontológico, b) em seguida, afirma-se que com o fim da metafísica, findam-se os fundamentos, c) terceiro, com o passo "a" trabalhando nos bastidores, propõe-se uma refundação "não-metafísica", quero dizer, não "religiosa", não "mitológica", mas, eis a surpresa, que mantenha o status quo exatamente como era antes do fim da metafísica (eis a que, a meu ver, se resume, por exemplo, a proposta de Vattimo): Linguagem e Tradição.

7. Penso que o rumo dessa viagem foi corrompido. Era falsa a idéia de que é necessário um fundamento ontológico e metafísico para a existência humana, para a sociedade. Alguma coisa entre uma saudade patológica do medievo e um programa político de manutenção dos eixos de força atuantes na sociedade insistem na estratégia pendular. A saída Romântica, contudo, recusa o pólo. Recusa, por exemplo, que não haja fundamentos, ao mesmo tempo que recusa que haja um fundamento. Há fundamentos: locais, situados, históricos - válidos, diga-se, operacionais. Não há "revelação" que se faça "saber" e que, por meio de tal prestidigitação sacerdotal, proponha-se como "fundamento" ontológico. Isso foi a maior das invenções políticas da História - um quê de Pérsia (administração subjetiva, por meio do mito, das consciências conquistadas) e Grécia (ontologização da estratégia mitológica de administração das consciências conquistadas). Farsa.

8. Não é necessário, nunca foi, mentiram para nós, um fundamento ontológico. Nossos olhos são e serão, para sempre, humanos. Construiremos para nós, sempre, fundamentos situados, válidos intra-comunitariamente. À medida que a comunidade cresce - torna-se planetária, por exemplo -, ampliamos, dialogalmente, os fundamentos, jogando, no risco, com o "real", captado por nossos sentidos e tratado por nossas sinapses representacionais. Isso que construiremos não é ilusão, mas não é, tampouco, "verdade", isto é, verdade no sentido em que Platão e Aristóteles cuidavam ser possível - o homem ter a visão (por dom sacerdotal ou investigação autônoma) dos deuses, os homens verem como os deuses vêem.

9. Sugiro que esqueçamos definitivamente Platão. A metafísica dos deuses, do Ser, acabou (Linguagem e Tradição são ídolos de sofrível aparência). O que não significa que chegamos a um beco sem saída - não! Mil vezes não! Saímos foi do labirinto maldito da política ontológica e metafísica, do controle das consciências por meio de mitos. Podemos voltar ao ponto onde estávamos antes do canto de sereia, do "murmúrio" da Cidade Bela, e podemos voltar a construir os fundamentos com os quais continuaremos a edificar nossa História. Nem ontologia nem blá-blá-blá: lucidez histórica e epistemológica. Que me remete àquela velha citação (de memória) de Pascal - "o homem é um caniço que pensa, e o peso do Universo o esmaga. Mas ele sabe".


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Um comentário:

Joe Black (Joevan Caitano) disse...

Bom texto.
Merece uma releitura
abçs
Joe

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