1. Há mais um pouquinho do que um mês que respondi à sexta das quinze perguntas que Harnack fez aos "Teólogos que Desprezam a Teologia Científica" (1). Chega a hora de continuar a empreitada.
2. Eis a sétima pergunta que von Harnack fez aos desprezadores: "se Deus é simplesmente diferente de qualquer coisa dita sobre ele na base do desenvolvimento da cultura, na base do conhecimento recolhido pela cultura e na base da ética, como pode esta cultura e no longo prazo sua própria existência ser protegida contra o ateísmo?".
3. A pergunta de Harnack pressupõe o platonismo oracular-sacerdotal, e, todavia, o platonismo sacerdotal-oracular sequer tem ouvidos para ouvir tal questionamento, porque é sua índole a expressão constante disso que se lhe denuncia. Nos termos dessa postura clássica das religiões, e o Cristianismo não fugiù à regra, a divindade é de outro mundo, e as informações que se dispõe a respeito dela - dos deuses em geral - são informações metafísicas e reveladas aos "xamãs", aos "profetas", aos "sacerdotes" - e, conforme Paul Veyne já nos disse, crêem-se neles, nos oráculos carismático-narradores. O resto é essa mesma política...
4. Assim, o questionamento de Harnack pressupõe, de um lado, esse status quo sacerdotal-oracular, mas, por outro lado, também a possibilidade sistêmica e cultural do questionamento desse "poder" retórico. Não é tanto "Deus" a questão - mas o "sacerdote". Quem fala pela boca de Harnack é tanto um Kant quanto um Dilthey - e, claro, um Feuerbach.
5. O raciocínio é o seguinte. Se Deus é "o Totalmente Outro", como se pode esperar que a cultura não se considere impossibilitada de crer nele, já que não tem acesso a ele, não há meios de se chegar até ele, ninguém sabe, ninguém poder dizer como ele é, onde ele está, nem pôr a questão, se ele é, de fato, extra-cultural, extra-humano. A "situação" reage: ele se "revela", ou seja, os sacerdotes de plantão apresentam-no, na forma de revelação, doutrina, sermões etc., para a população sacramentalmente cega para isso. "Bento que bento é o frade, frade (...) Tudo que seu mestre mandar, faremos todos"...
6. O que está por trás da provocação de Harnack é o "embuste" pós-kantiano de um discurso "revelatório" - daí que as retóricas de revelação têm-se de driblar Kant, seja voltando para a Idade Média, seja superando a modernidade por meio do prefixo pós. Não é à toa que Barth vai ser o primeiro a responder, como se a ele tivessem sido endereçadas as provocações - e não se duvide! Barth, de um lado, baseia-se na primeira premissa de uma pseudo-fenomenologia: a incapacidade de o homem chegar a Deus, por ser ele o "Totalmente Outro", e, por outro lado, Barth se baseia na retórica da revelação - esse "Totalmente Outro" se dá a conhecer à "Igreja" - outra retórica, porque não é bem exatamente à Igreja que ele se dá a conhecer, mas aos formuladores normativos da fé-doutrina - por meio da revelação.
7. A pergunta sete de Harnack toca esse ponto, mas é muito fácil esquivar-se dela desde dentro da retórica barthiana, porque qualquer coisa, aí, é respondida por meio da "incapacidade humana", do "pecado", da "condição natural humana", essas coisas que só valem para os humanos, mas não para os gestores a fé (Platão é política pura!) - que devem ser anjos... O protestantismo de Barth é uma hierocracia envergonhada, porque, se assumir seu presuposto de fundo - uma hierocracia doutrinário-revelada -, Barth tem de submeter-se à Roma (ou submeter Roma a si!). Mas é disso que se trata - uma segunda Roma, tanto que Barth considera que todas as "denominações" do planeta têm de repetir a mesma doutrina - a dele, naturalmente...
8. Harnack viveu perto demais dos "neo-ortodoxos". Não se deu conta, contudo, de que não há argumento nesse mundo capaz de trazer um neo-ortodoxo para o plano da Epistemologia kantiano-diltheyana. Tolice de Harnack. No mundo "dialético" - e é apenas por isso que ele se diz dialético -, a Tese é Deus, a antítese, é o homem, essa toupeira-cega, esse asno-turrão, e a síntiese é a "revelação", a "doutrina": o sacerdote esconde-se num desvão do sistema...
9. A pergunta de Harnack não é uma pergunta - é um posicionamento. É Kant, Feuerbach e Dilthey, riscando a giz os limites da Teologia - a cultura. Mas observe-se como é impossível fazer com que quem queira, ainda, furar o bloqueio, o fure: Tillich, o teólogo da cultura, não brincou de Deus e Cultura, ao mesmo tempo, invertendo a Antropologia, de modo a dizer que a cultura é religião, antes que a religião ser cultura? Ora, com isso, dançou com Deus no salão da cidade... um Barth mais sutil...
10. Não sei o que se pode fazer para curar essa "indisposição". Não sei se há argumento possível. Nao sei como o processo se dá e se desenvolve. O que sei é que, um belo dia, atolado ou não na areia movediça da neo-ortodoxia (e até dos fundamentalismos do momento), você ouve falar de Kant, de Feuerbach e de Dilthey, e tudo cai, desmorona, e você só pode seguir pelo caminho de Harnack, Bonhoeffer, Küng - caminhos que não lhe são forçados, mas inexoráveis. Deve ser uma contra-revelação isso, eu acho... Também somos, nós, homens de fé, então.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
1. Para as "questões", cf. Adolf VON HARNACK, Fifteen Questions to the Despisers of Scientific Theology, Christliche Welt, 11 de janeiro de 1923, em: Martin RUMSCHEIDT, Adolf von Harnack: liberal theology at its height. London: Collins, 1989, p. 86.
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