sábado, 11 de abril de 2009

(2009/153) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - V (pergunta 3)


1. A terceira pergunta de Harnack pode ser assim traduzida: "é a experiência de Deus diferente do despertar da fé, ou é idêntica a ela? Se for diferente, o que a distingue do fanatismo incontrolável? Se for idêntica, como poderia ser de outro modo que não através da pregação do evangelho? E como pode haver essa pregação sem conhecimento hitórico e reflexão crítica?" (1).

2. Bem, em relação às duas perguntas anteriores, percebe-se que a abordagem temática mudou. Não se trata mais da Bíblia em si, mas de como o ser humano experimenta aquilo que, em tese, está pressuposta na relação cristã com a Bíblia - "a experiência de Deus". O tema, antes, era teórico-metodologicamente histórico - como compreender, hoje, um texto escrito há séculos? Agora, a abordagem temática é teológico-filosófica e psicológica. O modus operandi do processo ainda continua ligado ao modo como o ser humano experimenta, seja "a experiência de Deus", seja o "despertar da fé".

3. Naturalmente que essa não é uma questão para teorias abertas. Ela só pode ser respondida por um sistema teórico doutrinário, logo, fechado. Não poderia ser de outro modo, porque, fora de sistemas doutrinários, não há como discutir o que viria a ser alguma coisa como "a experiência de Deus". Bem, fenomenológico-religiosamente, sim, poder-se-ia analisar o fenômeno, o que implicaria em observá-lo sob os ângulos psicológicos, antropológicos, sociológicos, histórico-religiosos, fenomenológicos, filosóficos. Se nos permitirmos a pergunta científico-humanista sobre o que vem a ser aquilo que o fiel chama de "experiência de Deus", então é possível formular a questão. Todavia, no âmbito de um interesse objetivo - teológico, metafísico e ontológico - quanto ao significado sobrenatural de uma "experiência de Deus", restaria, apenas, a racionalização do fenômeno pela ótica da fé que o experimenta - a que se reduz, com efeito, a "teologia".

4. Harnack aceitou os termos categoriais da teologia, e, com isso, tornou imprestável a questão para além da categoria teológica. Quando digo "teológica", naturalmente que me refiro à doutrina, isto é, ao discurso racionalizado e catequético-apologético da Igreja. As Ciências Humanas não têm a mínima condição de entrar nesse diálogo, não do modo como ele está posto. As Ciências Humanas só podem lidar com o que é humano, demasiadamente humano. Elas só podem ser kantianas e pós-kantianas-mas-ainda-kantianas - pelo menos nada mais do que "externamente" kantianas, ou seja, metafísicas e ontológicas, quando isso implique mitologia e sobrenaturlismo. Não é que as Ciências Humanas sejam atéias - elas são é imprestáveis para lidar com o tema "Deus" da forma como a mitologia e a fé lidam, o que atesta o fato inequívoco, eventualmente retoricamente dissimulável, de que a teologia, tal qual é e está, não tem absolutamente nada de "científico".

5. O que não significa que as Ciências Humanas não possam lidar com o tema "Deus" da forma como ele se apresenta fenomenologicamente na experiência humana. Isso significa que as Ciências Humanas só podem tratar "Deus" como objeto da consciência humana (um "ser de espírito", noológico - isso independentemente de haver alguma outra realidade para além dessa representação noológica, o que não mudaria em absolutamente nada a questão). Assim, só existe uma resposta científica possível para a primeira pergunta: "a experiência de Deus" e "o despertar da fé" são uma só e a mesma coisa.

6. Há uma pseudo-científica teologia no século XX, de recorte "luterano", que procura argumentar através da distinção retórica entre "Deus", na condição de Ser, e "Deus", na condição de termo teológico da fé, através do qual, "analogicamente", o homem se refere ao Deus-Ser, sem, contudo, "possuí-lo". Bem, essa é apenas uma estratégia cripto-teológica de manter, em plena era pós-kantiana e pós-feuerbachiana, o velho discurso da fé mitológico-metafísica. O que permanece escondido aí, o tempo todo, é o fato de que o "Deus-Ser" é, apenas, uma hipótese da mente humana (e se há alguma coisa , onde se afirma estar/haver esse "Deus-Ser", essa hipótese, contudo, não pode garantir). Fenomenologicamente, não há distinção alguma entre os dois termos "Deus" da famosa fórmula de Tillich: "Deus é símbolo para Deus", porque, o primeiro, é termo que os homens inventaram, e o segundo, conceito que os homens inventaram. Logo, uma palavra-invento para um conceito-invento. Isso, claro, para uma abordagem científica da questão.

7. A fé, todavia, mesmo aquela de um tipo assim de teologia "científica" ("científica" aí segundo os padrões dela) do século XX - a de Harnack? -, distingue ontologicamente um "Deus-Ser" de um "Deus-termo" e, com isso, pensa poder aparecer em praça pública com a aparência de consistência teórica, quando, na verdade, apenas obteve um modo não muito honesto de fazer "ciência".

