sábado, 15 de novembro de 2008

(2008/46) Liberdade religiosa

1. A imagem esboçada por Osvaldo no seu post 2008/40 é deveras interessante. “O que faltaria a Hans Küng, talvez fosse o que me sobra: estar metido numa situação nova, um cenário novo, no qual o MEC põe, na mesma sala, e manda brincarem bem-comportados, teólogos de todas as orientações religiosas. Hans Küng ainda está sozinho na sala. Eu, cercado de colegas de outros mitos, de outros dogmas, de outros deuses.”

2. Hans Küng, na Europa, também não está mais totalmente sozinho na sala. Já há outros entrando, naquela sala de aula comum, pública. A Europa resiste, conjurando sempre de novo suas raízes e seu devir judaico-cristão. Mas a tradição está se dissolvendo. Ainda há muitos recitadores. Mas o povo de suporte vai faltando. Sem o ritual, a tradição mítica vai esmorecendo. O monopólio está tendo suas bases corroídas.

3. Fico contente que no Brasil a República botou linhas demarcatórias em torno da sala, dizendo que todos, “de outros mitos, de outros dogmas, de outros deuses” devem [poder] estar na sala. Considerando nosso passado colonial e imperial como absoluta monolitização religiosa, até que não estamos mal.

4. O Art. 5º, Inciso VI, da Constituição Federal de 1988, afirma: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”. Aqui estamos diante de tal demarcação. Estão protegidas aquelas áreas reservadas ao indivíduo. Ao Estado, à República, cabe um “dever de não-fazer, de não atuar; de abster-se, enfim, naquelas áreas reservadas ao indivíduo” (Celso Bastos, Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, p. 32).

5. Sendo uma prerrogativa individual oponível ao Estado, cabe primeiramente a este uma obrigação negativa, isto é, de não fazer, de não atuar. Além da obrigação negativa, contudo, o Estado deve assumir obrigações positivas, que consistem no dever de proteger esse direito individual em face de eventuais violações por parte de particulares e até por autoridades, servidores, empregados ou agentes públicos. Se for preciso, o Estado deve até usar de seu poder de polícia.

6. Deve-se observar o duplo direcionamento na disposição constitucional sobre a liberdade religiosa na CF 88. Por um lado, é liberdade em relação ao Estado, e, por outro lado, é liberdade através do Estado. O ministro Gilmar Mendes, do STF, ensina que “não [se] cuida apenas de ter liberdade em relação ao Estado [...], mas de desfrutar essa liberdade através do Estado” (In: Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999, p. 46).

7. É interessante ainda registrar, em termos conceituais, a posição do jurista português Jorge Miranda, que afirma: “A liberdade religiosa não consiste apenas em o Estado a ninguém impor qualquer religião ou crença ou a ninguém impedir de professar determinada crença. Consiste ainda, por um lado, em o Estado permitir ou propiciar a quem seguir determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem (em matéria de culto, de família ou de ensino, por exemplo) em termos razoáveis” (Manual de Direito constitucional. 3 ed. Coimbra: Coimbra editora, 2000, p. 409).

8. A LDB de 1996 assume esta postura constitucional. É verdade que houve um avanço sem o devido avanço epistemológico no fazer teologia ou em como promover o ensino religioso supraconfessional. Mas há uma caminhada. Há muitas iniciativas.

9. Digo que não estamos mal. Estando como diferentes na sala ainda não aprendemos a dialogar, nem conversar direito se conversa. Cada qual ainda está demasiadamente encastelado. Mas a situação é nova para nós se considerarmos que até a Constituição de 1891 havia monopólio religioso [oficial] absoluto.

10. Digo isso refletindo sobre notícias acerca da estada do Presidente Lula no Vaticano nesta semana, mais exatamente no dia 13 de novembro. Temia-se a assinatura de uma 'concordata', mas o que saiu foi um 'acordo'. O Estado de São Paulo trouxe a seguinte matéria a respeito:

10.1. "Hoje, na biblioteca do Vaticano, ocorrerá a primeira audiência oficial que será concedida pelo papa Bento XVI ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

10.2. A Santa Sé pressionava o governo desde 2000, durante o pontificado de João Paulo II, a fechar um acordo que ratificava a garantia do ensino católico. Temendo polêmicas, o Itamaraty costurou um texto que estende essa garantia a outros credos. Por considerar uma intromissão em assuntos do Estado, o governo não aceitou artigo que dava garantias, ainda, ao cumprimento de feriados religiosos, como Natal e Nossa Senhora Aparecida.

10.3. O acordo, que terá 20 artigos, praticamente é uma cópia do parágrafo 210 da Constituição e do artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que estabelecem o direito individual dos alunos em ter disciplina facultativa de ensino religioso no horário normal das aulas, segundo informação de Vera Machado, embaixadora do Brasil junto à Santa Sé.

10.4. Em 2007, na visita de Bento XVI a São Paulo, educadores e religiosos travaram uma polêmica sobre um possível acordo que feria o princípio do Estado laico e separado da Igreja Católica, estabelecido pela primeira Carta da República, em 1891. Havia um temor de mais isenções de impostos à pessoa jurídica católica do que a Constituição garante a outras religiões.

10.5. Em entrevista ontem em Roma, a embaixadora Vera Machado leu os 20 artigos do acordo, especialmente o parágrafo primeiro do artigo 11º, que trata do ensino religioso. “O ensino religioso católico e de outras religiões, de matrícula facultativa, constitui disciplina do horário normal das escolas públicas de ensino fundamental, assegurando o respeito à diversidade cultural e religiosa do Brasil, em conformidade com as leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação”, diz o documento."

11. Na mesma sala, sob o guarda-chuva do pacto constitucional da República podemos começar a dialogar. A possibilidade do diálogo mais uma vez foi salvaguardada.


HAROLDO REIMER

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