sexta-feira, 10 de abril de 2009

(2009/150) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - III (pergunta 1, parte 2)


1. Resta agora, quanto à pergunta número um de Harnack, enfrentar-lhe a segunda parte, que assim traduzo: "se não é assim, pode-se deixar a determinação do conteúdo do evangelho ao conhecimento heurístico do indivíduo, à sua experiência subjetiva, ou, antes, precisamos aqui de conhecimento histórico e reflexão crítica?" (1). Se a expressão "à sua experiência subjetiva" constitui aposto, e, nesse sentido, um reforço ao sentido de "conhecimento heurístico do indivíduo" (o fato de as duas expressões estarem separadas, apenas, por vírgula, bem como a série ver-se seguida da conjunção "ou", a meu ver, reforça essa interpretação), resulta necessário dizer que essa segunda parte constitui-se da alternativa entre dois modos de procedimento metodológico - um, subjetivo (estético e político) e, outro, crítico. Não está de todo claro para mim o que é, exatamente, que Harnack está querendo dizer com a primeira alternativa, senão que, para que ela faça sentido, devo considerá-la oposta à segunda (como as duas alternativas da primeira parte da pergunta [objetividade sem unidade versus unidade com arbitrariedade]). Uma vez que a fórmula "conhecimento histórico e reflexão crítica" é absolutamente fácil de entender, interpreto o que quer que Harnack quisesse dizer com a expressão apositiva "ao conhecimento heurístico do indivíduo, à sua experiência subjetiva" como sendo o inverso da atitude e da operação críticas.

2. Isso posto, posso, agora, dedicar-me à resposta. Mais uma vez, eu diria que o modo como se deve ou se pode ler a Bíblia depende do critério com que a Bíblia foi - ela já está nas mãos do leitor - tomada. O método é escolhido em função da idéia que se faz do objeto a ser analisado - assim como a isca a ser escolhida depende do tipo de peixe que se pretende pescar. Por outro lado, a idéia de que tipo de objeto se tem nas mãos (a ideologia), é ela quem decide, portanto, que tipo de método se vai usar. Por sua vez, ainda, uma vez estabelecida a ideologia, uma vez daí decorrida a metodologia, os procedimentos conseqüentes são fáceis de ser antecipados.

3. Ora, se o leitor toma a Bíblia como deposito fidei ou como que uma unidade teórico-literária, ambas formulações não-históricas, alguma coisa entre resultado de pragmática(s) estética e/ou política, o método que ele terá escolhido será, necessariamente, alegórico. Mesmo no caso de um Childs, que estabelece o "cânon" como critério, porque a Bíblia é um livro "cristão", quando tomar "Cristo" como critério hermenêutico e o puser a "abrir" os segredos da Bíblia Hebraica, ou, mantendo-se apenas aí, quando tomar as determinações ulteriores do Segundo Templo, então por meio desse código ler todo o resto (e, se num e noutro caso, não procede assim, o que resulta de sua proposição metodológica de tratar-se o "cânon" como critério?), mesmo nesse caso, é alegoria que se pratica. Em termos teórico-metodológicos - intentio lectoris, definição que a tentativa de estabelecer papel e tinta como teleológicos não disfarça: apenas consciências humanas possuem expressão intencional, logo, apenas autores e leitores possuem "intentio" - a obra, nunca.

4. Sendo assim, Barth e Childs podem ler do jeito que desejarem. Naturalmente que suas metodologias estão a serviço de uma política eclesiástico-teológica (trata-se, a rigor, do controle e da salvaguarda de conteúdos tradicionais, que precisam de fundamentação e legitimação escriturística). Barth e Childs têm a seu favor o fato de que toda a Tradição - os autores do Novo Testamento, os Pais da Igreja, os teólogos orientais e ocidentais, os escolásticos, os ortodoxos protestantes, os pietistas, os conservadores reacionários do XIX - sempre leu assim, "alegoricamente", a Bíblia Hebraica e, mesmo, o Novo Testamento. Podem, portanto, "apelar" para essa corte bimilenar. O que não podem é desconsiderar o fato de que, aí, opera-se uma pragmática política, normativa, que se traduz, sempre, na sobredeterminação hierárquica da "verdade". Nesse sentido, Barth é mais coerente, porque não disfarça, sob rodeios supostamente "acadêmicos", uma intenção deslavadamente político-hierárquica.

5. Uma vez que os métodos a-histórcos rompem com o liame entre a narrativa e seu autor (como Croatto propunha em sua fase de "intelectual" da TdL, discurso abandonado em sua fase fenomenológco-exegética), por mais esforço que se faça (inclusive da parte de alguém como Umberto Eco) resta uma e apenas inapelavelmente uma única instância de determinação (produção) de sentido: o leitor. Nesse caso, o leitor tem o direito de ler segundo sua conveniência, não havendo qualquer outro critério que não ele próprio para a determinação de se ele, o leitor, soberano, leu bem. É ele o leitor? Ele leu? Então leu bem. Ponto.

