1. Passo, agora, a respoder a segunda pergunta de Adolf von Harnack, que assim traduzo a partir da já tradução de Martin Rumscheidt: "é a religião da Bíblia, ou são suas revelações, tão completamente uma unidade ou tão claras que conhecimento histórico e reflexão crítica não são necessários para uma correta compreensão de seu significado? Ou elas são o inverso, isto é, tão incompreensíveis e indescritíveis que se deva esperar até que irradiem no coração humano, porque nenhuma faculdade da alma ou da mente humana pode alcançá-las? Ou são estes, ambos, pressupostos falsos? Não precisamos, para uma compreensão da Bíblia, além de uma abertura interior, conhecimento histórico e reflexão crítica?" (1).
2. Em termos formais, são três perguntas, mas, a rigor, trata-se de duas - se são necessários ou não sao necessários, ou seja, inúteis, "abertura interior, conhecimento histórico e reflexão crítica" para a compreensão da Bíblia. Duas descrições da Bíblia que, em sendo pertinentes, resultariam no caráter prescindível da crítica bíblica, abrem o questão: ou a Bíblia é auto-exlicativa, tão clara quanto as águas de um "ribeiro raso", uma unidade tão óbvia que qualquer um, de imediato, logo entende, ou, ao contrário, é um enigma indecifrável, um hieroglifo que nenhum Champollion a poderia traduzir. Nos dois casos, a crítica é desnecessária e inútil.
3. Essas perguntas apontam para duas estratégias muito comuns na teologia e na política eclesiásticas. Na ponta "erudita", desenvolvem-se argumentos no sentido de se afiançarem o caráter inacessível da mensagem bíblica, reverberações da cláusula paulina da necessidade de "regeneração" para o seu entendimento. Apenas "iluminados" ou "ordenados" têm a capacidade carismática de sua compreensão, de modo que os comuns dos homens a eles devem ouvir - ouvir a Palavra é ouvi-los. Esse é o argumento próprio da doutrinação da Igreja, quando o tema envolve a "verdade", o "dogma", quando o processo é a catequese e a apologética. Quando, no entanto, o tema volta-se para a instrumentalização da Bíblia entre o povo, como veículo de legitimação daquele dogma, muda-se o registro retórico - a Bíblia passa a ser um livro tão "simples", sua mensagem, tão translúcida, que qualquer um, até um analfabeto, desde que leiam para ele, é capaz de entendê-la ("Bíblia na mão, jornal no outro"), o que fica bastante claro quando, depois de alcançar o entendimento dessa maravilha da simplicidade arquitetônica e comunicativa, o leitor disso certifica-se, para isso consultando os manuais da catequese e da doutrina, se não já diretamente o pastor ou o padre. Para todos os fins, não estamos diante de argumentos retóricos responsavelmente metodológicos - trata-se de artifício político para a articulação da Bíblia sob as condições de necessidade da gestão do "corpo de Cristo", porque todas as partes desse corpo devem agir conforme a "cabeça" deseja, conforme sabemos desde A República, e de cuja estratégia "A Cidade de Deus" se utiliza, não importa quais sejam os prefeitos...
4. Harnack, todavia, encerra a seção retornando ao tema da pergunta número um - a necessidade de conhecimento histórico e de reflexão crítica para a compreensão da Bíblia. E, contudo, acrecenta uma nova exigência - "abertura interior". De fato, se não houver disposição interna para a assunção de uma postura crítica, seja, de um lado, a liderança teológico-eclesiástica, seja, de outro, a massa cristã, relacionar-se-ão por meio de códigos heterônomos e tradicionalizadores de interpretação, baseados em pressupostos políticos e estéticos (quando estéticos, ainda submetidos aos políticos). Ora, uma teologia científica não sobrevive num ambiente assim - ela morre, se é que nasce.
5. Uma teologia científica precisa, de um lado, de abertura interna da parte do teólogo, uma "prévia disposição de ânimo", um acordo esclarecido com os pressupostos, os métodos e os resultados da pesquisa histórico-crítica, histórico-social, indiciária - heurística. A teologia científica implica em uma disposição muito grave de se estabelecer um diálogo autônomo com a tradição, o que resultará na transformação política da relação entre o teólogo e ela. A teologia científica é, necessariamente, revolucionária. Mais do que isso, ela é, necessariamente, iconoclasta. As questões que Adolf von Harnack levanta são tão óbvias, que ele as constitui na forma de perguntas retóricas. No entanto, custo a crer que se esperava, mesmo, que "os teólogos que desprezam a teologia científica" pudessem ser "tocados" por elas...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
1. Adolf VON HARNACK, Fifteen Questions to the Despisers of Scientific Theology, Christliche Welt, 11 de janeiro de 1923, em: Martin RUMSCHEIDT, Adolf von Harnack: liberal theology at its height. London: Collins, 1989, p. 85-86.
