sábado, 11 de abril de 2009

(2009/155) Da proximidade entre Adolf von Harnack e Hans Küng


1. Em 1968, durante os funerais de Karl Barth, na imponente Catedral de Basiléia, Hans Küng declarava: "nosso tempo precisa urgentemente do doctor utriusque theologiae, perito em ambas as teologias, evangélica e católica. E, se alguém o foi de maneira exemplar em nosso século, este é Karl Barth" (1). Trinta e oito anos antes, morrera, então, Adolf von Harnack. Digamos que Karl Barth sepultara, inapelavelmente, a teologia liberal. À medida que Harnack avançava em idade, até sua morte em 1930, Barth ia adquirindo maturidade, de modo que, com a morte de seu antigo Professor, sepultava-se - e Barth saberia pôr aí a pá de cal - a última expressão de um momento crítico da teologia do século XIX, uma última tentativa de negociação com a cultura emancipada européia (a "negociação" de Tillich, nos EUA, não se pode comparar à da teologia liberal, porque Tillich, em lugar de optar pela abordagem histórica, enveredou pelo caminho da racionalização teológico-fenomenológica, de modo que o padrão medieval permanece muito mais latente e, por isso, óbvio, em sua teologia. Talvez, contudo, Tillich tenha tentado um atalho novo, em face da ciência que decerto tinha da frustração da tentativa histórico-metodológica harnackiana: se não vai na História, quem sabe não vai na Filosofia?).

2. Não se pode, contudo, tomar um teólogo por uma data, muito menos por um pronunciamento - ainda que tão significativo. Hans Küng também amadurecerá, e tanto que, quando compuser Teologia a Caminho e, mais adiante, a "Parte II - Novas Reflexões" no relançado Por que ainda ser cristão hoje?, o seu pronunciamento praticamente nada terá de próximo a Barth. Ao contrário, poderia ser classificado como um autêntico retorno ao acesso histórico-metodológico de Adolf von Harnack, conquanto não se vai ouvir seu nome

3. Não se duvide tão cedo, pelo fato de ser eu a dizê-lo. Deixemos que o próprio Hans Küng o confesse:

3.1 "Para mim, como teólogo, passaram-se anos até que eu chegasse a perceber com clareza que a essência do cristianismo não consiste em nenhum dogma formulado com sutileza, em nenhuma moral elevada, em nenhuma grande teoria ou visão do mundo, em nenhum sistema de organização eclesiástica. Consiste em quê?

3.2 Para mim, para minha teologia e certamente para muitos dos que me lêem, a grande virada, durante e após o Concílio Vaticano II, foi a redescoberta da figura histórica de Jesus de Nazaré! Isso não é para ser entendido de uma maneira ingênua, como uma súbita iluminação. Não. Ao longo dos anos fui construindo o perfil único do Nazareno com base na abundante pesquisa bíblica dos últimos duzentos anos, refletindo tudo laboriosamente nos mínimos detalhes (...). Qual é a essência do cristianismo? A essência do cristianismo é simplesmente este Jesus de Nazaré como o Cristo" (2).

4. Hans Küng testemunha que chegou a essa concepção depois de muitos anos. Certamente estava ainda um pouco dela, quando anunciava Barth como o amálgama dos cristianismos ocidentais. Quanto mais distante daquele dia, daquela catedral, tanto mais distante daquela teologia dogmática: "a essência do cristianismo não consiste em nenhum dogma formulado com sutileza". Mas não é apenas isso - à medida que se afastava daquele dia - sabê-lo-ia? - ia-se aproximando, inexoravelmente, da teologia sepultada por Karl Barth: a teologia de Harnack.

5. Em uma ampla sala da Universidade de Berlim, diante de uma platéia para isso ali reunida de entre 500 e 600 pessoas em cada um dos dezesseis encontros semanais realizados no semestre de inverno de 1899-1900, "abre-se o século XX teológico" (3) - Adolf von Harnack oferece o curso A Essência do Cristianismo. Seu viés, para a resposta, é, afirma, histórico (4). Mais à frente, adianta a resposta, categórica: a essência do cristianismo é Jesus de Nazaré e sua própria pregação, que, obviamente, não tinha ele mesmo como conteúdo, mas Deus e a vida eterna em Deus: "Jesus Christ and his gospel" (5).

6. O Hans Küng amadurecido tem a dimensão do teólogo liberal de Berlim, e o que eles têm em comum é a "redução" político-teológica da "essência do cristianismo" à pessoa e à pregação de seu fundador - Jesus de Nazaré. Da mesma forma como concordam quanto ao conteúdo, os dois concordam quanto ao modo adequado de se chegar aí - a perspectiva histórica. Hans Küng tem, na sua "defesa", o espírito do Vaticano II, que, para todos os fins, autoriza(va)-o a servir-se da exegese histórico-crítica, sobredeterminando-a à teologia, inclusive. Harnack não tinha um Concílio a seu favor - antes, tinha um (neo?)ortodoxo viril a combatê-lo, alguém engajado na batalha contra o liberalismo, engajado na defesa da ortodoxia objetivo-dogmática da Igreja, alguém que fez o seu trabalho muito, muitíssimo bem feito. E, no entanto, Harnack, afinal, abre o século da mesma forma como o fechará Hans Küng...

7. Se aquilo em que os três parecem crer - a vida eterna em Deus - for "verdade", e, por uma dessas ironias que a vida nos apronta, os três se encontrarem, será divertido ver o olhar de triunfo de Harnack sobre a carranca aborrecida de um Barth contrariadíssimo. O constrangimento de Hans Küng será imperdível... Talvez eu esteja lá. Não perderia por nada uma cena dessas.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

1. Hans KÜNG, Karl Barth: 1886-1968. Gedenkfeier im Basler Munster. Zurique: EVZ-Verlag, 1969, p. 43, apud Rosino GIBELLINI, A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 1986, . 31. Faz sentito, pois, mas não aenas por isso!, que a Sistemática, na PUC-Rio, cite tanto Barth.
2. Hans KÜNG, Por que ainda ser cristão hoje? Campinas: Verus, 2004, p. 88-89.
3. Uso, aqui, não literalmente, mas na essência, as palavra com que Gibellini abre o capítulo "Teologia Dialética", em Rosino GIBELLINI, op. cit., p. 13.
4. Cf. Adolf von HARNACK, What is Christianity?, em : Martin RUMSCHEIDT, Adolf von Harnack: liberal theology at its height. London: Collins, 1989, p. 79 (alternativamente, cf. GIBELLINI, op. cit. p. 13).
5. Idem, p. 81. Em GIBELLINI, p. 14-15.

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