quinta-feira, 9 de abril de 2009

(2009/149) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - II (pergunta 1, parte 1)


1. Conforme informei, inicio aqui, então, a série de respostas às Quinze Perguntas aos Teólogos que Desprezam a Teologia Científica, as quais Adolf von Harnack endereçou aos destinatários pertinentes em 11/01/1923. Faço-o, conscientemente, na condição de "intrometido", porque, para todos os efeitos, já que dirigidas aos teólogos "que desprezam a teologia científica", nenhuma das quinze perguntas me diz respeito diretamente - até porque considero que a teologia científica de Harnack ainda precisaria tornar-se mais científica do que ele a foi capaz de conceber. É, pois, arrisco dizê-lo, um serviço que pretendo prestar à teologia pensada como ciência, absolutamente livre de qualquer controle confessional ou eclesiástico, ainda que, ao fim e ao cabo, a serviço também da Igreja - se à Igreja interessa uma teologia verdadeiramente científica. Mas, se não, apenas lamento (por ela!). Aos que por isso se interessam, eis-me cá, intrometido.

2. Assim traduzo a já traduzida pergunta número um, de Harnack: "é a religião da Bíblia, ou são suas revelações, tão completamente uma unidade que, em relação a fé, culto e vida, se possa simplesmente falar de "a Bíblia"? Se não é assim, pode-se deixar a determinação do conteúdo do evangelho ao conhecimento heurístico do indivíduo, à sua experiência subjetiva, ou, antes, precisamos aqui de conhecimento histórico e reflexão crítica?" (1).

3. A pergunta-problematização de Harnack divide-se em duas partes - 1) se a Bíblia é ou não uma "unidade" e 2) que tipo de "exame" essa unidade ou não demanda. Bem - se ela é uma unidade...? Depende. De quê? Do que "você" decidir. Em si, a Bíblia já é um artifício, um artefato. Ninguém a "compôs". O que ela veio a ser não estava previsto em nenhuma das partes/fases anteriores, partes essas que, a despeito de sua ignorância histórica do processo futuro em que eram lanças, se não tivessem sido postas a constituir esse conjunto, tal conjunto jamais teria existido. Isto é - enquanto conjunto, o todo deve "satisfação" às partes. Mas, ao contrário, nenhuma parte deve satisfação ao todo, porque as partes e o todo não são co-naturais, são artificiais, arbitrárias - aprouve a alguém ou a alguma comunidade reunir isso com aquilo, e eis a Bíblia. Mas o "isso" e o "aquilo" nada têm a ver com "a Bíblia". Naturalmente que, isso, em termos históricos.

4. Assim, cabe a quem vai tomar a Bíblia nas mãos decidir o que ela é aí, aqui e agora, quando a pego nas minhas mãos. Se quem a toma, toma-a como cânon, ela é, então, uma coisa. Se quem a toma, toma-a como biblioteca, ei-la, já, outra coisa. Mas, ainda assim, "biblioteca" aí é um conceito insuficientemente claro, porque, a rigor, cada "rolo/livro" dela é, em si, uma biblioteca, já que o que foi feito com a Bíblia foi igualmente feito com cada livro, resultado de montagens arbitrárias em relação ao projeto inicial de cada narrativa que, agora, compõe um livro da Bíblia e a própria. Não entra aí a questão de se essa arbitrariedade é boa ou ruim - ela é histórica: isso foi feito - costuraram-se pedaços de pano e fez-se uma colcha de retalhos que, aos olhos de quem fez, não era apenas bonita, mas fazia sentido. Logo, é quem pega nas mãos a Bíblia, hoje, que precisa decidir-se pelo que tem nas mãos.

5. Se optar pela consideração da Bíblia como "bibliotecas" - é-se livre para assim se agir -, pronto: acabou a "liberdade". A partir daí, da escolha paradigmática, não há mais liberdade: se a Bíblia é um conjunto de "rolos" independentes que, por sua vez, são o conjunto de narrativas também independentes, resulta inquestionável que não há a mínima possibilidade, por menor que seja (salvo a trapaça retórica) de se considerar essa Bíblia uma unidade. Nem de fé, nem de culto, nem de vida. Cada narrativa "corre o risco" de constituir um mundo peculiar, com uma "fé" peculiar, uma litrugia própria, uma vida localizada, o que será determinado, necessariamente, caso a caso. E digo que tal contatação é inquestionável, porque o critério para tratar-se a Bíblia como bibliotecas é um critério histórico e, portanto, deve ser tratado sob a rubrica da história. Selaste o touro? Monta! Pariste Mateus? Embala-o!

6. Todavia, pode-se "simplesmente" passar por cima da questão histórica (acho um crime, mas, em termos pragmáticos, é uma possibilidade legítima), e, antes que tomar nas mãos a Bíblia por meio de critérios históricos, fazê-lo por meio de critérios ou estéticos ou políticos. O critério de Barth - como de resto, de toda teologia "normativa" (não importa a quantas palavras "espirituais" se recorra) - é político. Seja por força do critério estético, seja por força do critério político, a Bíblia torna-se aquilo que se deseja. Se é estético, é, pois, uma operação subjetiva, personalíssima, que diz respeito ao sujeito que opera o critério, válido para ele - e só para ele. Se é político, resulta impô-lo a terceiras consciências - é disso que se trata quando se fala de "normativo", afinal. A rigor, ainda é da cabeça de um sujeito que sai o critério "político", mas, diferentemente do caso pragmático estético, em que o critério é válido subjetivamente, sob o regime político, o critério é imposto objetivamente à comunidade. Num ou noutro caso, não faz diferença, a Bíblia é o que se quer fazer dela.

