quarta-feira, 3 de julho de 2019

(2019/021) Discurso de Paraninfo à turma de formandos de Teologia 2018 da Faculdade Unida de Vitória



Sobre um sal que não salga mais



Vós sois o sal da terra; e se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos homens (Mateus 5,13). 


Há tantos séculos os cristãos experimentam a religião como ética e moral que dificilmente se dão conta de que religião é uma coisa, e ética e moral, outra. E não se pode dizer que se trata de uma percepção do cristão médio apenas. Mesmo os mais progressistas cristãos operam, hoje, o conceito de cristianismo como ética pública. Para muitos pensadores contemporâneos que articulam reflexões acerca da religião ocidental, a realização última do cristianismo seria a sua transformação em plataforma ética universal. Nesse caso, ser cristão seria agir publicamente com responsabilidade ética. Frequentar ou não templos seria apenas uma idiossincrasia sem maior relevância... Nesse sentido, e nos termos daquelas reflexões, em última análise, o cristianismo constituiria um sistema ético, dentro do qual se pode ou não oficiar ritos e experimentar-se a mística.

Não é, todavia, o caso de toda religião. Mesmo no Brasil, há religiões que não se confundem com sistemas éticos, muito menos se submetem a sistemas éticos que lhe seriam superiores em termos de conjunto. São sistemas de rito e mito que se mantêm minimamente independentes dos sistemas de ética pública e moral privada. Não é que seus adeptos não estejam preocupados com ética e moral. Estão. Tanto quanto ou até mais do que cristãos, eventualmente. Mas estão preocupados com ética e moral enquanto sistemas de ética e moral, e não como derivado filosófico de sua matriz religiosa. Para esse tipo de compreensão da realidade, religião é religião, ética é ética, e cada sistema opera em seu próprio momento e lugar.

Desde pelo menos o Novo Testamento que está assentada a máxima de que o deus cristão é bom e que, sendo bom, dele só pode vir o que é bom. O deus cristão não apenas age com amor, como se confunde com o próprio amor. O deus cristão é, acima de qualquer outra coisa, um deus ético. Pode-se tentar encontrar as origens dessa configuração teológica na crítica profética, por exemplo, e é mesmo o mais comum de se fazer. Para isso, assume-se que o deus cristão é o mesmo deus dos israelitas e judaítas bíblicos, e considera-se que, se Amós diz “corra o juízo como as águas, e a justiça, como o ribeiro impetuoso” é porque Yahweh era um deus justo e ético no Antigo Testamento, tanto quanto o é no Novo Testamento, e até hoje, considerando-se assim que Yahweh é o mesmo deus dos cristãos. Nesse caso, a ética cristã seria apenas o desdobramento da ética profética, e isso explicaria porque o cristianismo constituiria, em última análise, um sistema de valores públicos.

Há, todavia, um problema aí. Uma passagem de Isaías é reveladora de quão problemática é essa vinculação entre o deus do Antigo Testamento, o deus do Novo Testamento, o deus cristão e o cristianismo como sistema ético: “eu formo a luz, e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas” (Is 45,7). No texto, “o Senhor”, isto é, Yahweh, afirma que é ele quem faz o bem e o mal. Os termos são shalom e ra’. Traduzimos shalom como paz. Para a cultura brasileira, paz é ausência de conflito. Para a bíblica, não: shalom é o oposto de ra’. Ra’ é desgraça, tragédia, acontecimento ruim. Não é a expressão abstrata do mal, mas a desgraça concreta da vida: fome, doença, morte. Shalom é o oposto disso. Shalom é o conjunto ótimo das condições necessárias à boa vida. Nascer uma criança e morrer uma criança, nascer de alegria e morrer de dor, as duas coisas, Yahweh diz, é ele quem faz. Yahweh não é um deus ético. É um soberano. Um soberano que está acima de qualquer lei, de qualquer injunção. Ele faz a luz e a treva, ele cria a bonança e a desgraça, ele dá e ele toma, ele faz o que lhe dá na telha, ele é dono único de seu nariz, ele não presta contas a ninguém. Se faz o bem? Claro. Um soberano faz o bem. Mas faz o mal também? Ah, sim, faz, e quando quer. Yahweh é, ao mesmo tempo, bom e mau. Ou, dito de outra forma, Yahweh não é nem bom nem mau: é soberano.

Isso até que os persas ensinassem aos judaítas que um mesmo deus não pode ser, ao mesmo tempo, bom e mau. Esse acontecimento, isto é, o encontro da teologia judaíta com a teologia persa mudou radicalmente e para sempre a teologia judaíta. Yahweh foi “castrado”, perdeu sua soberania, tornou-se um deus bom, e só bom. Nesse dia, a religião foi capturada pela ética, e o cristianismo vive ainda esse dia. Nasceu nele, cresceu nele, e nele permanece. 

É por isso que os pensadores contemporâneos reduzem o cristianismo a um sistema de ética pública. Quando se vai fazer a redução de um sistema a sua essência, quer-se perguntar pelo que há de significativo nele, e o que é residual e até dispensável. Como, no cristianismo, gravitam duas estrelas, a religião e a ética, quando se pergunta o que é mais relevante para a sociedade, é óbvio que a resposta é a ética. Por isso, reduz-se com tanta facilidade o cristianismo a injunções éticas, no campo progressista, e morais, nos reacionários. No fundo, duas faces da mesma operação, dois momentos daquele mesmo dia, que começou quando Yahweh trouxe o rei persa, Ciro, pela mão...

Nesse sentido, compreende-se que se tenha dito que “sois o sal da terra”. Há aí uma injunção ética imposta aos adeptos da religião. “Sois sal”. Reduzida a sal, a religião deve servir para salgar. O cristianismo deve salgar, então, já que é sal. Mas, e se não serve mais para salgar? E se o cristianismo se torna uma religião ideologicamente pervertida em termos éticos? E se o cristianismo passa sua existência a maldizer os deuses de outras pessoas? Esse sal presunçoso serve para salgar? E se o cristianismo institui a escravidão negra moderna e vive dela? Esse sal escravagista serve para salvar? E se o cristianismo mantém a misoginia que recebeu de judeus e de gregos? Esse sal misógino serve para salgar? E se o cristianismo assume como pecado a homossexualidade? Esse sal homofóbico serve para salgar? E se o cristianismo deixa-se instrumentalizar por políticas e valores ultra-neo-liberais, a ponto de por a serviço da entrega da nação e da usurpação de direitos suados de trabalhadores e trabalhadoras? Esse cristianismo fascista serve para salgar? E se o cristianismo recusa a ciência em nome de dogmas caducos e mitos sem pé nem cabeça? Esse cristianismo obtuso e ignorante serve para salgar?

Quando o cristianismo se assume como um sistema de valores, como um sistema de ética pública, é por meio de critérios éticos, públicos, universais e plurais que deve ser julgado. Se o cristianismo for assumido de fato como um sistema ético público, então sua ética precisa ser uma ética que leve em conta as questões públicas, a partir da perspectiva pública e com base nos atores públicos. Não é compreensível que um sistema que se considere ético constitua base para aviltamento de religiões, mulheres, negros, homossexuais e pobres. Um cristianismo fascista assim é um sal que não serve mais, que não salga mais, que deve ser jogado às ruas para ser pisado não apenas por mulheres, negros e homossexuais, mas também por todos os homens éticos.

Sois sal. Ainda há serventia no sal que sois?
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Discuso proferido sexta-feira, dia 28/06/2019, às turmas de formatura em Teologia da Faculdade Unida de Vitória.





Osvaldo Luiz Ribeiro

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