domingo, 16 de novembro de 2008

(2008/48) Intentio, intentio, intentio - nada mais do que intentio


1. Homens e mulheres são seres de cultura. Sim, Dawkins está certo, habemus DNA, mas demos um jeito de entregar a ele(s) divisões da Instituição Homo sapiens propriamente animais. Aquelas mais distintivamnte "humanas", essas, aquilo a que convencionamos chamar de "consciência" assumiu-lhes o "controle". O que faz de nós seres teleológicos. Dito em recorte epistemológico, "pragmáticos" (para a "virada" pragmática nas Ciências Humanas, cf. a Introdução de O Império do Sentido, de François Dosse - eventualmente, ler minha Série Pragmática, na http://www.ouviroevento.pro.br/).

2. A era pós-estruturalista descobriu-se pragmática - uma tentativa epistemológica de conciliar "objetividade" e "subjetividade", de entrever o perfil emancipado do sujeito em meio às sobredeterminações constantes da cultura e da sociedade. A ação dotada de sentido, não mais mecânica e desprezível, mas teleológica, passou a ganhar interesse - "de novo", já que ela se encontrava já discutida tão cedo quanto em Aristóteles e Kant (saber, querer, sentir).

3. Intentio. Aplicando o conceito aos textos, a modernidade desenhou-se sobre o autor dos textos - como Schleiermacher queria (e, até certo limite, também eu: recuperar os processos de pensamento do autor de um texto): intentio auctoris. Não apenas o método histórico (Lourenço Valla) e o histórico-crítico (séculos XVII em diante), mas o proto-hermenêutico (eu preferiria ter dito, "o período dos pioneiros da hermenêutica", mas a "hermenêutica" que se vai apropriando de seu próprio passado vai matando o sujeito e pondo em seu lugar ou uma Linguagem [Heidegger] ou uma perigosíssima Tradição [Gadamer] - um retorno surpreendente [e sub-reptício!] a uma metafísica não-mitológica, mas tão mítica quanto a platônica]: em Vattimo, que bebe até a embriaguez de um copo de Gadamer , a Hermenêutica é uma Senhora que tem o que dizer, que tem conteúdo!, como aquela Sabedoria, de Provérbios, a falar pelas ruas), de Schleiermacher e Dilthey (aí, a hermenêutica ainda é "método" e "modo"), que reconheciam na intencionalidade situada do sujeito-escritor a chave hermenêutica do discurso ali objetivado.

4. Logo criticou-se essa "escola". De "positivismo" pra baixo (Croatto, ideologicamente, chamou-a de "eisegese", em 1984, antes, contudo, de ele mesmo descobrir a Fenomenologia da Religião, e ir meter-se ele mesmo em exegese, em sua série Isaías). Como as críticas, na sua esmagadora maioria, dão-se por cima, elas tendem a posicionar-se polarmente ao discurso que enfrentam. Postulou-se, então, o oposto da intentio auctoris - a intentio lectoris.

5. Que, contudo, é a mais antiga que sua rival. A alegoria ateniense e o midrash rabínico-judaíta (que marcam inexoravelmente toda - toda! - a tradição e teologia do Cristianismo) são modelos milenares de intentio lectoris - logo, de ideologia assumida como critério. Epistemologicamente, trata-se de assumir, programaticamente, o "leitor" - não mais o autor - como critério para a interpretação do texto. É o leitor quem diz, não o autor - tecnicamente e epistemologicamente morto. Na prática, o leitor "atualiza" (termo técnico) um sentido próximo de si para cada palavra e relação sintático-semântica do texto, construindo, com ele, uma rede semântica de si e para si. Cada leitor, uma leitura. Todas certas. Cada vez, alguma coisa entre estética e política.

6. Fica o teórico tendo de decidir entre a reconstrução psicológica da mente de um defundo ou a assunção da própria ideologica como critério de leitura. Exegese ou eisegese. Numa, nunca se sabe quando se está certo - porque não se pode "checar" se o que se está entendendo é mesmo o que o autor teria querido dizer. Noutra, sempre se está certo, não importa quem leia, como se leia.

