sábado, 15 de novembro de 2008

(2008/47) "É bão tamém"


1. Haroldo introduz um tema novo - liberdade religiosa. E que tema! Obrigado, Haroldo, por nos fazer lembrar dele. Mas digo-o "novo", porque, a rigor - e sempre cá sob todos os meus riscos - penso que a discussão em torno do estatuto epistemológico da Teologia e da conseqüente pertinência ou não de sua presença na Universidade não seja exatamente a mesma coisa que o tema da liberdade religiosa de que trata o Artigo 5, Inciso VI da CRFB 88 (coincidentemente, ontem preparei a prova do Vestibular de um curso da FABAT, e incluí lá uma questão justamente sobre esse inciso da Constituição) - salvo se, no fundo, aquele é um tema da "religião", logo, pragmaticamente, ou da política, ou da estética. Mas não: ele é um assunto pertinente à pragmática heurística. Já liberdade religiosa, à política. Sendo que, admoeste-se, a decisão sobre se vamos levar a sério a discussão heurística quanto ao estatuto epistemológico da teologia é, em si, uma decisão política. Mas, decidida a questão pelo "sim, vamos", os passos já são aqueles mais ou menos antecipados (como diria o Mino, "de ciência até do reino mineral"): não é por isso que Zabatiero quer a Teologia fora do jogo das ciências, conquanto lhe soe bem considerá-la, mesmo aí, fora, "saber racional público"?

2. Todos os encômios a esse parágrafo e a esse particular inciso citados por você, Haroldo. Contra eles, contudo, perfilam-se estruturas e atitudes inconfessáveis, sejam institucionais (como "cheirava" toda a estratégia de gato e rato entre o Vaticano e o Itamarati, que você comenta), sejam aquelas que, todos os dias, nós, evangélicos, praticamos em uma enormidade constrangedora de nossos templos, com nossas pregações - e, agora, até na TV. Nós também habemus Papam... A rigor (escrevi isso no Órgão Oficial dos batistas da CBB - O Jornal Batista, cf. Batistas e Estado Democrático de Direito), poucos, raros, ráríssimos cristãos estão convertidos aos valores republicanos. Disciplinados pela República, talvez, mas cada vez mais, nesses dias midiaticamente neopentecostais, tomados de frisson medieval, saudosos de autos de fé. Não duvido nem um pouco se, caída a República - e ela não é eterna - não voltamos, sempre motivados pela Santíssima Trindade, a matar e queimar hereges.

3. Mas, enquanto a República durar, estamos protegidos de nós mesmos. Talvez devêssemos levar para mais fundo do coração essa "lei" - que nós mesmos inventamos, e podemos desinventar, se quisermos, porque as nossas leis quem as fazemos somos nós, e não há "cláusula pétrea", data venia, que resista. Liberdade Religiosa é uma conquista amarga, tomada à força também de armas, ao preço de cabeça e sangue, do coração da Igreja. Não é um dom que o Cristianismo concedeu ao planeta - mas que o planeta (ao menos o Ocidente) arrancou do Dragão. E que legal que tenha sido também pela mão de alguns filhos do próprio Dragão, o que demonstra que estrutaralismos determinantes são pura política e desejo: sempre se pode, sempre, absolutamente sempre, "escrever (e fazer) a história a contrapelo" - para honrar você com a memória que você trouxe de Walter Benjamin. Como bons cristãos, talvez devêssemos andar uma légua a mais, ser mais republicanos do que a própria República.

4. Liberdade Religiosa, sim. "Estudo religioso" nas escolas, hum, tenho minhas dúvidas. Aqui no Rio, acredite, evangélicos mutíssimo cheios de boníssimas intenções, orientados pelo Espírito Santo, usam a lei para "evangelizar" crianças. Que digo? Devia achar isso uma ótima coisa, não?, que oportunidade de as crianças ouvirem o Evangelho! É mesmo Deus quem abre as portas... Já houve, inclusive, vanglórias. A Lei de Gérson também está muito bem representada entre nós - seja nas classes de "ensino religioso" (?), seja no Congresso.

5. Liberdade Religiosa, sim, mas, por favor, moças e moços religiosos, controlada por outros que não os religiosos, porque ainda vivemos em um estado de hibernação ética insuperável, porque nosso Evangelho ainda não pode ser, de todo, ético, posto que ainda não cremos em um Deus que, de todo, o seja. E registro - tudo isso o digo, Haroldo, creio, em absoluta sintonia com sua mais profunda convicção. Lutamos pela mesma causa, queremos, nesse sentido, o mesmo mundo. Republicano (ou algo melhor, se formos capazes de o inventar a tempo de os vermes não se lamberem de nós). Ponto pros vermos, eu acho.