7. Aqui se pode somar Karl Barth e Brevard S. Childs (falecido em 2007). Para Barth, a Bíblia deve ser encarada como o conjunto objetivo da revelação de Deus, entendida essa como a expressão objetiva de uma "Dogmática da Igreja", ou seja, um deposito fidei. Trata-se de um conceito platônico-político-teológico, que, por força da tradição teológico-cristológica, faz da Bíblia uma unidade doutrinária. A História, aí, bem se vê, vai pro brejo. Por sua vez, Childs afirma que a Bíblia é o "cânon" (qual, Childs?, qual? - até a sua "determinação", dentre os pelo menos cinco modelos alternativos [LXX, Tanak, Vulgata e cânon "ortodoxo" e "protestante"] - é altamente arbitrária), de modo que o cânon deve ser o critério de leitura de cada "livro". Bem, trata-se de um suposto critério "teórico-literário", mas, a rigor, estamos, como sempre, diante de argumerntações neo-ortodoxas, dessa vez voltadas a uma platéia que precise de um aparentemente mais sofisticado regime de retórica para sua "adequação" ao gosto teológico do sistema. Eu ficaria honrado, e sentir-me-ia respeitado, se cada arbitrariedade fosse assumida como tal, e eu fosse honestamente convidado a aceitar tal arbitrariedade por meio de minha própria arbitrariedade - porque, aí, tudo é arbitrário, ainda que legítimo. Entretanto, o conjunto das retóricas de convencimento que se usa para convencer-me do absurdo é ofensivo - assim o considero.

8. Como se pode depreender de minha reação "passional", aceito que haja, apenas, nada mais além disso, duas únicas opções: 1) ou aceitar-se o critério histórico (objetivo, no sentido de que é a única "ponta" controlável do processo em termos da relação genética do sentiudo da narrativa [todas as demais opções fatalmente se verão obrigadas a capitular diante de processos alegóricos de apropriação da potência polissêmica de textos - sem que o gostem de confessar, eis o drama!]), e, com isso, descobrir nas mãos um sem número - chegará a contagem à casa do milhar? - de textos independentes (objetividade sem unidade), ou 2) aceitar-se o critério ideológico: confessadamente dogmático (Barth) ou alegadamente teórico-literário (Childs), assumindo, assim, que o que se tem nas mãos é uma "unidade" semântico-teológica (unidade com arbitrariedade).

9. Bem, esse é o primeiro passo, e o segundo depende dele. A meu ver, uma teologia científica (quando referente ao judaísmo/cristianismo, porque a teologia kardecista e umbandista, por exemplo, prescinde dessa discussão, só e somente só pode constituir-se por meio do critério histórico, porque ou submete-se ao seu objeto tal qual ele se apresenta em sua própria história, ou a teologia científica só terá de científico o nome, nada mais que isso (como é o caso da teologia que, presentemente, está no MEC).

10. Sob o regime, pois, das ciências, não há qualquer tipo, sob nenhuma circunstância ou hipótese, de "unidade" na Bíblia, como não o há na "vida" e na História. Não que não haja relações, correlações e/ou interrelações. Há - e muitas. Mas isso não constitui uma "unidade". Às vezes, constitui um diálogo. Outras, um enfrentamento. Quando se trata de enfrentamento, algumas vezes resulta em cooptação de uma das partes pela(s) outra(s), às vezes, sua destruição, outras, ainda, um cisma. Cada caso é um caso. História é singularidade! Podem-se encontrar amarrações inclusive artificiais - como no caso das narrativas do dilúvio. Em outros casos, as amarrações são tão bem feitas que se julga difícil imaginar que ali haja não apenas a mão de diferentes autores, mas, sobretudo, a mão bem treinada de um redator - como no caso da narrativa da "sarça ardente".

11. A teologia científica, quando e se aplicada à Bíblia, não tem nem terá a menor preocupação em converter esse conjunto de expressões históricas, de objetivações de consciências situadas, circunstanciadas geopolitica e culturalmente, em "uma" Palavra. Não. Nem lhe interessa. O que essa teologia científica, quando e se aplicada à Bíblia, quer, é lidar, individualmente e/ou no conjunto, com cada narrativa, porque cada narrativa é, para a teologia científica, um mundo próprio e peculiar, um nicho ecológico que precisa e vai ser preservado em sua especifricidade histórica. E, se por um prurid da tradição - e porque consideraríamos isso um "pecado"? -, quer o teólogo ver, aí, o "sagrado", poderá, então, "vê-lo" em cada expressão partcular dqaquela gente agora morta, mas cujo espírito vive a nos contar das suas dores e amores.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

1. Adolf VON HARNACK, Fifteen Questions to the Despisers of Scientific Theology, Christliche Welt, 11 de janeiro de 1923, em: Martin RUMSCHEIDT, Adolf von Harnack: liberal theology at its height. London: Collins, 1989, p. 85.

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