7. Há quem não goste dessa encruzilhada. Inventou-se uma "saída" - a meu ver, a do leão da montanha, aquela, do desenho animado dos anos 70 e 80. Inventou-se de dizer que textos falam por si mesmos. Chamou-se a isso de intentio operis. Até Umberto Eco nadou nessas águas. Elas são assépticas. Você pode dizer que não faz ideologia descarada (intentio lectoris), nem que lida com anacronismos metodológicos (psicologismos démodé - intentio auctoris). Mas é isso, apenas que pode fazer - dizer que não faz. Mas faz. Toda intentio operis nada mais é, em termos fenomenológicos, que intentio lectoris não assumida.

8. Textos não têm intenção alguma. Têm estrutura, que, contudo, não falam por si mesmas. Falassem, qualquer que adotasse a "saída" leria, sempre, o que o texto eventualmete teria a dizer. Não é, contudo, o caso. Pessoas utilizam-se das estruturas do texto para "falar". Sempre se cai na mesma situação - cada leitor, uma leitura. Por quê? Porque apenas seres humanos, de carne e osso, têm intencionalidades discursivas desdobráveis e desdobradas culturalmente. Textos, por outro lado, são coisas, não pessoas (nem seus personagens!), são objetos culturais, que pessoas fazem, mas que não falam por si mesmos.
9. Chamou-se à teoria intentio operis, de "opus", "obra", tomando o termo de empréstimo às artes. Já aí era pra se ter percebido a improcedência da retórica: museus são lugares especiais para desdobramento das experiências estéticas de sujeitos históricos. Cada um olha um quadro, e "experimenta-o" a partir de si mesmo. Não é o quadro que fala, mas o sujeito que se projeta, esteticamente, e cria uma singularidade relacional, "situada", produzida teleologicamente pelo sujeito. Ainda que sem o quadro, a obra, o sujeito não se expressasse, não é ao quadro que cabe a tarefa da expressão, e nem tampouco e a ele que ela é devida. Ele é apenas medium - e mudo. É o sujeito quem o "usa", para "exprimir-se".

10. O fato de que, entretanto, se pode pegar esse mesmo quadro e "estudá-lo" em sua classe de História da Arte recoloca as coisas, a meu ver, onde devem estar. Diante de um quadro, ou você o apreende ou esteticamente (também, politicamente), ou heuristicamente. Ele, nada, nunca, nada faz. É sempre você, leitor, quem usa textos - seja para encontrar-se, teórico-metodologicamente, com a intencionalidade (psicológica, sim!) do autor dele, ou com sua própria ideologia. Nunca, leitor, há de se encontrar com alguma coisa como uma "intenção da obra", do texto, porque isso, simplesmente, inexiste. Como disse, há, ali, estruturas, eixos de força (sintaxe, semântica, estilo). Mas são como os eixos de força da Natureza: quando o salmo fala que os céus falam sobre a glória de Deus, é o salmista que fala, e, é bom saber, os céus não falam nada, não, é o admirador crente deles quem põe palavras de louvor na boca das nuvens, que, contudo, só têm dentro de si, água.

11. Intentio. Arrisco dizer - consciente e cultural, teleológica, não-DNÁdica, só há uma: a humana. Ela pode estar em dois pólos relativos a um texto - no passado, o autor, no presente, o leitor. É aí que se deve enfrentar a questão do critério hermenêutico. O texto não tem vida, não tem corpo, não tem mente, não tem intenção alguma. Voltemos, então, a discussão que me parece produtiva: é meu direito fazer o texto dizer o que eu quero que ele diga? Se sim, porque, quando se trata de um receituário médico, eu quero que o balconista da farmácia me dê exatamente o remédio que a mente do médico escreveu, usando a mão do médico, ali, no texto? Por que quero que, ali, onde está escrito meu nome na Escritura de Compra e Venda de minha casa, que todo mundo leia meu nome - e não, por exemplo, o seu próprio?

12. Intentio lectoris - qui prodest?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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