sexta-feira, 10 de abril de 2009

(2009/151) Aristóteles, il castrato


1. Eu sei que a ciência se constitui de uma alma iconoclasta - o espírito científico sobrevive, apenas, no ambiente da crítica e da suspeita, seu método é sumamente negativo. Sei disso. Há muito que se não traduz mais a idiossincrasia científica como uma neurose da prova laboratorial, a positividade objetiva da demonstração inequívoca. Desde - pelo menos - Karl Popper, a discursividade científica migrou para o campo da refutabilidade, da falseabilidade potencial das proposições. Eu sei disso. Mais do que saber disso, eu experimento isso, dia a dia, mesmo aqui, em Peroratio - nada, absolutamente nada, que se aproxima de minha varanda, chegará incólume aos meus degraus de madeira. Nada nem ninguém.

2. Todavia, essa pulsão iconoclasta é a parte externa de uma atitividade que, por dentro, arde-se pela verdade, e que apenas maneja a espada da crítica porque aprendeu que a verdade é mais um processo do que uma região, é mais um modus operandi do que um conteúdo. De modo que esse apego ético à verdade acalenta sempre o desejo de a ter, de estar nela, de proceder-se segundo a verdade e seu modo - sempre. Para o que só resta uma atitude - a crítica impiedosa: o mentiroso há de ser perdoado, mas, jamais, a mentira.

3. Por isso, porque, conquanto prostaticamente iconoclasta, no fundo, ame a verdade, deixo-me contaminar por jubilamentos contidos de alegria, quando, aqui e ali, monstros sagrados ratificam concepções que eu mesmo já formulara. Por exemplo, tenho dito em sala de aula que não há a mínina possibilidade de considerar-se Tomás de Aquino um "teólogo aristotélico" pelo fato de ter sido ele o teólogo que "empregou" o aristotelismo em suas reflexões. O dono de um circo que, eventualmente, dome leões, não é, exatamente, amigo do leão - apenas usa-o para seus propósitos: pula, leão, e ele pula. Aquino é mais do que um simples domador de leões, é um castrador.

4. Aristóteles tem um potencial exorbitantemente explosivo, quando comparado a Platão. Se se leva em conta, então, que Platão dominou o Ocidente desde sua entrada em Alexandria, daí para Paulo, e, de Paulo, para Nicéia, entrevê-se, já, o quanto de politicamente autocrático/teocrático o Ocidente foi. Até que Aristóteles é introduzido na Península Ibérica pelos árabes, e, daí, entra, como um vírus revolucionário, na Europa. Seguem-se, diretamente daí, o Renascimento, o Humanismo, a Reforma, o Empirismo, o Liberalismo, o Iluminismo, o Romantismo, a Revolução Francesa. Dinamite pura.

5. No meio do caminho, é função de Aquino castrar o leão, fazê-lo falar fino, extirpar-lhe as gônodas, decantar-lhe a testosterona, um verdadeiro Farinelli. Não é à toa que a Igreja da qual Aquino faz parte manteve-se incólume ao avassalador contágio de Aristóteles até inícios do século XX - pra valer, mesmo, apenas a partir do Vaticano II. O fato de haver termos, certa estrutura, certos conceitos, aristotélicos, em Aquino - forma e matéria, por exemplo - não faz da teologia tomasiana uma teologia crítica, aristotélica. Aquino e Agostinho estão a soldo da mesma causa (a castração está sempre em causa, aí).

6. Não me parece outra a opinião de Edgar Morin: "mas isso também significa que um mesmo sistema de idéias pode adquirir significados diferentes, e até opostos, segundo a ecologia mental ou cultural que os alimenta. O aristotelismo, escola de pensamento racional, degradou-se em racionalização fechada na ecologia teológica do cristianismo medieval (...): toda idéia inicialmente esclarecedora torna-se embrutecedora assim que passa a viver numa ecologia mental e cultural que deixa de alimentá-la em complexidade" (EDGAR MORIN, Para Sair do Século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 151). Penso que esse seja o caso também do tema da "liberdade" no Cristianismo.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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