6. Mas - como sou chato, não? - liberdade religiosa nada tem, diretamente, que seja, a ver com a discussão que vínhamos de fazer rolar. O citado que você extraiu (espere o Teologia no Divã, pela PUC de Curitiba...) não fala de religiosos numa sala, aprendendo a se tolerar, se não papai dá palmadas. Fala de homens e mulheres republicanos, convertidos aos valores universais, refletindo sobre uma ciência. Para os tais - nós, entre eles - liberdade religiosa é ar, ponto pacífico, coisa superada, tema de manutenção. O que a eles diz respeito, agora, é como poderão refletir sobre suas respectivas tradições ("Teologia" não passará mais disso, ainda que à luz de uma esperança aberta e utópica) de modo compatível, ou seja, de modo a que a reflexão que eu faço da minha tradição se dê no mesmo nível epistemológico que aquele em que ele faz da dele, ela, da dela, de modo que eu posso fazer da dele, ela da minha, ele da dela, sem privilégios, sem que eu precise crer nela, nem nele, nem eles em mim. Ora, inventamos dois milênios e meio de Platão, depois de milênios e milênios de monarquia sagrada (os dois períodos se fundiram na "República de Agostinho!"), podemos inventar uma coisa mais romântica - falo em sentido epistemológico técnico: história e assombro. Ao menos romântica - antes que o superemos e nem mesmo ele já atenda à demanda.

7. Eu fico feliz, também, com a República, ainda que ela ainda esteja cheia de vícios e desmandos. Culpa não "dela" - enquanto sistema político-social - mas dos "reublicanos" (entre eles, nós, religiosos e evangélicos). Quer ver? Fomos lá no MEC buscar a aceitação de nossa cidadania universitária (foi política a conquista, e não num "bom" sentido), mas não estamos lá muito interessados em concedê-la a terceiros. Nossa singularidade, nossa especificidade, digamos de uma vez, nosso "privilégio" epistemológico pode ser, nesse caso, obtido por meio de uma dentre duas estratégias - a) negação empírica e burocrática da entrada de terceiros religiosos na Universidade (não dá, já se viu: já entraram - vide FTU), ou b) negação noológica/epistemológica de sua existência, isso por meio da discussão, ainda agora, dentro da Universidade, de uma Teologia "cristã e confessional" (o que se dá, nesse minuto, entre nós).

8. Aliás, a meu ver, também o destino, a ética, a legitimidade de um "ensino religioso" (?) nas escolas precise, urgentemente, da solução a contento da questão maior - o caráter da reflexão teológica. O que é "ensino religioso"? Catequese?, logo, "racionalidade política e expressiva" (Habermas!) para boas crianças? Tá, e quando conseguirem (por enquanto, os evangélicos, gestores das rotinas, entravam seu ingresso) assumir as "cátedras" fiés crentes de outras religiões, com o mesmo espírito catequético? Estamos todos a serviço de nossos deuses... A "paz" escolar, por enquanto, perdura sob o controle da gestão, porque os cristãos sabem, têm dois mil anos de treinamento, acomodar, sob si, as minorias. Mas, se e quando a situação, no mínimo, se contrabalançar, não duvido: haverá reclamações piedosas de fidelíssimos cristãos, indignados, evocando o Artigo 5º, Inciso VI da Constituição da República Federativa do Brasil. Que abusurdo, estão pregando Exu pro meu filho! Mas isso é encosto!

9. Sua menção ao Vaticano, somada à minha menção aos nossos "romanos", aprofunda em mim o desejo de ver a discussão chegar até nossas consciências, sem qualquer espírito de gueto, sem corporativismo, sem privilégios, mas numa base compatível ("é preciso ser compatível", cf. Jérôme H. Règles Barkow). É preciso que queiramos, hás de concordar comigo, Haroldo, a igualdade irrestrita entre todos e toda as oportunidades, de direitos e de deveres. É preciso que eu queira, ela, uterinamente, eu prostaticamente, que o "outro" tenha, não antes de mim, não depois de mim, mas ao mesmo tempo que eu, os meus mesmos direitos e deveres. Isso é - até - evangélico!, mas, que pena, contudo, de um Evangelho muito velho, pouco lembrado na vida real.

10. Minha trincheira, portanto - e daqui só arredo pé e baioneta quando um soldado me mostrar ou que não há guerra, ou ela acabou, ou que meu lado é do outro lado (se me acabam as balas, uso ela pra dar na cabeça) é pela imediata e incondicional dissolvição da matriz confessional medieval (na Universidade, bem entendido). Enquanto, na vida privada, cada qual pode crer no que pode e quer, na pública, o discurso tem de ser - obrigatoriamente - aberto, na dimensão da compatibilidade: quanto mais quando articulado numa plataforma meta-lingüística, teórico-metodológica, "artificial", elaborada sob consenso comunitário e sob estritas regras (sempre críticas) de universalidade e falseabilidade - a(s) ciência(s).

11. Eu peço pouco. É que quem a pode dar tem (ainda) a mão tão fechada que custa ver o quanto é irrisória a utopia. Oxalá saibam minhas irrupções críticas fazerem as vezes de óleo emoliente...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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