2. Em termos formais, são três perguntas, mas, a rigor, trata-se de duas - se são necessários ou não sao necessários, ou seja, inúteis, "abertura interior, conhecimento histórico e reflexão crítica" para a compreensão da Bíblia. Duas descrições da Bíblia que, em sendo pertinentes, resultariam no caráter prescindível da crítica bíblica, abrem o questão: ou a Bíblia é auto-exlicativa, tão clara quanto as águas de um "ribeiro raso", uma unidade tão óbvia que qualquer um, de imediato, logo entende, ou, ao contrário, é um enigma indecifrável, um hieroglifo que nenhum Champollion a poderia traduzir. Nos dois casos, a crítica é desnecessária e inútil.
3. Essas perguntas apontam para duas estratégias muito comuns na teologia e na política eclesiásticas. Na ponta "erudita", desenvolvem-se argumentos no sentido de se afiançarem o caráter inacessível da mensagem bíblica, reverberações da cláusula paulina da necessidade de "regeneração" para o seu entendimento. Apenas "iluminados" ou "ordenados" têm a capacidade carismática de sua compreensão, de modo que os comuns dos homens a eles devem ouvir - ouvir a Palavra é ouvi-los. Esse é o argumento próprio da doutrinação da Igreja, quando o tema envolve a "verdade", o "dogma", quando o processo é a catequese e a apologética. Quando, no entanto, o tema volta-se para a instrumentalização da Bíblia entre o povo, como veículo de legitimação daquele dogma, muda-se o registro retórico - a Bíblia passa a ser um livro tão "simples", sua mensagem, tão translúcida, que qualquer um, até um analfabeto, desde que leiam para ele, é capaz de entendê-la ("Bíblia na mão, jornal no outro"), o que fica bastante claro quando, depois de alcançar o entendimento dessa maravilha da simplicidade arquitetônica e comunicativa, o leitor disso certifica-se, para isso consultando os manuais da catequese e da doutrina, se não já diretamente o pastor ou o padre. Para todos os fins, não estamos diante de argumentos retóricos responsavelmente metodológicos - trata-se de artifício político para a articulação da Bíblia sob as condições de necessidade da gestão do "corpo de Cristo", porque todas as partes desse corpo devem agir conforme a "cabeça" deseja, conforme sabemos desde A República, e de cuja estratégia "A Cidade de Deus" se utiliza, não importa quais sejam os prefeitos...
4. Harnack, todavia, encerra a seção retornando ao tema da pergunta número um - a necessidade de conhecimento histórico e de reflexão crítica para a compreensão da Bíblia. E, contudo, acrecenta uma nova exigência - "abertura interior". De fato, se não houver disposição interna para a assunção de uma postura crítica, seja, de um lado, a liderança teológico-eclesiástica, seja, de outro, a massa cristã, relacionar-se-ão por meio de códigos heterônomos e tradicionalizadores de interpretação, baseados em pressupostos políticos e estéticos (quando estéticos, ainda submetidos aos políticos). Ora, uma teologia científica não sobrevive num ambiente assim - ela morre, se é que nasce.
5. Uma teologia científica precisa, de um lado, de abertura interna da parte do teólogo, uma "prévia disposição de ânimo", um acordo esclarecido com os pressupostos, os métodos e os resultados da pesquisa histórico-crítica, histórico-social, indiciária - heurística. A teologia científica implica em uma disposição muito grave de se estabelecer um diálogo autônomo com a tradição, o que resultará na transformação política da relação entre o teólogo e ela. A teologia científica é, necessariamente, revolucionária. Mais do que isso, ela é, necessariamente, iconoclasta. As questões que Adolf von Harnack levanta são tão óbvias, que ele as constitui na forma de perguntas retóricas. No entanto, custo a crer que se esperava, mesmo, que "os teólogos que desprezam a teologia científica" pudessem ser "tocados" por elas...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
1. Adolf VON HARNACK, Fifteen Questions to the Despisers of Scientific Theology, Christliche Welt, 11 de janeiro de 1923, em: Martin RUMSCHEIDT, Adolf von Harnack: liberal theology at its height. London: Collins, 1989, p. 85-86.
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