8. O modo, portanto, como Harnack coloca a questão - jogando-a no tabuleiro da teologia, ainda que ele considere essa uma teologia "científica" - alerta-me para o fato de que Harnack ainda opera sob o regime da metafísica, por mais mitigado o estado em que ela se deixe flagrar. De outro modo, soaria ainda menos pertinente o endereçamento da questão a "teólogos que desprezam a teologia científica". Se Harnack partisse da ciência, ele não perguntaria aos "teólogos que desprezam a teologia científica" - mas o que é teológica científica, para Harnack? - se eles consideram a mesma coisa ou coisas diferentes "a experiência de Deus" e "o despertar da fé", ele simplesmente afirmaria como a mesma coisa - porque são. Uma vez que ele faz a pergunta, das duas uma: ou emprega muito equivocadamente a Epistemologia e a Retórica, ou assume, conscientemente, que haja uma dimensão da teologia científica (que ele chama de científica, claro) em que é possível falar de "experiência de Deus" de um modo que não signifique necessariamente a mesma coisa do que significaria, por exemplo, para a Fenomenologia da Religião, para quem "a experiência de Deus" e "o despertar da fé" são a mesma coisa.

9. Além disso, Harnack passa para a segunda parte da pergunta vinculando a "experiência de Deus" e/ou "o despertar da fé" à pregação do evangelho. Vejo aí um indício da plataforma sobre a qual Harnack reflete - apenas uma teologia enquanto norma, enquanto política, pode refletir sobre o vínvulo entre "pregação", "fé" e "experiência de Deus". Harnack parece ainda postular uma hipótese de que haja alguma forma de vinculação possível entre uma "pregação histórica" de Jesus, uma compreensão histórica dessa pregação e uma proclamação contemporânea "correta" (válida, pertinente). É a mesma atitude que percebo em Hans Küng, não necessariamente o de Teologia a Caminho, mas, agora, o de Por que ainda ser cristão hoje? Aliás, a tese fundamental de Hans Küng, aí, é rigorosamente a mesma que a de Adolf von Harnack em A Essência do Cristianismo - Jesus de Nazaré é essa essência, e o que ele teria pregado, a esência do evangelho.

10. Ora, sob que abordagem se pode falar assim? Não, certamente, a da ciência. A ciência jamais poderá servir de critério para uma atitude normativa em face da história, porque a ciência só há de nos fornecer informações, mas não um critério de orientação, tema da ética, que, enquanto conjunto de normas de conduta, constitui um conjunto propositivo característico da pragmática política, e que, quando abordada sob a perspectiva heurística (científicva), perde, automaticamente, a capacidade de orientação. Não há ontologia possível para a História, de modo que o método histórico-crítico poderia responder a pergunta pelo conteúdo histórico da pregação de Jesus, mas, jamais, desde aí afirmar que precisamente esse conteúdo, e não o de Paulo,´constitua, em termos ontológicos, o "Evangelho".

11. Quando Harnack (e Hans Küng) falam de teologia, ainda não estão pensando a partir da ciência, mas, a rigor, pensando a partir da teologia, ainda que, e essa talvez seja a sua maior virtude, aproximando-a até o limite da desintegração, das ciências. Todavia, há, ali, riscado no chão, um limite, um limite estético-político, que tanto Harnack quanto Küng se impõem - e, assim, a terceiros, já que tal limite chega a ser normativo suficientemente para um diálogo retórico com quem despreza esse paradigma teológico. Todavia, essa "virtude" de Harnack pode ter respondido pela vitória de Barth - irredutível e inflexivel defensor da ortodoxia eclesiástica.

12. Uma teologia científica não teria como responder à terceira pergunta de Harnack. Ela exige uma relação íntima e subjetiva por parte do teólogo, atitude suficientemente valorativa, logo estética, e normativa, logo, política, que pudesse crer na possibilidade de determinar o que daquela "pregação" original de Jesus de Nazaré, enquanto histórica, tenha pertinência ontológica. Em termos históricos, ela não é em nada diferente de qualquer um dos pronunciamentos de quaisquer dos fundadores de quaisquer religiões, e mesmo do que qualquer homem ou mulher discursasse ontem, hoje e amanhã. É - apenas - uma relação tradicional, subjetiva e valorativo-normativa quem pode pôr, frente a frente, o teólogo e esse Jesus, de um modo como frente a ninguém mais ele se colocaria.

13. Não, uma teologia científica (aplicada ao Cristianismo) é meramente descritiva. Descrever o conteúdo da pregação de Jesus, de Paulo, de Agostinho, de Lutero - é tudo quanto ela poderia - e quer - fazer. Se, como o fazem Harnack e Kans Küng, o teólogo vai determinar - e isso é normativo - que a pregação de Jesus, e não a de Paulo, e não Nicéia, e não os concílios universais da Igreja, e, ainda, essa pregação de Jesus conforme assinalada nos Evangelhos, os sinóticos, e não em João, bem, nada nessa atitude é "científico".

14. Não que Harnack, Hans Küng ou qualquer outro - eventualmente, eu - não possa tomar uma atitude assim, estétia e/ou política, em face da Tradição e da História: a religião não se resume à teologia científica. Quem não pode, sob nenhuma circunstância, agir asim - e, se agir assim, a impertinência do adjetivo revelar-se-á ostensivamente, alguma coisa entre o tragicômico e o reprovável, o impertinente - é uma teologia que se chama a si de científica. Se o for, não pode agir assim. Se agir assim, não é.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO1. Adolf VON HARNACK, Fifteen Questions to the Despisers of Scientific Theology, Christliche Welt, 11 de janeiro de 1923, em: Martin RUMSCHEIDT, Adolf von Harnack: liberal theology at its height. London: Collins, 1989, p. 85-86.

(2009/147) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - I
(2009/149) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - II (pergunta 1, parte 1)
(2009/150) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - III (pergunta 1, parte 2)

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