6. Ou o leitor lê (tenta ler) segundo a intentio auctoris, ou lê segundo a intentio lectoris - não existe, a despeito dos livros, intentio operis. Assim, se a ideologia faz da Bíblia um livro para leitores, toda e qualquer leitura é legítima. Barth e Childs optaram por tratar a Bíblia como objeto da Igreja, e, assim, lê-la segundo critérios estabelecidos estético-politicamente pela Igreja - nisso estão agindo legitimamente. Todavia, quando Barth quer estabelecer, a partir da Bíblia, uma Dogmática Eclesial que seja normativa para toda a Igreja, e não apenas para uma ou outra denominação (2), aí ele vai além de suas sandálias, e deixa-se acometer de megalomania e delírios teológicos cripto-católico-romanos (mas, a rigor, toda comunidade protestante, qualquer que seja, é um fragmento hologramático do catolicismo!), porque, sendo cada e qualquer leitura legítima, de onde sai (e desde aí entra na cabeça de Barth) a idéia de que todos têm de ler da forma como Barth lê, sendo que qualquer um pode ler do jeito que desejar? Política, nada mais do que política - e se essa política considera-se movida por dedicação à vontade de Deus e congêneres argumentos espirituais, perdeu-se o bom senso.

7. Em face do quadro histórico, é bem fácil flagrar-se o significado desse movimento de Barth. Até o século XVIII, a Igreja, politicamente, determina o sentido das Escrituras. No catolicismo, monoliticamente. No Protestantismo, se bem que, de cima, para terceiros, de forma absolutamente fragmentada (cada Igreja, uma Roma), do ponto de vista de cada Vaticano protestante, também monoliticamente. Nas duas Igrejas, a alta hierarquia, confessada ou dissimuladamente, estabelece, normativamente, a "doutrina". O século XIX nasce com e como o rompimento desse sistema, e, agora, deve-se determinar qual o centro de gravidade da operação hermenêutica, já que a autoridade teológica não serve mais como base e lastro. Nesse momento, ao lado do psicologismo congenial da intentio auctoris schleiermachiana (achar o sentido do que Isaías quis dizer dentro da cabeça de Isaías), posta-se o espírito crítico, próprio de uma racionalidade emancipada. Em Harnack, isso é traduzido pela fórmula "conhecimento histórico e reflexão crítica". Ora, a reação conservadora, desde 1850 até Barth, só pode significar o enfrentamento do esvaziamento político da teologia e da "exegese" escolástica-eclesiástica, a reconquista do poder normativo sobre a massa cristã, não sendo por nenhuma outra razão de fundo que a Dogmática de Barth é uma tentativa de pôr, de novo, os poderes hermenêuticos, logo, políticos, nas mãos da Igreja.

8. Quanto a Harnack, sua proposição quanto ao espírito crítico e ao conhecimento histórico é pertinente em relação ao paradigma histórico e, em termos hermenêuticos, ao pressuposto teórico-metodológico da intentio auctoris. Se, com ler a Bíblia, trata-se de "ouvir" o que disseram, e conforme o disseram, seus escritores, não se pode entregar a tarefa quer à estética, quer à política. Apenas o trabalho histórico-arqueológico de determinação do sentido original das narrativas presta-se à empreitada.

9. Se a Bíblia é tomada como resultado de um longo e lento processo histórico, uma biblioteca de bibliotecas, cada estande contendo pronunciamentos independentes e histórico-socialmente determinados, o esforço que se deve fazer para compreender não se refere, mais, à Bíblia como suposta unidade, mas às narrativas, às centenas, milhares?, de narrativas que compõem tais bibliotecas. Nesse caso, apenas o conhecimento histórico e a reflexão crítica serão capazes de fazer frente à tarefa.

10. Uma teologia científica, quando e se aplicada à Bíblia, não tem escolha: ela assume que tem nas mãos um acervo de narrativas histórico-sociais muito antigas, e vê-se, então, obrigada a dar tratamento rigorosamente histórico aos seus procedimentos interpretativos - o que demanda dela profundo conhecimento histórico e inegociável reflexão crítica. Penso que Hans Küng, conforme se pronunciou em Teologia a Caminho, não faria qualquer ressalva a uma tal conclusão (3).


OSVALDO LUIZ RIBEIRO


1. Adolf VON HARNACK, Fifteen Questions to the Despisers of Scientific Theology, Christliche Welt, 11 de janeiro de 1923, em: Martin RUMSCHEIDT, Adolf von Harnack: liberal theology at its height. London: Collins, 1989, p. 85.
2. "A Dogmática eclesial quer ser expressão da comunidade da Igreja, e não uma escola teológica particular" (Rosino GIBELLINI, A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 1998, p. 27).
3. Em duas passagens muito claras: "tanto a dogmática como a exegese exigem uma atitude científica ante a verdade, discussão crítica dos resultados e comprovação crítica dos problemas levantados e dos métodos. Como a Bíblia (...), o dogma requer uma interpretação histórico-crítica. Como a exegese moderna, a teologia dogmática moderna precisa seguir uma hermenêutica rigorosamente histórica e mantê-la sem compromissos. Também sua verdade deve sempre ser uma verdade arraigada na história" (p. 225-226) e "precisa-se de uma teologia feita a partir do atual horizonte de experiência, uma teologia rigorosamente científica e, portanto, aberta ao mundo e orientada ao presente. Parece-me que só essa teologia merece hoje um lugar na universidade, ao lado das outras ciências" (p. 196) - Hans KÜNG, Teologia a Caminho - fundamentação para o diálogo ecumênico. São Paulo: Paulinas, 1999.

(2009/147) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - I
(2009/149) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - II (pergunta 1, parte 1)

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